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Por
Octavio Aragão
Mil Mães
"Quando queimaram meu rosto eu pensava apenas em você. Nada neste mundo tem importância. A não ser rever você."
"Todo ano, os gritos, as visões, o vapor e a risada em meio ao vermelho. Eu assisto. Todo ano, mas não agora. Hoje as coisas estão diferentes. Este é todos os anos juntos, compactos."
"Estou aqui outra vez, caminhando na corda bamba. O medo como amigo, no calabouço do castelo e enfrentando o abismo."
"Por incrível que pareça, em nenhuma realidade você escapou a seu destino, cigana. Eu encaro o subsolo e vejo dezenas, centenas de você, todas queimando."
"Tenho tempo para apenas uma lágrima."
"Adentro o calor insuportável. A armadura me guarda, o dial do check-up interno aponta minha temperatura corpórea e o nível estável de óxido nítrico expelido pela respiração. Estou bem fisicamente, mas o corpo não é tudo. Aqui, o que está mais vulnerável é o intangível. "
"Esqueci quantas vezes caminhei por essa estrada, os pés afundando no lodo, as moléculas das solas endurecidas impedindo qualquer contato com a suprefície poluída. Caminho pelas árvores lamurientas, suicidas, pelo rio de lágrimas. Pago meu óbulo ao barqueiro e atravesso a água salgada de sussuros, armas ao alcance da mão. Tenho uma agenda apertada e não posso me atrasar, o tempo parece louco, mas apenas está obedecendo a outros parâmetros. Se seguir as regras desta realidade, sua geografia e clima, alcançarei meu objetivo."
"O mundo não é mais um só, mas o inferno sempre foi múltiplo, por isso pouca diferença faz o transtorno, a Crise nas Infinitas Terras que assola a superfície. O homem é mero rato, sempre aflito com a segurança da toca. Aqui a toca é que aflige o homem. E a mulher. As mulheres. As mulheres erradas."
"Minhas mães estão aqui e vou resgatá-las. Vim preparado, mas me surpreendo ao encarar o soberano em seu palácio, no centro do abismo. Ele não é apenas um, boca escancarada entre o sorriso e a cicatriz, mas dezenas. Todos falando ao mesmo tempo, encarnação do pandemônio com único propósito: não me deixar sair. Cada um traz acorrentadas à cintura um sem número de mulheres, todas iguais, dançando sobre o carvão."
"Os monstros desafiam em suas várias formas, gritam meu nome como pilhéria, mas além de soldado, também sou um rei."
"Minhas mãos pensam por mim e a ciência dos homens entra em conflito com o arcano. Jatos de luz concentrada no reino do escuro, som alto e agudo demais até para tímpanos de couro, radiação que derrete o granito. Faço pontaria no mais próximo, ajustando a armadura para contração molecular, resistência máxima, desviando as cargas elétricas de minhas baterias para os disparadores manuais."
"Descarrego simultaneamente a eletricidade e uma rajada da mini-metralhadora presa a meu cinto. As balas explosivas recobertas com prata são um velho projeto das indústrias Reid, com quem fiz um acordo financeiro no ano passado já pensando neste momento. A figura vermelha, de chifres e língua bifurcada, é cortada ao meio ainda aos berros. As mulheres correm para meu lado enquanto recarrego minhas armas."
"Uma das vinte baterias está inutilizada e ainda tenho uma infinidade de inimigos a derrubar. Minha conexão parietal baixa dados referentes aos círculos do inferno e seus lordes direto para meu cérebro, mas não tenho tempo para pensar, já que uma entidade cuja mandíbula abre em 180 graus como os tubarões brancos abocanha meu braço esquerdo na altura do cotovelo. Tenciono os dedos e o crânio da fera desaparece numa nuvem de sangue, chovendo sobre as mulheres que dançam em torno de mim, atrapalhando os movimentos. Um olhar para seus rostos me convence que não se trata de comemoração, mas de um espasmo."
"Os gigantes caem um a um, chiados de carne chamuscada. Vou acumulando suas presas, tonto com as feições multiplicadas, todas iguais, todas diferentes. Não, distração é derrota... ainda há muitas gárgulas rimadores, entidades a derrubar."
"Aciono um mapa dos círculos infernais em meu visor e calculo o caminho mais rápido em direção à saída. O inferno nada mais é que uma charada metafísica, e todos os labirintos têm solução se o caminhante se mantiver próximo a uma das paredes. Aos poucos, abandono o armamento, enquanto caminho em direção ao portal que me garantirá retorno. Atrás de mim, as mulheres choram, cantam, riem, enlevam meu espírito. Dão-me forças para ir em frente, derrubando os demônios."
"O último inimigo se agiganta. Ao seu redor, minhas mães remanescentes gemem. Aquelas atrás de mim, ao contrário, aconselham a ir em frente, derrubar o monstro. Agora dependo apenas da armadura e acerto um murro entre a floresta de olhos da criatura. Alguns globos se rompem, derramando uma substância viscosa sobre minha mão, mas as moléculas na superfície das manoplas, desenhadas para resistir a agentes tóxicos, impedem qualquer corrosão, transformando o ácido em cristais inofensivos."
"Um sobre o outro, desferimos golpes poderosíssimos, devastadores. Perco parte de minha proteção e o computador de bordo entra em pane, mas aplico revezes ao adversário. Esmago o que parece ser uma laringe com os dedos em lâmina e escancaro a bocarra com as mãos até ouvir um estalo. Não é um empate, eu venço depois da queda da serpente. Mal acredito quando passo por cima da carcaça, esmagando com o pé forrado em aço o resto de seu orgulho. Nada existe entre o portal e minhas mil mães a não ser minha pessoa."
"Sorrio depois de muitos anos. Eu sou Victor de novo, e não a máscara. E então, esquecendo antigas profecias, resolvo comemorar a vitória iminente com minhas genitoras de múltiplas terras."
"Mas o que vejo por sobre meu ombro são mil cópias de mim mesmo. Todas no chão, despedaçadas, destroçadas, fumegantes. Feitas em pedaços por meu arsenal, por meu orgulho. Nenhum corpo de gigante, nenhuma mulher, nada. Apenas eu, eu, eu... elevado à infinita potência."
"O portal gerado pela matemática humana agoniza à minha frente, último brilho do real, deixando-me sem opções. Atrás, no horizonte vermelho, duas esferas orbitam. E gargalham."
"Um pensamento me ocorre... se o inferno é múltiplo, este ano todo universo é um inferno. E apenas duas coisas são inquestionáveis em todos os mundos: o inferno existe, mas o pior demônio sou eu."
"Salto em direção à luz ao mesmo tempo que outro homem, armadura e equipamento, passa por mim, vindo na direção contrária. O tempo infinito está do meu lado e o diabo ainda não enfrentou seu último destino."
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