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Por
Fernando Lopes
Trabalho
Sujo
... Go
ahead, punk. Make my day...
Sentado na sala eternamente bagunçada de seu apartamento,
apenas de cuecas e camiseta, o comissário Izzy O'Toole
assistia Dirty Harry pela enésima vez, sem grande interesse.
"As coisas são bem mais fáceis quando se é
o Clint Eastwood. Queria ver você se virar bem por aqui,
senhor Callahan", pensou, achando graça na idéia.
Subitamente, sentiu um arrepio na nuca. Instintivamente, procurou
a arma que mantinha sempre próxima a si e apontou-a na
direção do homem de sobretudo azul sentado no parapeito
da janela.
Não devia ficar assistindo essas coisas. Vai acabar
se tornando um tira violento.
E você ainda vai ganhar um buraco na testa uma hora
dessas. Já ouviu falar em porta?
Você deixaria alguém como eu entrar?
disse o Questão, a luz da sala iluminando a máscara
que lhe escondia totalmente as feições.
O'Toole levantou-se e foi procurar as calças.
O que quer?
Ouvi dizer que você acha que Johnson foi assassinado.
A idéia me ocorreu. O'Toole desligou a TV
e passou a olhar fixamente para o Questão Os guarda-costas
dele estavam apagados. Todos os oito. "Era um grandalhão
sem cara e de sobretudo azul", disseram. O pessoal do hospital
que atendeu o neto de Johnson também mencionou um certo
"homem sem rosto". Não conheço muita gente
que caiba nessa descrição.
E você acha que eu o matei?
E por que não? Você mesmo me disse que o queria.
Não é meu estilo. Johnson era um porco, mas
eu não sujaria as mãos com ele. Fui lá para
conseguir provas. Ele puxou a arma e acabou atingindo o neto acidentalmente.
Pelo visto, não agüentou a culpa. (N.E.: veja na
edição anterior)
Só isso?
Apenas os fatos respondeu o Questão, voltando-se
para a janela e preparando-se para sair Os resultados do
laboratório vão acusar resíduos de pólvora
nos dedos de Johnson. A bala que atingiu o garoto foi disparada
pela mesma arma que redecorou as paredes do escritório
com os miolos dele. O ângulo do tiro e a posição
do corpo vão confirmar que o velho preferiu acabar com
a própria vida a suportar a culpa pela morte do neto.
Por que eu deveria acreditar em você?
Eu tenho cara de mentiroso?
Em um segundo, O'Toole estava novamente sozinho. "Pois é,
senhor Callahan", refletiu consigo mesmo, "queria ver
o senhor se virar em Hub City".
O sabor do café
sem açúcar era menos amargo do que o sentimento
de frustração que tomava a mente de Vic Sage naquele
dia.
Você está com uma cara péssima, Vic.
Não dormi muito bem, Tot.
Ainda pensando no garoto?
Sage deixou a xícara de café sobre a mesa e virou-se
na direção de Aristotle Rodor. Tinha um aspecto
cansado e abatido.
O que foi que eu fiz, Tot? Qual o resultado efetivo da
minha "cruzada"? Um velho gângster morto e uma
criança no hospital. Johnson ainda nem esfriou na cova
e os "negócios" dele já estão nas
mãos da Máfia e da Tríade. As drogas e armas
que ele vendia não ficaram nem um minuto fora das ruas.
Fez alguma diferença, afinal?
Você fez o que achou que devia fazer, e nada mudará
o que já está feito. E o garoto?
Ficará bem. A bala não atingiu nenhum órgão
vital. Parece que vai ficar sob a custódia dos avós
maternos.
Menos mal... Rodor buscava uma forma de compensar
o amigo, que considerava como a um filho O que vai fazer
agora?
Se está perguntando em termos amplos, não
sei bem ao certo respondeu Vic, levantando-se No
momento, sei que preciso ir para a emissora. O show deve continuar.
E não vai ficar esperando por mim.
Meia hora depois, Sage tentava manter-se concentrado na pauta
daquele dia.
Ué, quem morreu?
Oi, Cameron. Nada de mais.
Sua cara está uma merda. Quer um café?
Vamos lá.
Foram até a copa. Vic percebeu que apenas a senhora McIntire
e a jovem Susie estavam trabalhando.
Ué, por onde anda a Consuela?
Não vem há dois dias... O pessoal já
está a fim de mandá-la embora. No mínimo,
apanhou do marido outra vez. No começo eu até tinha
pena, sabe? Mas eu acho que, se ela continua com ele, é
porque gosta. Uma vez...
Vic não prestou atenção nas palavras de Dick
Cameron. Tinha um mau pressentimento.
O pequeno apartamento
estava revirado e às escuras. O cheiro característico
da morte entrava pelo filtro da máscara, sufocando-o com
a certeza de que tinha chegado tarde demais. O corpo de Consuela
Rodriguez estava no quarto, caído aos pés da cama.
As marcas roxas ao redor do pescoço deixavam clara a causa
da morte. Uma série de hematomas e lacerações
demonstravam que ela tinha sido brutalmente espancada. Não
havia dúvidas sobre a autoria do crime. Consuela morreu
pelas mãos do marido, o mesmo homem que ela defendera dois
meses antes, quando o Questão tentou impedir que fosse
vítima de mais uma surra. O vigilante sem rosto deixou
o apartamento pela janela, como tinha entrado. Ligou de um telefone
público para a polícia, identificando-se como um
vizinho. "É tarde para ajudar Consuela", refletiu
com amargura. "Mas não para punir seu assassino".
O bar era escuro e enfumaçado. Quatro homens jogavam sinuca,
enquanto outros dois observavam no balcão. Duas prostitutas
e um travesti depenavam dois bebuns no canto. Uma velha jukebox
tocava uma música latina num tom insuportavelmente alto.
O Questão parou na porta do bar, a iluminação
da rua formando uma espécie de halo atrás dele.
Ninguém pareceu dar muita atenção. Com o
pé, o vigilante puxou o fio da tomada, deixando o local
em silêncio. Todos os rostos se voltaram em sua direção.
Ei, cabrón, o que 'ce pensa que tá
fazendo? gritou o barman, irritado.
Miguel Rodriguez. Onde ele está?
Quem quer saber? perguntou um dos jogadores, desconfiado,
avançando com o taco na mão.
Sua mãe não lhe ensinou que é falta
de educação responder uma pergunta com outra pergunta?
respondeu o Questão, saindo das sombras para a área
mais iluminada. O homem recuou dois passos ao notar o que o estranho
não tinha rosto. Eu perguntei onde está Miguel
Rodriguez.
Refeito do susto inicial, o jogador decidiu enfrentar o vigilante.
Os outros três também se aproximaram.
Ninguém aqui sabe onde ele tá. E mesmo que
soubesse, não ia dizer. E aí, algum problema?
Sage ficou imóvel por um segundo. Sem qualquer aviso, agarrou
o jogador pelos cabelos e bateu com a cabeça dele sobre
a mesa de bilhar, deixando-o desacordado. O barman fez menção
de pegar alguma coisa embaixo do balcão, mas foi atingido
por uma bola de bilhar no meio da testa. Com o pé, o vigilante
ergueu o taco do sujeito caído e, num movimento rápido,
girou-o por trás das costas e parou a dois centímetros
do rosto de outro jogador, que começava a mover-se em sua
direção. Seu pretenso oponente estancou, atônito
com a velocidade dos movimentos do homem sem rosto.
Bem, vou perguntar com educação mais uma
vez: onde está Miguel Rodriguez?
O assassino de Consuela
Rodriguez estava escondido em um hotel barato na região
do porto. Esperava que Alonso trouxesse o carro que usaria para
cruzar o país e chegar à fronteira com o México.
Uma vez de volta à sua terra natal, nada teria a temer.
"Deve ser ele", pensou, ao ouvir a batida na porta.
Ao abrir, sentiu o impacto de um punho diretamente no nariz, recém-recuperado
da fratura anterior. Voou sobre a cama, caindo do outro lado.
Você? perguntou, incrédulo.
Você vem comigo.
Nem fodendo! berrou Miguel, pegando uma faca
'Ce vai morrer, hijo de puta.
Vá em frente. disse o Questão, impassível
Me faça ganhar o dia...
O detetive Sorensen
olhava a tela do computador com má vontade. Mais uma morte
de chicanos para cuidar. Oito queixas de distúrbios feitas
pelos vizinhos só nos últimos dois meses. A mulher
acabou estrangulada, o marido deu no pé. Caso encerrado.
Quem se importa, afinal?
Mike, Mike, você precisa dar um pulo aqui fora!
Ah, qualé, Neil? Não tô com saco pra
piadinha a essa hora.
É sério, cara, chega aqui!
Já vou avisando, se for uma das tuas gracinhas,
vou lhe dar uma porr...
Sorensen não concluiu a frase. No beco ao lado da delegacia,
Miguel Rodriguez jazia sentado junto a um poste, as mãos
algemadas para trás. Alternando inglês e espanhol,
balbuciava coisas desconexas sobre um homem sem rosto. Em suas
costas, um bilhete: "Este é o assassino de Consuela
Rodriguez. Façam a sua parte." Um grande ponto de
interrogação negro encerrava o texto.
Mas que diabos é isso? perguntou Sorensen,
sem entender o que se passava.
Do outro lado da rua, Vic Sage assistia à cena. "Acho
que isto encerra a questão", pensou, tomando novamente
o caminho da emissora.
:: Notas do Autor
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