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Agendas Secretas - The Clash

Por Alexandre Mandarino

Com Jimmy Woo Não Se Vive Duas Vezes

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A paisagem passa imutável pela janela do trem. Jimmy Woo pensa em quanto tempo ainda falta para chegar a Zhengzhou. A velha na poltrona do outro lado do corredor baba, adormecida profundamente. Tudo parece calmo no vagão. Aproveitando que a única pessoa além dele está dormindo, Woo acende um cigarro. Dá três tragadas e volta a apagá-lo.

"A CIA bem poderia ter arranjado um lugar para fumantes no trem." — é tudo em que Woo consegue pensar. Enfim, como esperar que a CIA ajude um agente do FBI? A agência nunca gostou dessas raras missões de federais clandestinos no exterior. Sempre acabavam mal. Alguém grita. O expresso finalmente chegou a Zhengzhou.

Woo pega sua única mala e desce. Olha ao redor. A estação é uma confusão. Em Zhengzou se encontram as linhas férreas que partem de Beijing, Guangzhou e Longhai. Parece que metade da China está descendo ali. Melhor para Woo, que não quer chamar a atenção e entra imediatamente em um táxi.

— Estrada Erma, número 86, por favor.

O motorista olha para trás e pergunta:

— O Golden Sunshine?

Woo aquiesce com a cabeça. O nome do hotel imediatamente o faz lembrar de sua chegada a Beijing. Assim que chegou ao seu hotel na capital chinesa, no dia anterior, Woo encontrou um envelope sobre a cama. Dentro dele, a mensagem: "Vá para Zhengzou e hospede-se imediatamente após a Aurora Dourada". Woo lembra de ter rido, pensando em como os cuidados da CIA podem chegar a extremos quase ridículos. "Aurora Dourada" (*). Woo pegou o catálogo na mesa de cabeceira e procurou. Finalmente, lá estava ele: Hotel Golden Sunshine (**). O que vem imediatamente após a Aurora.

Perdido nesses pensamentos, Woo nem nota quando o táxi pára, até que o motorista, pequenos olhos que o encaravam pelo retrovisor, diz:

"Chegamos, senhor. O Golden Sunshine. Seja bem-vindo a Zhengzhou."

Após pagar o homem, Woo entra no hotel. O lobby, todo em mármore branco, com pisos de madeira e duas enormes colunas de cada lado. Cinco minutos depois, entra no quarto 230. Mal acende a luz e manchas pretas passam diante de seus olhos. São cabelos. Seus. Mas como...?

— Tem que ficar ligado, china.

O homenzinho está sentado na cama, à sua frente. De suas mãos saem coisas horrendas, como garras de metal.

— A tua sorte é que eu sou "amigo", malandro. Se as minhas garras fossem amarelas, não teriam cortado só o teu cabelo. Mas tu ficou melhor sem o topetinho.

— Quem é você? — diz Woo.

O homem leva a mão ao bolso da surrada jaqueta jeans e tira uma identificação branca e vermelha.

— Serviço secreto canadense. Departamento H. Pode me chamar de "Arma X".

— Não. O seu nome real.

— Tá, me chama de Logan.

— O que você quer? E o que quis dizer com "garras amarelas"?

— Te acalma. Eu tô aqui atrás de outro chinês, não desse. Mas sei que cê tá embarcando numa furada e resolvi te dar um alô.

— Como assim? O que você quer dizer?

— O negócio é o seguinte, china. A gente tá sabendo que cê tá aqui pra tentar detonar com o Garra Amarela. Não é preciso ser nenhum Nick Fury pra sacar isso. Se mandaram você, é porque o Garra tá na área.

Woo mexe as mãos, incomodado por perceber que sua caçada ao seu antigo inimigo já era folclórica até em outros departamentos, em outros países.

— Fale logo, Logan.

— Bom, o Departamento H me mandou aqui por outros motivos. Minha parada tá resolvida, tô me mandando. Te vi no lobby do hotel. Tô hospedado aqui até amanhã, quando vou pra Beijing e, de lá, pro Canadá.

— Não existem vôos diretos para o Canadá.

— Eu tenho cara de quem sabe voar, china? Tô falando do Estreito de Bering. Vou dar uma passada no Alasca pra uma caçada. Sabe como é, desanuvia a mente.

"Esse homem é louco!" — pensa Woo. E resolve encurtar a conversa:

— Tudo bem, diga o que veio me contar e parta.

— Não devia ser grosso com quem veio te dar um toque. Seguinte: durante a minha missão, saquei umas coisas estranhas. Gente desaparecendo nos vilarejos do interior, uivos bizarros nas florestas. Não parei pra ver o que era. Sem tempo. Mas acho que tem a ver com o cara que cê tá atrás, o tal Garra Amarela. Até o cara que eu vim apagar deixou transparecer que tem medo dele.

— E quem você veio "apagar"?

— Um tal de Mandarim. Ele tava com uns planos que podiam foder com o Canadá, com tudo.

— E você conseguiu?

— Não, o cara é muito esperto. Saiu por um túnel. Mas detonei com os planos dele. Bom, é isso, china. Só passei aqui pra te dar esse toque. Esse Garra Amarela é coisa grande.

— Quando me viu no lobby, como soube quem eu era? E como entrou no quarto antes de mim?

— As respostas são "fácil" e "prática".

Woo se irrita. Respira fundo e, ao se voltar novamente para o estranho homenzinho, vê que ele sumiu. Impressionado, pega o telefone.

— Alô, aqui é do quarto 230.

— Sim.

— Um baixinho de casaco jeans e costeletas passou por aí?

— Ele é seu amigo?

— Sim.

— Esse hóspede estava no quarto que demos ao senhor. Mas pagou suas contas há cerca de meia hora e partiu.

— Me dê outro quarto! — diz Woo.

Deitado na cama, Woo olha para o teto do quarto 570. Os arabescos nos cantos tomam formas familiares. SuWan, sua adorada SuWan. Quando a veria de novo? Ele precisa afastá-la do Garra Amarela. Foi para destruir o Garra Amarela e seus planos de conquista mundial que ele entrou no FBI. Por que seu maior inimigo tinha que ter uma sobrinha tão adorável? Pensando nos lábios fartos e molhados de SuWan — e em quando os sentiria novamente -, Woo finalmente adormece.

No dia seguinte, após o café da manhã, Woo volta para o quarto e abre um mapa sobre a mesa. A província de Honan, no noroeste da China, não é pequena. Seu alvo — a fortaleza do Garra Amarela — fica em algum lugar ao sul de Zhengzhou, capital da província.

"Honan..." — pensa Woo. Um local repleto de lendas e folclores que se perdem no tempo. Berço do kung-fu — "Aqui surgiu o primeiro Shaolin Kung-Fu, que tem esse nome por ter sido criado no monastério Shaolin, nas montanhas Song." — após procurar as montanhas no mapa, descobre que elas ficam no município de Dengfeng — "A apenas alguns quilômetros da suposta fortaleza do Garra Amarela."

No verso do mapa, verbetes curtos sobre Honan informam que, ao redor das montanhas Song (chamadas "songshan"), há diversos túmulos antigos, pagodes, placas de pedra com inscrições arcaicas e templos de diferentes dinastias. No meio daquilo tudo, em algum lugar, a fortaleza. E SuWan. O que o homenzinho falou? Uivos, pessoas desaparecidas.

"Nah, se havia alguém bizarro era aquele sujeito. Preciso lembrar de checar sobre o Departamento H quando voltar para a sede."

Woo fecha o mapa, dobra suas roupas e coloca tudo de volta na mala. Dela retira uma pistola automática, um revólver (este seu, não do FBI), dinheiro, binóculo e um pequeno aparelho de escuta. Após andar pelos largos corredores brancos, pega o elevador, vai para o lobby e paga a conta do hotel.

— Vocês dispõem de cofre? Quero deixar esta mala aqui por alguns dias.

— Certamente, senhor. — responde o recepcionista — Deseja declarar algum pertence?

— Não.

Minutos depois, está em um novo trem, desta vez viajando para a zona rural da província de Honan. E, felizmente, em um vagão de fumantes. Após meia hora de viagem, Woo nota um grandalhão, de fartos bigodes, que fuma um charuto. Ao seu lado, um senhor mais velho, calvo e de bigodes brancos. Os dois olham para ele. Woo desvia o olhar, mas mantém sua visão periférica atenta. O grandalhão se levanta e senta na poltrona ao seu lado.

— Vou ficar aqui, se não se incomoda. — diz o homem — O charuto irrita Sir Denis.

Woo dá de ombros.

— FBI? — pergunta o homem.

Woo arregala os olhos. Como aquele sujeito pergunta isso dessa forma, como quem fala "fuma"?

— O que quer dizer?— responde Woo.

— Relaxa. Meu nome é Black Jack Tarr. Aquele que me acompanha é sir Denis Nayland Smith. MI-6.

Woo não responde.

— Você está aqui atrás do Garra Amarela. Seus superiores no FBI nos informaram, quando souberam da nossa missão.

— E que missão é essa? Não me diga que vieram atrás do Mandarim.

Tarr ri:

— Claro que não! Isso nós deixamos a cargo do Homem de Ferro.

— Sei, eu encontrei esse Homem de Ferro. Garras que saem pelas mãos, feitas de metal.

— Hã? — Tarr balança a cabeça — Você não está há muito tempo na agência, né? O Homem de Ferro, china. O guarda-costas do playboy Tony Stark. Normalmente é ele quem detona os planos do Mandarim.

— Eu encontrei um...

— Esse que você encontrou provavelmente era o Logan. Codinome "Arma-X" ou alguma outra merda do gênero. Canadense, peixe pequeno. Eu e sir Denis encontramos o cara ontem à noite, em Beijing. Ele nos disse que tinha encontrado você. Daí, te seguimos da porta do hotel até a estação e, para nossa surpresa, você pegou o mesmo trem que iríamos pegar.

— Bom, já vi que sou o agente menos secreto da China.

— Calma, só o Logan e nós sabemos da sua missão. Pode confiar na gente. — Tarr mostra a identificação do MI-6 e continua — Mesmos interesses, sabe?

— Então vocês também querem o Garra Amarela?

— Não, isso é assunto seu e do FBI. Nosso alvo aqui é mais antigo, mais mortal.

É a vez de Woo rir:

— O Garra existe há centenas de anos. Ele é bem antigo e bem mortal, posso garantir.

— Bom, não é nosso problema. Enfim, só queria dar um alô. Voltaremos para Zhengzhou em dois dias. Se quiser, nos encontre no lobby do Red Coral Hotel. Boa sorte, china.

— Você é o segundo sujeito que me chama de "china" em menos de 24 horas. Nós estamos na maldita China, droga!

— Então, não é o máximo? Posso chamar todo mundo por um só nome: "china".

Sorrindo, Tarr levanta-se e para em frente a sir Denis. É quando Woo nota que o velho não pode andar. O grandalhão ajuda-o, respeitosamente, a passar para uma cadeira de rodas e os dois passam pela porta de comunicação para um outro vagão.

Quase um dia depois, Woo se encontra em uma estação de trem em meio ao nada. Um faxineiro e uma velha são as únicas pessoas no local. Ajeitando a gravata, Woo sai rapidamente dali e anda por uma estrada de terra. Logo está em uma clareira, com ocasionais agrupamentos de árvores. Pára por um momento e olha o mapa. Levanta a cabeça e olha para a posição do sol.

"Se as informações estiverem corretas, são três horas de caminhada." — pensa — "Chegarei na fortaleza quase ao meio-dia."

Finalmente, Woo a avista. A fortaleza do Garra Amarela. Construída em um estilo arquitetônico da China medieval, ela se impõe como uma chaga sobre a clareira gramada. O sol arde sobre a cabeça do agente, que saca um pequeno binóculo. Ninguém à vista. Esgueirando-se pelas poucas árvores ao redor, ele chega até os altos muros da fortaleza, na ala leste. Se abaixa, descalça o pé direito do sapato italiano e mexe em sua sola. Ela se abre e libera uma extensa e resistente linha de plexinylon. Parte da própria sola do sapato é extraída, dobrada e vira um gancho. Duas tentativas depois, Woo está subindo pela corda.

Do outro lado, ninguém. Ele recolhe o gancho e salta para uma árvore no interior da fortaleza. Por sorte, um dos galhos se estende para uma janela aberta. No interior do pequeno cômodo, um cheiro quase insuportável de incenso. Ele escuta pela porta. Nada. Nenhum som. Abre-a com cuidado e enxerga pela fresta. Um comprido e estreito corredor, inteiramente feito de jade. Cuidadosamente, sai pela porta, já empunhando a automática. No corredor existem três portas, duas à direita e uma em frente, no final da estreita passagem. Woo usa o aparelho de escuta nas três. Nenhum ruído. Abre a primeira porta.

Uma imensa biblioteca, repleta de volumes dos mais variados, se abre à sua frente. O teto é altíssimo e Woo anda vagarosamente, para não provocar ecos no enorme cômodo. Se aproxima de uma das estantes. Os títulos, em várias línguas, lhe provocaram uma estranha sensação. "Do Abismo Que Se Abre"; "Técnicas de Auto-Hipnose"; "A Dinastia Manchu"; "Bestiário Zoológico"; "Fendas na Alma Humana"; "O Demônio da Boa Vontade"; "Necronomicon". Um ruído. Woo se esgueira para trás de uma das estantes. Por entre dois livros, vê um homem musculoso entrar na biblioteca. Sem camisa, trajando apenas uma sunga, o homem, espantosamente, tem nos cabelos duas maças, repletas de pontas. Ele pára e cheira o ar.

— Mestre? Mestre celestial? O senhor está aí?

Sem ouvir resposta, ele se volta e sai, com ar desconfiado. Woo volta a respirar e, após um minuto, sai de seu esconderijo. Olha em volta e vê uma mesa, no centro da sala, com frascos e tubos de ensaio. Material típico do Garra Amarela. Que monstruosidades ele teria criado nesse local?

Woo sai da biblioteca e entra, cuidadosamente, na porta seguinte do corredor. Algo salta em seu rosto, fazendo um ruído terrivelmente agudo, e começa a arranhá-lo. Por puro reflexo, Woo dá um soco no estranho vulto. Recobrando-se, nota que é um pequeno sagüi, com olhar aterrador. Aninhado no canto da sala, ele guincha de leve para Woo e prepara-se para saltar de volta ao ataque quando o agente desfere dois tiros de pistola no animal. O sagüi desfalece e tomba. Preocupado com o barulho, Woo olha em volta. Está num pequeno quarto, que contém apenas um divã, um narguilê, um biombo e uma gaiola aberta — de onde certamente escapuliu o monstrinho. Resolve se posicionar atrás da porta. Minutos se passam. Nada. Nenhum som. O silenciador da pistola abafou o ruído dos tiros. Jimmy resolve esperar mais cinco minutos antes de voltar para o corredor. Então, caminha para a terceira e última porta.

Abre-a lentamente. Uma claridade absurda invade seus olhos, acostumados à penumbra dos cômodos anteriores. Inúmeros incensos queimam na sala, que Woo não consegue divisar se é grande ou pequena. Em um sofá amarelo, sentada de costas para ele, está uma mulher. Ela se vira lentamente e Woo a reconhece:

— SuWan! Graças a Deus! Não fale! Vim salvá-la. Me diga onde posso encontrar seu terrível tio e, assim que der cabo dele, cairemos fora daqui.

A moça, aparentemente aliviada por ver seu amor, abraça Woo. Os dois se beijam longamente. O cheiro de uma miríade de incensos se mistura ao gosto dos lábios pelos quais Woo esperou tanto tempo. A mão do agente escorrega pela coxa esquerda da sobrinha de um dos maiores males já gerados pelo homem. Woo fixa os olhos de SuWan. Os mesmos olhos com os quais sonhou nestes dois anos desde que ela partiu de volta à China, levada por seu tio. Um barulho chama a atenção de Woo, um estrondo metálico. Quando tenta se voltar, descobre que seu corpo está rijo. Consegue apenas voltar os olhos para o chão, na direção do estrondo. Com espanto, vê a sua arma. Foi ela que caiu e produziu aquele som. Só então sente a sua mão direita, que realmente não está mais segurando a pistola.

— SuWan... meu amor... eu não consigo... mexer... o que está...

SuWan se vira e fala, os cabelos negros e compridos se mexendo como se tivessem vida.

— É o efeito da mimosa, "amor". Mimosa, misturada com incensos que criam uma cortina para os sentidos de ignorantes como você.

Os cabelos se põem de pé, sobre a cabeça de SuWan, até pousarem em um coque. Um ninho negro sobre a cabeça de seu amor.

— Mas... SuWan... o que você...

— Não. Não SuWan. Depois de me beijar e me molhar, ao menos me chame pelo meu verdadeiro nome.

Woo não sabe se diz ou pensa:

— Qual nome...?

Em sua mente, sinos dizem, anunciando a escuridão:

— Fah Lo Sue.

Monstros e anjos se estrangulam e Woo está impassível. Amarrado a um trono de ouro, o agente observa as criaturas se matarem, se deflorarem, copularem até a morte sangrenta diante de seus pés. Vozes atrás dele murmuram:

— Mas, pai, ele é chinês como nós.

— Não, minha filha. Chinês sim, mas não como nós.

Um gongo toca ao lado dos ouvidos de Woo e o barulho desintegra o trono no qual ele se senta. Ele inicia uma queda por todos os espectros do arco-íris, uma queda que parece não ter fim. Ao final de seis horas, quando já está acostumado com o eterno efeito da gravidade, ele atinge pesadamente um líquido viscoso, mas refrescante. Serpentes nadam ao seu redor. Uma delas late. Uma outra se enrosca em seu pênis e diz:

— Um, dois, três, quatro, bem-vindo à Casa da Diversão.

Woo afunda no estranho líquido. Submerso, ele encontra o corpo rijo de SuWan. Quando se aproxima, a moça abre os olhos, que emitem um facho vermelho. Ela abraça Woo e se aproxima para beijá-lo. Ao contato com sua boca, a moça começa a vomitar. Woo engole o líquido, viscoso e agridoce. Com gosto de morte e vida eterna.

Woo abre os olhos e sente suas pálpebras doerem horrivelmente. Tenta levar as mãos à cabeça, que parece explodir, mas elas não estão lá. As mãos. O quê...? O barulho revela que está algemado, pés e mãos presos a uma parede. Tijolos, pelo que lhe informa um resto de tato. Meia hora se passa e Woo volta a escutar. Ruídos estranhos preenchem seu cérebro. Ele está preso na escuridão. Não consegue discernir o tamanho da masmorra. Algum tempo depois, vislumbra formas se mexendo em um canto da sala. Ele grita:

— SuWan!

O eco revela que a sala é enorme. Mas o tempo passa e seus olhos não se acostumam à escuridão. Finalmente, a porta se abre. Um oriental, com um longo bigode e unhas que não são cortadas há vários anos, trajando um quimono dourado, aparece no vão da porta. A luz não o deixa discernir mais sobre a figura, que entra e fecha a porta. Segundos depois, velas são acesas, uma a uma. A figura colhe um dos candelabros e caminha com ele na direção de Woo.

— Garra Amarela...? — balbucia o agente.

— Não me ofenda. — responde a figura — Minha filha parece ter gostado de você. Nenhuma novidade nisso. Ela tem preferência por idiotas. Por isso, não a verá mais em sua estada por aqui.

— Sua... filha? SuWan é sua...?

— Não sei quem é SuWan. Fah Lo Sue desperta esse fascínio. Ela pode ser todas as mulheres em uma. Para sua sorte, ela não puxou à mãe. Aquela só conseguia ser uma mulher — e uma bem tola.

— Você...

— Não sei o que veio fazer aqui, sr. James Woo. Não me olhe assim. Nessas 36 horas em que esteve preso, já me contou tudo sobre você. Sei até mesmo o nome de seus pais, de seus melhores amigos, para quem trabalha e o que veio fazer aqui. Eu já desconfiava que o FBI era um antro de cretinos, mas nunca imaginei que eles poderiam errar o alvo de tal forma. E ainda assim, acertar... para seu azar. Enfim, o que esperar do bureau de "inteligência" americano? Americanos não são bons em inteligência. O FBI nunca me atrapalhou, em anos de vida.

— Do que você está...

— Como já somos bons amigos há mais de um dia, lhe contarei as verdades. Primeira verdade: você respondeu a tudo que eu quis. Um raro e agradável efeito dos incensos desenvolvidos por mim em meu laboratório. Segunda verdade: você morrerá. Isso é certo. Inoculei-o com o meu soro da imortalidade. A mim ele proporciona a vida eterna. Eu já estava vivo quando seus antepassados ainda engatinhavam e babavam. Meus olhos viram coisas que você jamais saberá, nem em uma vida inteira. A mim, o soro dá o beijo da vida eterna. Mas em outras pessoas, com a fisiologia virgem para a sua química, o soro dá a morte. Em menos de doze horas.

— Mas se estou preso há 36 horas...

— Calma, sr. Woo. Posso lhe assegurar de que não morreu... ainda. Não sei — e estou sendo sincero, como amigos devem ser — por que o soro não o matou ainda. Mas posso dar um jeito nisso... ou melhor, um dos meus si fans.

— Si fans... quem é...

A figura aproximou-se mais. Pela primeira vez, Woo percebe que ele tem olhos verdes, que reluzem com a mesma expressão e azedume de uma cobra.

— Sou Fu Manchu. Mas, em breve, você me chamará de "mestre celestial". Ou de seu assassino.

Woo fecha os olhos. Quando os reabre, a luz da sala está acesa. Fu Manchu não está mais no cômodo. Ao fundo, animais horrendos estão presos em gaiolas. Escorpiões do tamanho de um braço, macacos com línguas de serpente e olhos negros, aranhas enormes, com dezesseis pernas. Em frente às gaiolas, olhares fixos em Woo, dois homens o observam. Dois garotos.

— Ele está acordando de novo, Chi.

— Estou vendo, irmão.

Um dos garotos veste uma túnica vermelha, um quimono de artes marciais. Tem cerca de dezessete anos. O outro, da mesma altura e porte, está completamente coberto por uma roupa negra e tem o rosto escondido por uma máscara.

— Você é James Woo. — diz o menino de quimono — Por que quer matar meu pai?

— Você... é filho daquele homem? Aquele Fu Manchu?

— Sim. Meu nome é Shang Chi. O despertar e a elevação do espírito. Por que quer matar meu pai?

O outro menino permanece em total silêncio, sem sequer se mover. Uma mancha negra, adequada àquela sala.

— Eu... não vim matar seu pai. Foi um engano. Vim aqui atrás de outro homem, chamado Garra Amarela.

— Meu pai diz que esse homem é como ele. Quer o melhor para o mundo. Mas Garra Amarela é um fraco. Somente meu pai pode tornar o mundo um local melhor para todos nós. — diz Shang Chi.

"Por Buda, vim parar em uma casa de loucos!" — pensa Woo.

— Outros como você estiveram aqui antes. Tentaram matar meu pai. Mas eles eram ocidentais. Você é chinês, como nós. Por que se tornou um homem mau?

— Escute, menino. Eu não sou mau e nem vim matar seu pai. Mas, se ele acha que o Garra Amarela é um bom sujeito, então seu pai também é um genocida safad...

O menino de negro se aproxima e desfere um potente soco em Woo. O outro o afasta:

— Minai! Não! Qual é a honra em agredir um inimigo ferido e acorrentado?

— Ele fere a honra de nosso pai com essas palavras! — ruge o primeiro menino.

— Quem carrega a verdade sabe que ela não pode ser ferida com palavras, meu irmão. Nós dois sabemos a verdade sobre nosso pai. Isso basta. — diz Shang Chi.

Woo cospe sangue para o lado e olha com raiva para Chi:

— Você acha que seu pai é um bom homem? Que ele quer salvar o mundo? Salvar de quem? Da paz? Das outras nações? A maldita China imperial é um sonho do passado, moleque! Somente loucos buscam esse sonho.

Minai quase ruge.

— Me diga uma coisa... o que seu pai tem feito para melhorar o mundo? Olhe em volta, menino. Olhe para essas criaturas. Dê uma boa olhada na biblioteca de seu pai. Ele é um ser maligno e um dia acabará pedindo que você mate alguém para ele!

— Isso nunca acontecerá! Eu e meu pai não somos assassinos! Vocês é que quer matá-lo! Eu não preciso ouvir isso! — diz Shang Chi, que sai da sala. Minai o segue, mas antes olha para Woo e diz, com uma voz que parece não ser sua:

— Um dia, chinês do oeste... um dia, a meia-noite irá tragá-lo.

Mal os dois saem e uma explosão ensurdecedora parece estremecer a fortaleza. Gritos. Woo ouve uma voz dizendo:

"Minai! Shang Chi! Corram para seus quartos na ala norte!"

Novos gritos. Tiros. Em dado momento, Woo escuta uivos, seguidos por uma gargalhada aterradora. Finalmente, após quase uma hora de total balbúrdia — o que deixa os animais das gaiolas em estado de frenesi, alguns deles se auto-flagelando com os dentes e garras -, faz-se o silêncio. Aquela calma, ainda mais perturbadora, intriga Woo. Quinze minutos depois, a porta se abre e um enorme vulto tapa a luz que vem do corredor.

— China. Você tá bem?

Black Jack Tarr procura pelo cômodo até encontrar um machado. Com uma força prodigiosa, o agente do MI-6 liberta Woo com golpes de corrente.

— Mundo pequeno, hein? — continua Tarr — Quer dizer que esse seu Garra Amarela é o velho Fu Manchu? Por que não nos disse? Poderíamos ter vindo antes!

— Ele não é...

— Depois. Temos que sair correndo daqui. Metade dos nossos agentes estão mortos. Sir Denis nos espera com dois aviões na clareira fora da fortaleza.

Woo e Tarr saem do quarto e passam por um mar de cadáveres. Agentes britânicos e orientais com armas e roupas milenares decoram o chão de jade.

— Essa missão foi uma merda. Deu tudo errado. E ainda encontramos você. — diz Tarr.

Minutos depois, Woo está deitado no avião que leva Tarr, sir Denis e os seis agentes sobreviventes para longe dali. O segundo avião levanta vôo em seguida, levando frascos e baús encontrados na fortaleza. Woo olha para baixo. A fortaleza, paradoxalmente, parece ficar cada vez maior à medida que o avião sobe. Em algum lugar, lá embaixo, está escondido um dos maiores males que o mundo já conheceu e seus três filhos pavorosos.

Woo começa a sentir suas pálpebras pesarem. Os olhos ardem. Antes de adormecer profundamente, ele ainda escuta sir Denis e Tarr conversarem:

— Pessoas raptadas por Fu Manchu... viravam monstros em seu laboratório.

— Uivos na floresta... ao menos destruímos essa linha de pesquisa daquele demônio.

— Crianças que perderam seus pais... metamorfoseados naquelas coisas... maldito!

Horas depois, Woo, Tarr e sir Denis estão em um hotel em Beijing. Tarr fala:

— É melhor ficar na cama. Aproveite este quarto, Woo. Você tem mais dois dias aqui até a diária pré-paga acabar. Descanse, china. Você passou por maus bocados.

Sir Denis olha para Woo, desconfiado, e diz:

— Sr. Woo, você disse que Fu Manchu o inoculou com o soro da imortalidade. Outras pessoas, que não o próprio Fu Manchu, morrem doze horas depois de ingerir a poção. Por que insiste em ficar vivo?

— Eu... não sei. — diz Woo, os olhos fixos nos próprios pés, do outro lado da cama.

— Não sabe ou não quer dizer? Bem, isso não é problema meu. Já estou acostumado a ouvir mentiras e subterfúgios de chineses. — diz sir Denis. Black Jack Tarr tapa o rosto com a mão direita.

— O quê? — diz Woo — Quem você pensa que é, seu inglês metido a besta? Escute aqui...

— Eu penso que sou o homem que o salvou, sr. Woo. Você não só mentiu para nós quando disse que estava no encalço deste fictício "Garra Amarela", como ainda atrasou Tarr em uma missão já fracassada. Está vendo isso? — sir Denis levanta a barra das calças, mostrando as pernas completamente destroçadas — Foi um homem que fez isso, a serviço de Fu Manchu. Graças àquele monstro covarde e egomaníaco, nunca mais poderei andar novamente. O que acha disso? Tenho enfrentado chineses a minha vida inteira, sr. Woo. Fu Manchu, Fah Lo Sue, todos covardes e traiçoeiros.

— Mas nem todos são... — Woo começa a protestar, quando a porta do quarto se abre. Um homem constrangido entra e fala:

— Nayland, é melhor irmos andando.

— É... sim. Tem razão, Petrie. Vamos.

— Um dia, sir Denis, sua vida ainda dependerá da ajuda de um chinês! — esbraveja Woo.

O tal Petrie empurra a cadeira de rodas de sir Denis para o corredor e os dois se afastam. Quando Woo se volta, Tarr o olha com uma cara curiosa. O grandalhão diz:

— Sabe, china, sir Denis não é racista. Ele é um bom homem. Eu o tenho acompanhado há muitos anos. Vi sua vida ser destroçada por Fu Manchu. O fracasso na invasão de hoje o deixou com os nervos em frangalhos. Não leve a sério, OK? Mas, cá pra nós, é estranho alguém tomar o soro da imortalidade de Fu Manchu e não morrer. Se eu fosse você, nem contaria isso pros seus superiores. Eu mesmo, se não tivesse visto o estrago que fizeram em você, ficaria desconfiado.

Tarr pára de falar e olha para o rosto de Woo, que pergunta:

— Se nós todos estávamos — ainda que, no meu caso, por engano — indo para o mesmo local, por que não desceram na mesma estação que eu?

— Eu e sir Denis descemos mais à frente, para encontrar o resto do grupo. Se eu soubesse que você acabaria entrando no antro de Fu Manchu sozinho, teria te impedido. Duvido que esse seu Garra Amarela seja tão sinistro quanto aquela cobra.

Woo nada diz.

— De qualquer forma, china, se eu fosse você buscaria uma organização melhor. Cá pra nós, o FBI só é bom em fazer sujeiras, ainda mais em uma missão como essa, onde é apoiado pela CIA. Esse vacilo, por exemplo. Os caras te deram uma informação errada e você acabou dentro da jaula do Fu Manchu. E como te mandam sozinho pra essa merda toda? É, China, acho que tem neguinho querendo te sacanear no bureau. Bom, vou indo. A gente se vê, china. Se cuida.

Woo ri disfarçadamente e diz:

— Você também... inglês.

Tarr sai e Woo fica pensativo. Muitas coisas. Fu Manchu... seria ele ainda pior que o Garra Amarela? Bom, é problema do MI-6. Dois gênios do mal são demais para qualquer um. E SuWan... Fah Lo Sue se pareceu tanto com ela ontem... onde está SuWan? E mais: como Woo poderia contar a verdade sobre o soro de Fu Manchu. Ele sabe por que a poção não o matou. Mas como contar para desconhecidos? Como contar que persegue o maldito Garra Amarela desde o final dos anos 50? Que tem até hoje uma aparência de 22 anos de idade graças a três doses de um outro soro da imortalidade, presente de seu amigo, o coronel Nick Fury (que toma o soro regularmente desde o final da segunda guerra mundial)? Mas o pior é o que Woo está sentindo. De alguma forma, ele percebe que o soro da imortalidade — ainda que o tenha salvo da morte provocada pela ingestão da poção de Fu Manchu — perdeu seu efeito no processo. Ou seja: daqui pra frente, ele envelhecerá normalmente. Não se pode ser duas vezes imortal. Ele se vira na cama, pensativo, e quase é capaz de sentir seu corpo guinchando com o peso de pouco mais de um dia de "velhice".

Uma coisa é certa: ele realmente terá que sair do FBI, como advertiu Tarr. Houve algo estranho naquela missão. Precisa de uma agência que o respeite, que não o envie sozinho para armadilhas. E, principalmente, que tenha agentes que não o chamem de "china".

Três dias depois, Woo está em seu apartamento, em Nova York. Ele olha para o telefone. Hesita. Finalmente, tira do gancho e faz uma ligação.

— Alô? — diz a voz do outro lado.

— Nick? Woo.

— Woo, seu safado. Que é que tá pegando?

— Eu andei pensando sobre aquela sua proposta... — e Woo conta em seguida os detalhes sobre a missão em Honan. Nick faz uma pausa e responde:

— Bom. Tá esperando o quê? A SHIELD começa a funcionar oficialmente em cinco dias. Tu tá no FBI desde os anos 50. Deve tá sabendo de coisas bizarras... eu acho que tem neguinho a fim de te detonar lá dentro. Só isso explica os vacilos dessa missão. Me encontra amanhã pra gente cuidar da tua transferência. Tu vai poder fazer o diabo na SHIELD, china!


:: Notas do autor

(*) "Golden dawn", em inglês.

(**) Em português, "luz do sol dourada".

Saiba mais sobre Jimmy Woo e o Garra Amarela nos sites:
http://www.advancediron.com/yellowclaw.html
http://www.geocities.com/ratmmjess/woo.html

Conheça melhor Fu Manchu, Shang Chi e Fah Lo Sue no site:
http://www.njedge.net/~knapp/NewsOfFu.htm

Visite o Hotel Golden Sunshine no site:
http://www.cbw.com/hotel/goldensunshine/index.html

E leia o arquivo morto do FBI no site:
http://foia.fbi.gov/room.htm



 
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