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Arturiana Alternativa Especial

Por Dell Freire

As Lágrimas Amargas de Sir Kay

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Em meio a névoa espessa, os últimos convidados chegaram para a festa prestes a se iniciar no castelo de Camelot. Antes um reorganizar de forças do que propriamente uma festa, a reunião no castelo do Rei Arthur ainda se deixava entristecer pela recente morte de tantos bons e honestos combatentes. Porém, à vista de todos, era uma festa que ainda impressionava pela sua pujança e fartura. Novos tempos, tempos de paz, se instalaram em Camelot, novos guerreiros haveriam de surgir para se aventurar no lugar dos que já foram, mas o pequeno grupo de homens e mulheres que sempre se envolvia em torno de Arthur como corvos, para recolher as migalhas do poder, esse sempre existiria.

O nobre Rei Parcival e sua esposa, Lady Elaine, foram os primeiros a chegar. O Rei Parcival estava entre os mais nobres dentre os mais nobres dos Cavaleiros da Távola Redonda, a nata dos que viveram debaixo das sagradas escrituras e das palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo. Dentre os homens do reino, cento e cinqüenta cavaleiros sentavam-se à mesa redonda, dentre estes, apenas doze eram dignos de entrar na câmara do Graal. E dentre esses doze cavaleiros, apenas três possuíam o coração puro para ir o mais longe possível durante a demanda. Eram eles Sir Bohors, Sir Galahad e Sir Parcival.

Segurando as rédeas do cavalo do Rei Parcival, Sir Bohors está ao seu lado para receber e abraçar o seu irmão em vários combates. Um pouco mais atrás, cercada por uma pequeníssima comitiva, vinha a esposa do Rei Parcival, Lady Elaine, sacerdotisa do Graal que o seduziu com seus encantos. Parcival tomou-a como esposa, tornou-se o novo Rei Pescador e passou a reinar no Castelo de Carbonek, no reino de Logres, acima das águas revoltas do Mar de Collibe. A voz do povo, agora desassombrado pelo fantasma da fome, costumava dizer que era exatamente no Castelo de Carbonek que estava guardado o Santo Graal, o cálice que curaria todos os males e que sustentava o reino.

Sir Bohors cumprimentou Lady Elaine com um breve aceno de cabeça, ao qual ela respondeu também discretamente. Demonstrava ser uma mulher de temperamento difícil, irônico, e sempre disposta a interferir nas questões do reino de Camelot. Com isso, não era vista com bons olhos pelos outros cavaleiros.

O Arcebispo de Cantuária, que havia chegado minutos antes, também surgiu para cumprimentar os recém-chegados. O Arcebispo Dustan, ou Saint Dustan, como era chamado por aqueles que reconheciam e antecipavam seu alto valor na Terra, possuía um rosto com traços fortes, voz cordial e uma mão de aperto firme, como bem comprovou o Rei Parcival. Todos ali tinham sua opinião em alta conta e respeitavam seu juízo, sendo muito do que o Arcebispo dizia ouvido pelo próprio Rei Arthur. A voz popular, praticamente onipresente em um reino de tamanha envergadura, sempre enxergava o Arcebispo da Cantuária ora como um severo representante de Deus contra os poucos adeptos remanescentes das doutrinas mágicas, ora como um dissimulado adepto de antigas tradições arcanas e alquímicas. Tais mentiras populares, enxergadas pelo Arcebispo como crendices e folclores, eram os únicos dizeres que, se repetidos à sua frente, o tiravam do sério. Quem ousasse acusá-lo de tamanha heresia entraria em debate acalorado e interminável.

Rei Leodegrance, outro convidado de honra, pai de Guinevere, era um homem em que o tempo já deixava suas marcas, porém recusava-se a deixar que lhe roubasse o vigor. Foi um dos primeiros cavaleiros a desembainhar a espada para lutar ao lado do Rei Arthur, retirando sangue do inimigo que ousasse questionar a sua legitimidade, e, aos sessenta anos, colhia a glória e o respeito por anos e anos de bons serviços à Bretanha. Ao lado de sua filha Guinevere, era um dos mais influentes conselheiros do Rei. Esta recebeu o pai e se recolheu em seus aposentos, reclamando de fortes dores de cabeça que a impediriam de bem aproveitar a festa.

"Junto a homens de tamanho valor, de visão assertiva e predisposição para lutar o bom combate, como pode ainda duvidar que Camelot esteja se reerguendo?" disse o Rei Leodegrance, enquanto se fartava com sucessivos e suculentos nacos de frango assado.

"Tenho consciência que o que eu falo pode vir a ser confundido com a Palavra de Deus; mas nada do que digo deve ser confundindo com dúvidas sobre a consolidação deste reino", afirmou o Arcebispo, evitando tocar a comida com o mesmo ímpeto que seu interlocutor. "Pequenos crimes ainda acontecem, em menor escala, entre a população. E tais crimes não devem ser tolerados, pois não são motivados pela presença da necessidade, mas sim pela ausência de caráter. E esta ausência mostra-se presente em tempo de guerra ou de paz, em tempos de fartura ou carência"

"Pode-se, quem sabe, pensar em uma revolução começada e desenvolvida dentro de nossas próprias estruturas" afirma o Rei Parcival "Camelot dá ao povo o que ele mais quer, que é a paz e a fartura. Sustentar tal estado de coisas e prolongá-lo por mais algumas décadas pode exigir uma antevisão de nossos próprios passos. Sem tolerância aos pequenos crimes"

"Cuidado, meu nobre amigo", admoesta o Rei Arthur "O sol que sustenta o solo, aquece o espírito e ilumina os nossos dias pode ser o mesmo sol que resseca plantações, castiga a pele e cega nossas vistas. A intensidade da moral que temos sobre o povo pode sustentá-lo ou maltratá-lo"

"Minhas palavras não surgiram com intuito de serem maiores do que foram, milord"

"E minhas palavras tem a tendência a concordar com suas palavras, Rei Parcival", prosseguiu o Arcebispo Dustan. "A tolerância sobre os crimes de qualquer monta deve ser zero. Ou isso ou põe-se em risco a fase áurea que aqui e agora se inicia; risco esse, quem sabe, já iniciado pelos recentes assassinatos na Abadia de Belaventura..."

"Assassinatos?" Surpreendeu-se o Rei Arthur "Informaram-me que houve um assassinato e não assassinatos"

"Lamento ser o mensageiro a lhe informar que o vil assassino que mata nossos monges já cometeu três crimes em cerca de dez dias. E, na mesma intensidade em que acredito que tal crime não vá parar espontaneamente, acredito que o criminoso se esconde no interior da Abadia"

"Mas Arcebispo, o que me diz é muito grave. Um dos próprios monges seria o criminoso?"

"Sem dúvida, Majestade. E acho que um de seus Cavaleiros deva ser o homem que vá resolver isso"

"Meu querido Saint Dustan, como sabe ainda guardamos luto pela passagem de nosso nobre Cavaleiro Sir Lancelot e tentamos juntar forças para aparar as arestas e consolidar a já presente boa fase do nosso reino. Não tivemos condições e nem tempo para ocupar as vagas dos Cavaleiros mortos; lamento saber da gravidade do que acontece nos interiores da Abadia de Belaventura".

"Não fosse o peso da idade sobre mim", o Rei Leodegrance limpa a boca com as costas das mãos. "Seria eu a fazer pesar a espada sobre o corpo do assassino".

"Aquiete-se, meu bom Leodegrance. Acho que esse fardo ficará sobre os ombros de Sir Gawain"

"Gawain?" ri o Rei Parcival. "Gawain não se encontra nem em nossa presente festa, milord; soube que ele e Gaheris estão em embate verbal neste momento, envolvidos em pequenos e insidiosos conflitos entre irmãos".

"Deus tenha piedade deles! Será que querem repetir a triste sina de Sir Balin e Sir Balin?" O Rei Arthur se volta ao Arcebispo. "Afirmo que chegarei a novo nome, Saint Dustan, mas o caso pode vir a ser grave e preciso de alguém que trabalhe eficiente e discretamente".

"Por que não Sir Kay?" a pergunta da bela Lady Elaine fez com que o Rei Parcival apertasse a mão de sua esposa, como que a querendo calada.

"Não a censure, Parcival", Sorri Arthur, percebendo o que houve. "Sou o primeiro a reconhecer e admirar as opiniões alheias, ainda mais quando vem de uma Rainha a qual respeito. Mas confesso que, dentre os Cavaleiros que possuo, Sir Kay é um dos que mais está ocupado neste momento"

"Vinho e carne da melhor qualidade!" Grita um entusiasmado Rei Leodegrance, erguendo uma taça.

"Não apenas isso, Rei Leodegrance. Além de ser o responsável pela administração do Castelo, é nele que agora repousa a sabedoria do meu amado e falecido Merlin. Estudioso de livros, da ciência e do maquinário esboçado por Merlin, assim é o meu irmão. Então, além das funções de Senescal, Sir Kay é o meu braço direito. E, milady, pode um rei erguer alguma espada sem o seu braço direito?"

"Majestade, apesar da contínua pressão da mão de meu marido, gostaria de lhe dizer que os tempos que vivemos são os mais justos e felizes graças à sua condução. Viverá a sua espada mais em sua bainha do que em sua mão. É necessária a atenção para que pequenos fatos não pareçam mal aos olhos de nosso povo. Cabe a cada qual cuidar de seu cada qual. Não foi erguida a Abadia de Belaventura em homenagem a vitória de três Cavaleiros da Távola Redonda contra cinco reis que tentavam matar o senhor e sua amada senhora? E nesse dia, dentre os três cavaleiros, não teve maior destaque a ação de Sir Kay, que enfrentou e derrubou dois dos cinco reis? É justo que ele mesmo venha a combater o mal que aflige aquele canto".

"Sim, talvez o que diga seja verdade". O Rei Arthur, suspira fundo. Sabia que a opinião de Lady Elaine o colocara em uma situação difícil: se enviasse Sir Kay, perderia por alguns dias, talvez semanas, um bom conselheiro empenhado em solidificar o reino; se não enviasse Sir Kay, poderia pairar dúvidas sobre a coragem e capacidade do seu irmão em servir ao Rei.

"Lucan!" Arthur chama um de seus mordomos, que, sob as ordens e orientações de Sir Kay, estava conduzindo a pequena festividade da melhor forma possível. O mordomo aproxima-se do rei e coloca seu ouvido próximo à sua boca para ouvi-lo. "Vá até os aposentos de meu irmão e o chame para participar de nossa pequena reunião. Diga a ele que assuntos inesperados clamam por uma decisão que só ele pode tomar".

A conversa entre o anfitrião e os convidados prossegue animadamente distante do assunto relacionado aos crimes da Abadia. Até que, minutos depois de ser chamado, Sir Kay entra nos aposentos. Para surpresa de todos os presentes, caminha com um cajado à mão, o Cajado de Merlin, encimado pelas pequenas figuras das cabeças entrecruzadas de dois dragões. O Arcebispo se mostra inquieto, franzindo a sobrancelha e evitando olhar para o irmão de Arthur.

"Majestade, o senhor chamou, eu vim!" disse Sir Kay.

O Rei Arthur levantou-se, quase como se o medisse de cima abaixo e o abraçou. Voltou a olhá-lo nos olhos:

"Irmão, nosso reino está assombrado por um crime hediondo. Posso abusar mais de seus serviços?"

"Nasci apenas para servi-lo, milord"

"É importante, meu amigo Kay, que sirva apenas a um rei e a um só senhor". O Rei Parcival aponta para o Cajado. "Que absurdo é esse? Não está nosso reino sob a benção de Cristo e não sob a benção das velhas tradições? Ou será que os livros do velho Merlin deformaram sua virtude?"

"Rei Parcival, dos mais nobres cavaleiros, junto a Sir Bohors e junto ao saudoso Sir Galahad, tenho a lhe dizer que deformada é apenas uma das minhas pernas, graças aos combates que travei em nome do meu Rei. Manco de uma perna, meus passos não têm a velocidade de outrora. Quando Lucan me chamou, estava envolvido em leitura e minha perna não respondia à altura. Dentre os espólios de Merlin havia esse cajado que é, em redução de sentido, apenas um cajado. Vê seus olhos algo em minhas mãos além do cajado?"

"Talvez o signo do demônio, o dragão!" Se Lady Elaine não se contivesse, o Rei Parcival acabaria quebrando-lhe a mão, tamanha a pressão que sofreu.

"Milady, às vezes, um cajado é só um cajado. Apenas serve para me apoiar. Quanto ao dragão... Bem, acredito que a senhora jure obediência ao Rei Arthur, não é verdade?"

"Sir Kay, não entendo exatamente..."

"Jura obediência ao Rei Arthur Pendragon, milady? Ou também questiona se o dragão que tremula em nossas bandeiras serve a alguém mais do que a Deus?"

Encerrada a discussão, o Rei Arthur aponta uma das cadeiras para que Sir Kay possa se sentar à mesa e, em instantes, ele explica toda a situação envolvendo a Abadia de Belaventura.

"Tenho que concordar, irmão", diz Sir Kay. "Os assassinatos, caso progridam como estão progredindo, serão inoportunos. Mas, perdoe-me a sinceridade, não há outro homem em nossas fileiras que possa assumir essa tarefa?"

"Como bem lembrou a Lady Elaine, imaginamos se não seria interessante consultá-lo de seu interesse em assumir essa demanda, pelo que representa a Abadia para seu valoroso passado. O que nos diz?"

"Digo que Lady Elaine mostra-se mais atenta para as necessidades do reino do que qualquer um de nós nesta mesa, salvo nossos valiosos reis aqui presentes e a figura eminente do Arcebispo", Sir Kay inclina a cabeça para Lady Elaine, esta sorri um sorriso partido.

"Tem consciência que não haverá outro cavaleiro ao seu lado nessa cruzada, meu irmão?"

"Peço apenas o apoio de um jovem pajem que pode vir a ser um dos nobres Cavaleiros do nosso futuro".

"Não vejo problemas nisso", sentencia o Rei Arthur. "Pela manhã você e seu pajem seguirão com quatro dos melhores cavalos, revezarão a montaria neles para descansá-los e, com fé em Cristo, resolverão os crimes que estão a perturbar nosso reino"

As maiores armas contra as quais Camelot jamais encontrou artifícios ou barreiras suficientes são os lábios de uma mulher. São eles que sugerem, ao ouvido do amante, quais os aliados são do seu maior agrado. São eles que sugerem, para um rei, como conduzir seus negócios. São eles que, sinceros, clamam a Deus por uma dádiva e prometem aos homens o paraíso eterno. São esses lábios que mordem, ferem e acariciam. E são os lábios de uma mulher que agora movem Sir Kay para a investigação de um estranho crime que, se tudo acontecer como Lady Elaine quer, terminará em sua morte.

O trotar dos cavalos fazia o Senescal de Camelot pensar melhor. Havia calculado mal a intenção de Lady Elaine em se casar com o agora Rei Parcival; se, para ele, Parcival era e sempre será um aliado dedicado em quaisquer batalhas e um servo de Deus inabalável, a rainha deixava-se levar por seus instintos mais baixos e seus interesses pessoais, por ser uma das sacerdotisas do Graal e descendente direta da sagrada linhagem de José de Arimatéia. Talvez o Rei Parcival não tenha notado, mas a Rainha Elaine, que o seduziu e o levou a ser o novo Rei Pescador e dono do Castelo do Graal, possuía planos claros de combate a tudo o que considerasse desonroso aos ensinamentos de Cristo e da Sagrada Igreja Católica.

Sir Kay sabia que o peso do conhecimento prático, ainda hoje confundindo com magia, era um novo estigma que carregava. Sua fé inabalável e seu amor a Deus eram mais preciosos para ele do que a própria vida. Mas o conhecimento do falecido Merlin era algo que, enraizado pelo estudo racional das leis do reino animal e do reino mineral, bem como das leis que sustentavam a Terra e seus pés sobre ela, agora eram de sua inteira responsabilidade.

"Observe adiante!" A voz ansiosa de Tom, o pajem que conduzia os cavalos, mal podia se conter ao avistar a Abadia de Belaventura. Bem sabia ele que, qualquer que seja o resultado da aventura, ela poderia ser um degrau de grande valia em seus interesses em sentar lado a lado com os lendários Cavaleiros da Távola Redonda e o próprio Rei Arthur.

Assim que se aproximaram da porta da Abadia, os olhos dos recém-chegados avistaram um pequeno grupo de monges no que parecia ser uma pequena procissão a sair de sua morada. Alguns seguravam velas, outros oravam em meio a lágrimas e havia ainda aqueles que se flagelavam com correntes. Dois dos monges mais fortes seguravam um escudo; deitado nele estava o corpo sem vida de um homem com rosto desfigurado, braço esquerdo carcomido e meio mastigado. Sem dúvida, o ataque que ele sofreu foi dos mais violentos. Vestia uma túnica nova, limpa, de cor marrom, talvez o último resquício de dignidade que ele teria antes de se encontrar com Deus, Nosso Senhor.

Deixando os cavalos trotarem, Sir Kay e Tom aproximaram-se.

"Boa noite, senhores" O monge mais velho aproximou-se dos visitantes sem temor do desconhecido e segurou a rédea do cavalo que trazia o irmão do rei. "Vejo por suas vestes que são de origem nobre e que viajam por algumas horas. Lamento que os ventos que os trazem não tenham sido dos melhores, pois, se fossem, não chegariam no exato momento em que estamos prestes a enterrar um de nossos mais queridos e sábios irmãos"

"Não maldiga o vento, servo de Deus". Sir Kay apeou do cavalo com certa dificuldade, ajudado por Tom que, em seguida, lhe entregou o cajado, o auxílio necessário para se aproximar do corpo. "O vento sabe a hora de chegar e o que trazer com ele. Não é de muito que admiro a sabedoria da natureza e, ao invés de combatê-la, tenho a tendência de consultá-la".

"E quais as intenções do céu e da terra em te trazer aqui?"

"Dos desígnios do céu, sou ignorante", Sir Kay nota que o morto foi completamente desfigurado como se óleo fervendo tivesse caído sobre seu rosto. Tocou o pescoço dele. Estava quebrado. "Mas dos desígnios dessa terra, da Bretanha, conheço bem. Sou Sir Kay, enviado pelo Rei Arthur para investigar os assassinatos que aqui acontecem"

"Perdoe-me, milord. Não acredito que haja mais o que fazer. Como poderão apenas dois senhores, um coxo e um jovem, lutar contra a fúria de um dragão?"

"Dragão!?" espanta-se Tom.

"Levem esse corpo para dentro, pois irei analisá-lo", Sir Kay ordena. "Dêem-me todos os objetos perfuro-cortantes que existirem na abadia. Quero analisar a extensão do dano causado, o que houve no interior e no exterior do seu corpo para conhecer contra quem estamos lutando. Homem ou dragão, tenho certeza que esse agressor não usa de subterfúgios de outro mundo para atingir seus objetivos!"

A noite foi passando e quem chegou em seu lugar foi uma manhã de sol forte. Mas a noite dos dois servos do bom Rei Arthur foi passada em claro. O sol estava forte, mas ainda assim dois enormes castiçais acessos ajudavam os olhos de Sir Kay para a observação cuidadosa do objeto que cortava, a pele ressecada do cadáver. Uma incisão precisa na tampa craniana e um movimento firme das mãos foram o suficientes para retirá-la. Tom aproximou-se, mas afastou-se de imediato. O fedor e a visão interna do morto não faziam seu estômago comportar de maneira dócil.

A visão de pequenos vermes rastejando pelo cérebro do monge morto fez Tom acreditar que aquele corpo estava dominado por ovos de dragões. Sem demonstrar muita consideração pela opinião de seu pajem, Sir Kay voltou a tampar a cabeça do cadáver, explicando em seguida as relações existentes entre o consumo de carne de porco mal cozida e determinadas doenças estudadas por Merlin.

Desconcertado e cansado, pela noite em claro, Tom sentiu-se inútil naquele método investigativo e pediu licença para se recolher aos seus aposentos, no que o irmão de Arthur, necessitando de silêncio, atendeu prontamente. Enquanto o jovem fechava a porta, o cavaleiro examinava a face desfigurada do homem, que o intrigara desde que a viu. Porque alguém se daria ao trabalho de jogar um ácido no rosto do inimigo já morto? Haveria interesse em não identificar a vítima? Ou seria esse apenas um capricho sem sentido do criminoso? E tal homem seria uma espécie de canibal, um devorador de seus semelhantes? Ou, o que não acreditava, não seria esse um homem?

Pelo que observara do braço mastigado, um ser vivo havia se deitado sobre o monge com fins de se alimentar de sua carne. Com este, já eram quatro as vítimas. Todas, segundo o monge que os recebera, tiveram partes do corpo amputadas, como se a criatura ou o homem fosse movido por uma fome animal, uma necessidade visceral.

Em meio a seus pensamentos, Sir Kay ouviu um grito. Um grito que veio do quarto de Tom. Sua espada, sua mais recente espada, que raramente era erguida nos últimos momentos, não iria voltar a sair da bainha. Com uma das mãos segurou seu cajado e, com a outra, pegou um pedaço de madeira e fez uma tocha. Sua visão, com o passar dos anos, estava fraca e sempre que podia pedia auxílio ao fogo.

Segundos antes, quando Tom gritou, foi de dor e não de susto. Um cavaleiro de armadura estranha, tão silencioso quanto rápido, invadiu seus aposentos e começou a investir num ataque furioso que durou cerca de um minuto. A armadura era completamente negra, parecia aderir ao corpo do cavaleiro, o elmo era enorme, desproporcional aos que habitualmente eram usados, e um adorno, semelhante a uma cauda, descia das costas do Cavaleiro Invasor. De destreza ímpar, não se via como ele manejava sua espada, mas o efeito de seu aço era tão ou mais cortante que o de qualquer outro cavaleiro.

Tom foi rápido na defesa, pois sempre que ia dormir deixava sua espada deitada ao seu lado, mas o ataque do Cavaleiro Invasor era destruidor. Tom contou quatro investidas de uma espada em poucos segundos, sem nem saber de onde veio e sem nem saber como mal a segurava; tinha certeza que não enxergara a espada inimiga, graças à habilidade do seu oponente.

Partiu para o ataque e, com dificuldades, golpeou sua espada contra o cavaleiro que, sem recuar, não pareceu sentir nenhum golpe, até o pajem sentir um pequeníssimo jorro de sangue do seu oponente.

Exatamente aí Tom deu seu grito, pois a espada do Cavaleiro Invasor passeou pelo ar, sem ser vista, e queimou como se de ácido fosse feita, pegando de raspão seu braço. Para sua surpresa, o elmo do inimigo fez um pequeno movimento para trás, parecendo querer levanta-se e mostra-se. Mas, antes que isso pudesse acontecer, Sir Kay adentrou nos aposentos, empunhando a tocha.

Nesse momento, o Cavaleiro Invasor avançou para o irmão do Rei Arthur. Desarmado e num gesto de impensada defesa, Sir Kay encostou-se na parede e esticou o braço, usando o fogo da tocha como a única arma que restara. Para sua surpresa, o outro se intimidou a ponto de sair pela porta imediatamente.

Sir Kay não acreditava na ousadia e rapidez da confrontação pela qual passara. E precisou dar uma resposta à altura.

"Tom, siga-o imediatamente. Leve-o até a sala de fundição da Abadia".

Sir Kay tinha consciência que ambos tiveram a graça de Deus para sobreviver a combatente de tal estirpe; e que, dentro de condições normais, não seriam eles a enfrentar e derrotar o Cavaleiro Invasor. Era necessária, para a ocasião, uma nova idéia, uma nova arma que desse uma vantagem que eliminasse o confronto físico direto, no qual o inimigo mostrara uma habilidade ímpar. O modo como o seu fogo retirou a concentração do Cavaleiro Invasor foi determinante para a escolha do novo passo.

Os monges da Abadia de Belaventura eram conhecidos pela extrema presteza na fundição de rochas e metais; muito de sua subsistência vinha de tal trabalho, da exploração de recursos naturais. O ambiente reservado para a fundição não fugia dessa preocupação dos monges. Em algumas trocas de cartas, os líderes do monastério e Sir Kay resolveram construir um novo engenho, desenhado por este último. O esforço de meses de trabalho dos monges resultou na construção de uma armação de aço de 29,50 côvados com uma larga face, formada por milhares de espelhos que refletiam a luz do Sol. Sir Kay acreditava que, no forno onde se fundiam rochas e metais, a temperatura poderia ser elevadíssima. Ainda que um esboço tímido, o irmão de Arthur pensou em adaptar tal invento para a construção de uma nova arma. E, enquanto corria com dificuldade para fora da abadia, para onde estava a estrutura metálica que alimentava o forno, rezava para que Tom conseguisse confrontar o Cavaleiro Invasor até a sala de fundição.

Ao chegar na enorme estrutura metálica, de fora da abadia, começou a posicionar os espelhos maiores, através das manoplas inferiores que as moviam, de forma a aumentar a intensidade do raio de sol.

"Tom!"

O chamado de Kay não obteve resposta. No interior da Abadia, o pajem estava a erguer sua espada em furiosa luta contra o inimigo; ainda que sua armadura fosse pouco convencional, o homem mostrava-se ágil dentro dela. A espada, como sempre, parecia invisível, tamanha a velocidade com que o cavaleiro a brandia; Tom, aguerrido, não tinha forças para evitar boa parte dos golpes, como evitou ao começo do confronto. Sangrou em partes do seu corpo, pois alguns golpes passavam; mas não se rendeu para cair ao chão. Os lutadores começaram a passar por vários corredores; alguns monges já acordados se esconderam, outros nem a porta de seus aposentos abriram.

Quando chegaram à frente da sala de fundição, Tom ficou tenso, tinha consciência que precisava ser rápido. De costas para a porta, encarou pela última vez o seu inimigo; jamais se esqueceria da imagem do Cavaleiro Invasor à sua frente, armadura negra, cabeçorra balançando pelos lados, mãos aparentemente desarmadas e as pernas prestes para saltar em cima dele. No alto do salto, Tom abriu a porta da fundição, sentindo o homem passar como um relâmpago, quase levando seu espírito junto. Fechou a porta imediatamente.

No interior da sala de fundição, o Cavaleiro Invasor ficou confuso. A quarta parede estava aberta, dando para fora da Abadia e de frente para a construção desenhada por Sir Kay e montada pelos monges. Parecia que dois monstros anacrônicos se encararam naquele último instante.

Num movimento rápido e usando toda a força de seu corpo, Sir Kay abraçou a chave, acionando-a através de uma forte seqüência de impulsos de baixo e para cima repetidas vezes; a força da construção era tamanha que, quase que imbuída de vida própria, também suspendia Sir Kay verticalmente para cima e para baixo, repetidas vezes, retirando-o do solo. Embora ninguém tenha presenciado tal momento, se alguém ali estivesse se questionaria se era o criador que movimentava a máquina ou se era a máquina que movimentava o criador.

A máquina absorvia agora uma quantidade imensa de energia solar. Quando o Cavaleiro Invasor decidiu-se por pular sobre a invisível quarta parede para fugir ou mesmo atacar Sir Kay, o raio de ação do maquinário se alargou, não focando apenas para o forno da fundição, mas passando a crescer rapidamente e a dominar toda a sala de fundição. O cavaleiro, em chamas, começou a urrar um grito que parecia vir de outro mundo, mas era simplesmente o urro de um homem prestes a morrer, prestes a encontrar com seu destino. Seu corpo começou a parecer borbulhar. A distinção entre onde começava sua carne e onde terminava sua estranha armadura agora era impossível. De que reino viera, com quem conseguira tamanha agilidade e porque matara os quatro monges de forma tão animalesca seriam mistérios cremados junto com ele. Em poucos minutos, apenas restariam cinzas do assassino da Abadia de Belaventura.

"Em nome de Deus, de São Miguel e de São Jorge, eu vos armo cavaleiro. Sede valente, leal e generoso." A lâmina da espada do rei passou por cima dos ombros do novo cavaleiro.

"Juro servir fielmente durante toda a minha vida a Deus e a meu senhor, Rei Arthur Pendragon", respondeu aquele a quem, a partir daquele momento, todos tiveram que passar a chamar de Sir Thomas, um dos novos Cavaleiros da Távola Redonda. A partir daquele momento, Sir Thomas poderia ter seu cavalo próprio e suas armas pessoais. Outros cavaleiros se chegaram e abraçaram o novo irmão em armas, enquanto um Rei Arthur muito animado deu inicio aos festejos.

Saint Dustan, o Arcebispo da Cantuária, cumprimentou Sir Kay pelo sucesso em sua missão. Os Reis Parcival e Leodegrance conversavam animadamente entre si, já começando a sentir os efeitos do vinho. Por detrás dos dois, solitária à mesa, Lady Elaine não deixava de demonstrar o seu descontentamento. Queria Sir Kay morto, bem como todas as referências à cultura desenvolvida e sustentada por Merlin. Aquela foi a primeira investida contra ele, teria sido a última?

Agradecendo e tentando se desvencilhar de um muito animado Saint Dustan, Sir Kay pediu licença ao rei para voltar aos seus aposentos. Tinha muito ainda a estudar. Trocou um último aceno de cabeça para Lady Elaine, sem esconder um pequeno sorriso para ela, o que fez o sangue da esposa do Rei Parcival ferver de raiva. Não foi um sorriso de vitória, de complacência ou pena. Mas um pequeno sorriso que a agradecia por oferecer a ele a oportunidade de ter contra quem lutar, de ter contra quem se defender. Chegando quase aos cinqüenta anos, Sir Kay tinha consciência que a vigília diante de um bom inimigo era o que poderia manter um homem de sua idade desperto e vivo. E a agradecia sinceramente por isso.

Empunhando o Cajado de Merlin, para melhor firmar sua perna manca, retirou-se enquanto os festejos atingiam o seu auge. O trajeto para seus aposentos não era dos mais difíceis, mas era sempre solitário, prenhe de reflexões e sempre ausente de companhia. Não. Na verdade havia uma companhia. Enquanto dava seus passos, observava sua sombra a acompanhá-lo e a imitar seus gestos. Pesando mais do que seu passado honroso como Cavaleiro da Távola Redonda e pesando mais do que seu presente como sustentáculo dos conhecimentos científicos de Merlin, talvez esse seja o estigma que ficará marcado a ferro e fogo na lembrança de todos. Um estigma que definia como era visto pelos outros, como seria retratado em poesias ou como seria lembrado pelo povo do futuro. Apenas uma sombra. Ou melhor, a Sombra Coxa do Rei.

Sir Kay retirou seu molho de chaves da algibeira.

Entrou em seus aposentos.

Descansou o cajado na parede.

Fechou a porta.




 
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