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Questão # 07

Por Fernando Lopes

Trabalho Sujo

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— ... Go ahead, punk. Make my day...

Sentado na sala eternamente bagunçada de seu apartamento, apenas de cuecas e camiseta, o comissário Izzy O'Toole assistia Dirty Harry pela enésima vez, sem grande interesse. "As coisas são bem mais fáceis quando se é o Clint Eastwood. Queria ver você se virar bem por aqui, senhor Callahan", pensou, achando graça na idéia. Subitamente, sentiu um arrepio na nuca. Instintivamente, procurou a arma que mantinha sempre próxima a si e apontou-a na direção do homem de sobretudo azul sentado no parapeito da janela.

— Não devia ficar assistindo essas coisas. Vai acabar se tornando um tira violento.

— E você ainda vai ganhar um buraco na testa uma hora dessas. Já ouviu falar em porta?

— Você deixaria alguém como eu entrar? — disse o Questão, a luz da sala iluminando a máscara que lhe escondia totalmente as feições.

O'Toole levantou-se e foi procurar as calças.

— O que quer?

— Ouvi dizer que você acha que Johnson foi assassinado.

— A idéia me ocorreu. — O'Toole desligou a TV e passou a olhar fixamente para o Questão — Os guarda-costas dele estavam apagados. Todos os oito. "Era um grandalhão sem cara e de sobretudo azul", disseram. O pessoal do hospital que atendeu o neto de Johnson também mencionou um certo "homem sem rosto". Não conheço muita gente que caiba nessa descrição.

— E você acha que eu o matei?

— E por que não? Você mesmo me disse que o queria.

— Não é meu estilo. Johnson era um porco, mas eu não sujaria as mãos com ele. Fui lá para conseguir provas. Ele puxou a arma e acabou atingindo o neto acidentalmente. Pelo visto, não agüentou a culpa. (N.E.: veja na edição anterior)

— Só isso?

— Apenas os fatos — respondeu o Questão, voltando-se para a janela e preparando-se para sair — Os resultados do laboratório vão acusar resíduos de pólvora nos dedos de Johnson. A bala que atingiu o garoto foi disparada pela mesma arma que redecorou as paredes do escritório com os miolos dele. O ângulo do tiro e a posição do corpo vão confirmar que o velho preferiu acabar com a própria vida a suportar a culpa pela morte do neto.

— Por que eu deveria acreditar em você?

— Eu tenho cara de mentiroso?

Em um segundo, O'Toole estava novamente sozinho. "Pois é, senhor Callahan", refletiu consigo mesmo, "queria ver o senhor se virar em Hub City".

O sabor do café sem açúcar era menos amargo do que o sentimento de frustração que tomava a mente de Vic Sage naquele dia.

— Você está com uma cara péssima, Vic.

— Não dormi muito bem, Tot.

— Ainda pensando no garoto?

Sage deixou a xícara de café sobre a mesa e virou-se na direção de Aristotle Rodor. Tinha um aspecto cansado e abatido.

— O que foi que eu fiz, Tot? Qual o resultado efetivo da minha "cruzada"? Um velho gângster morto e uma criança no hospital. Johnson ainda nem esfriou na cova e os "negócios" dele já estão nas mãos da Máfia e da Tríade. As drogas e armas que ele vendia não ficaram nem um minuto fora das ruas. Fez alguma diferença, afinal?

— Você fez o que achou que devia fazer, e nada mudará o que já está feito. E o garoto?

— Ficará bem. A bala não atingiu nenhum órgão vital. Parece que vai ficar sob a custódia dos avós maternos.

— Menos mal... — Rodor buscava uma forma de compensar o amigo, que considerava como a um filho — O que vai fazer agora?

— Se está perguntando em termos amplos, não sei bem ao certo — respondeu Vic, levantando-se — No momento, sei que preciso ir para a emissora. O show deve continuar. E não vai ficar esperando por mim.

Meia hora depois, Sage tentava manter-se concentrado na pauta daquele dia.

— Ué, quem morreu?

— Oi, Cameron. Nada de mais.

— Sua cara está uma merda. Quer um café?

— Vamos lá.

Foram até a copa. Vic percebeu que apenas a senhora McIntire e a jovem Susie estavam trabalhando.

— Ué, por onde anda a Consuela?

— Não vem há dois dias... O pessoal já está a fim de mandá-la embora. No mínimo, apanhou do marido outra vez. No começo eu até tinha pena, sabe? Mas eu acho que, se ela continua com ele, é porque gosta. Uma vez...

Vic não prestou atenção nas palavras de Dick Cameron. Tinha um mau pressentimento.

O pequeno apartamento estava revirado e às escuras. O cheiro característico da morte entrava pelo filtro da máscara, sufocando-o com a certeza de que tinha chegado tarde demais. O corpo de Consuela Rodriguez estava no quarto, caído aos pés da cama. As marcas roxas ao redor do pescoço deixavam clara a causa da morte. Uma série de hematomas e lacerações demonstravam que ela tinha sido brutalmente espancada. Não havia dúvidas sobre a autoria do crime. Consuela morreu pelas mãos do marido, o mesmo homem que ela defendera dois meses antes, quando o Questão tentou impedir que fosse vítima de mais uma surra. O vigilante sem rosto deixou o apartamento pela janela, como tinha entrado. Ligou de um telefone público para a polícia, identificando-se como um vizinho. "É tarde para ajudar Consuela", refletiu com amargura. "Mas não para punir seu assassino".

O bar era escuro e enfumaçado. Quatro homens jogavam sinuca, enquanto outros dois observavam no balcão. Duas prostitutas e um travesti depenavam dois bebuns no canto. Uma velha jukebox tocava uma música latina num tom insuportavelmente alto. O Questão parou na porta do bar, a iluminação da rua formando uma espécie de halo atrás dele. Ninguém pareceu dar muita atenção. Com o pé, o vigilante puxou o fio da tomada, deixando o local em silêncio. Todos os rostos se voltaram em sua direção.

— Ei, cabrón, o que 'ce pensa que tá fazendo? — gritou o barman, irritado.

— Miguel Rodriguez. Onde ele está?

— Quem quer saber? — perguntou um dos jogadores, desconfiado, avançando com o taco na mão.

— Sua mãe não lhe ensinou que é falta de educação responder uma pergunta com outra pergunta? — respondeu o Questão, saindo das sombras para a área mais iluminada. O homem recuou dois passos ao notar o que o estranho não tinha rosto. — Eu perguntei onde está Miguel Rodriguez.

Refeito do susto inicial, o jogador decidiu enfrentar o vigilante. Os outros três também se aproximaram.

— Ninguém aqui sabe onde ele tá. E mesmo que soubesse, não ia dizer. E aí, algum problema?

Sage ficou imóvel por um segundo. Sem qualquer aviso, agarrou o jogador pelos cabelos e bateu com a cabeça dele sobre a mesa de bilhar, deixando-o desacordado. O barman fez menção de pegar alguma coisa embaixo do balcão, mas foi atingido por uma bola de bilhar no meio da testa. Com o pé, o vigilante ergueu o taco do sujeito caído e, num movimento rápido, girou-o por trás das costas e parou a dois centímetros do rosto de outro jogador, que começava a mover-se em sua direção. Seu pretenso oponente estancou, atônito com a velocidade dos movimentos do homem sem rosto.

— Bem, vou perguntar com educação mais uma vez: onde está Miguel Rodriguez?

O assassino de Consuela Rodriguez estava escondido em um hotel barato na região do porto. Esperava que Alonso trouxesse o carro que usaria para cruzar o país e chegar à fronteira com o México. Uma vez de volta à sua terra natal, nada teria a temer. "Deve ser ele", pensou, ao ouvir a batida na porta. Ao abrir, sentiu o impacto de um punho diretamente no nariz, recém-recuperado da fratura anterior. Voou sobre a cama, caindo do outro lado.

— Você? — perguntou, incrédulo.

— Você vem comigo.

— Nem fodendo! — berrou Miguel, pegando uma faca — 'Ce vai morrer, hijo de puta.

— Vá em frente. — disse o Questão, impassível — Me faça ganhar o dia...

O detetive Sorensen olhava a tela do computador com má vontade. Mais uma morte de chicanos para cuidar. Oito queixas de distúrbios feitas pelos vizinhos só nos últimos dois meses. A mulher acabou estrangulada, o marido deu no pé. Caso encerrado. Quem se importa, afinal?

— Mike, Mike, você precisa dar um pulo aqui fora!

— Ah, qualé, Neil? Não tô com saco pra piadinha a essa hora.

— É sério, cara, chega aqui!

— Já vou avisando, se for uma das tuas gracinhas, vou lhe dar uma porr...

Sorensen não concluiu a frase. No beco ao lado da delegacia, Miguel Rodriguez jazia sentado junto a um poste, as mãos algemadas para trás. Alternando inglês e espanhol, balbuciava coisas desconexas sobre um homem sem rosto. Em suas costas, um bilhete: "Este é o assassino de Consuela Rodriguez. Façam a sua parte." Um grande ponto de interrogação negro encerrava o texto.

— Mas que diabos é isso? — perguntou Sorensen, sem entender o que se passava.

Do outro lado da rua, Vic Sage assistia à cena. "Acho que isto encerra a questão", pensou, tomando novamente o caminho da emissora.

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