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Por
Alexandre Mandarino
Todo
o Mal é Vermelho
Os lábios
de Karen se comprimiam contra os dele. Por algum motivo, algo
estava errado. Uma doce sensação de nostalgia a mesma trazida pelo ar das melhores manhãs preenchia
o quarto.
Matt, que tal marcarmos para amanhã? perguntou a moça.
Pode ser, amor respondeu Murdock.
Sorrindo, ela retribuiu com um beijo. Karen... Ele a conhecia
há tantos anos. No início, julgava que sua cegueira
não tornava merecedor do amor e atenção de
alguém tão maravilhosa. Afastados uma vez pelo fantasma
de um uniforme vermelho (todo o mal é vermelho), voltaram
a se encontrar anos depois. Não foi o melhor dos reencontros.
Ainda assim, os momentos que se seguiram foram alguns dos mais
apaixonados da vida dele. Mas alguma coisa estava errada.
Karen, você está sentindo este cheiro?
Ahn? Que cheiro, amor? ela disse.
Deixe pra lá. respondeu Matt Às vezes me esqueço
que tenho sentidos mais apurados que os de uma pessoa normal.
Provavelmente, o fedor deve estar vindo de longe.
Fedor? Que tipo de fedor? insistiu Karen.
Algo como... carne podre, isso. Um fedor de carne podre, algo
putrefato. disse o advogado, virando-se sorrindo para sua antiga
secretária e atual mulher de sua vida.
Deve ser sua imaginação.
Um grito abafado saiu da garganta de Matt Murdock ao olhar para
Karen Page. O rosto de dela estava coberto por vermes. Dentes
se mesclavam ao que restava de seus lábios. Ela
era a carne podre. Matt tentou se levantar, mas uma adaga familiar
mais uma vez encostou em seu pescoço.
Onde pensa que vai, querido? Os olhos de Elektra brilhavam
na escuridão do quarto, ansiosos por ele Fique deitado.
Talvez sua atual mulher não se importe se eu participar
da brincadeira... afirmou a ninja, despindo sua pouca roupa.
Pernas e braços descarnados o abraçavam e ele não
conseguia se levantar. Em meio às duas mulheres apodrecidas,
tentava desesperadamente gritar, mas nada saía de seus
lábios além do desespero. Foi quando notou que objetos
trespassavam o abdômen das duas mulheres. Uma segunda adaga
sai cruzava o corpo de Elektra e Karen exibia o próprio
bastão usado pelo uniforme vermelho (todo o mal é
vermelho) saindo de um rombo em sua barriga. Barulhos vindos do
alto chamaram sua atenção. Incapaz de se levantar
da cama, Matt fixou os olhos no teto e percebeu uma imagem enegrecida.
Repentinamente, Heather Glenn, sua ex-namorada, também
entrou na festa, pendendo a partir de uma forca.
Beije-me, amor. disse ela, com a garganta esmagada pela corda.
Aaaaaahaahh!
Matt acordou ensopado; ofegante, esforçou-se para limpar
a catarata de suor que lavava sua testa. Demorou três minutos
para concatenar as idéias e perceber o que estava acontecendo.
Estava sentado em seu quarto, no velho casarão recém-reconstruído
em Nova York. Seu velho quarto, tão familiar. Tudo estava
bem. Amaldiçoando sua sorte, seu passado e a própria
morte, levantou-se e tomou uma ducha. Perturbado, automaticamente
vestiu o uniforme vermelho. Em um minuto, passou pela clarabóia,
que tantas vezes havia rangido quando ele saía, reclamando
de ter de abrir espaço para um demônio passar. Mais
uma vez, o Demolidor se impunha para provar a Matt que ele era
um homem sem medo.
Abre essa porra! gritou Mongol, levantando a chave de roda
para bater no vidro esquerdo do Volvo. O vidro se estilhaçou
e, imediatamente, um alarme começou a berrar por meio Bronx.
Debaixo do automóvel, um magrelo começou a xingar:
Mongol, seu cavalo imprestável! Filhodaputa! Asno!
Porra, você quebrou o vidro do carro!
Qual é o problema, Cabecinha? A gente não vai
roubar o carro?
Não, a gente ia roubar o carro, sua besta escrota!
Com esta merda de alarme apitando, logo vai encher de neguinho
aqui em cima da gente. Porra, tou há meia hora lá
embaixo tentando cortar o fio certo do alarme pra gente levar
o Volvo e tu me faz essa cagada! Por isso que você tem mais
é que andar com o Tucão mesmo, sua anta desgraçada,
seu porco gordo, marginalzinho de mer...
As moças vão ficar discutindo? disse uma voz,
vinda do alto.
Mongol e Cabecinha olharam para cima e lá estava ele. O
demônio.
Ah, não, agora fodeu de vez! Olha só, Mongol,
é a porra do Demolidor. Corre! gritou Cabecinha, ganhando
terreno beco adentro. Um bastão se intrometeu entre suas
pernas e ele caiu, o queixo tentando quebrar o chão de
paralelepípedos.
Viu, Mongol? É nisso que dão as discussões.
Alguém sempre termina machucado. Se quiserem, posso indicar
um bom conselheiro matrimonial. disse o demônio, saltando
à frente do marginal. Mongol tremia e estava prestes a
chorar.
Não me bate, não, Demolidor. Porra, eu sempre
termino apanhando. Chega, cara.
Seu amigo Tucão me disse algo parecido quando perguntei
sobre o Joe Bala e o Horto, dias atrás. Vocês estão
ficando espertos, Mongol. Já nem tentam mais bater em mim.
Aprenderam?
É, né...
Bom, você já sabe o que acontece. Chegou aquele
momento do script onde eu amarro você e seu amigo
Cabecinha, que está ali dormindo, e deixo os dois de presente
para a polícia.
Ahn? V-v-ocê vai deixar a gente pros cana? Eh... eh, eh.
Tu vai prender a gente, demônio? perguntou Mongol, mesclando
risos de nervoso e alívio e algumas lágrimas.
O demônio não respondeu, intrigado. Depois de amarrar
os dois, usou o cabo em seu bastão para saltar para o prédio
em frente. Quando estava atravessando o telhado, seus hipersentidos
captaram uma frase dita por Cabecinha, que acordava no chão
do beco: Ahhh... Uhn.. Unh. A... A gente... A gente tá
vivo? Mongol, ele prendeu a gente? Ele não matou a gente,
Mongol! A gente tá vivo, cara!
"A gente tá vivo, cara!"
O que Cabecinha quis dizer com isso? Ele já havia encontrado
os dois várias vezes pelas bibocas de Nova York e nunca
tentou matá-los. Com a frase na cabeça, perturbado
pelo seu significado e também pelo sonho que tivera àquela
noite, o Homem Sem Medo perambulou pelas ruas de Nova York. Bronx,
Cozinha do Inferno, Harlem, até mesmo o Bowery, tudo parecia
mais vazio, desolado. Poucos bandidos na rua, pouca ação.
A madrugada se estendia, esvaziada, como um sorriso na boca de
um desdentado. Algo estava faltando. Mas o quê? Ele não
sabia, mas já descobrira o que estava sobrando: o vazio.
É isso. É o vazio que ronda a cidade, espantando
os habitantes da noite para o interior de suas casas e esconderijos.
Enredado nestas idéias, o demônio repentinamente
parou e sentiu um arrepio na espinha.
O cheiro.
Há quanto tempo ele estava ali? O cheiro. O mesmo fedor
que estava em seu sonho, duas horas antes. Ele havia emergido
das ruas naquele instante? Ou sempre esteve ali e ele não
tinha percebido? Carne podre. Putrefação. Era isso.
Havia algo errado com a cidade e não era somente o vazio.
Ou melhor, era o vazio. O vazio era a putrefação.
A cidade estava podre.
"A gente tá vivo, cara!"

BREEEEEP
BREEEEEP
Uma mão anestesiada alcançou o telefone sem fio
sobre a mesa de escrivaninha.
Alô... balbuciou um sonolento Matt Murdock.
Matt? É o Ben.
Ben? Urr... Oi, Ben.
Te acordei?
O que você acha?... São seis e meia da manhã,
Ben!
Eu sei. Estou saindo de casa agora para ir para o Clarim. Hã?...
Um minuto. Sim, querida? Não, acho que a azul. Como? Hum...
Tem razão, a cinza-clara fica melhor. Obrigado, Doris,
já estou acabando aqui. Desculpe, Matt, estava falando
com a minha esposa.
Eu sei, pude ouvir tão alto como se vocês estivessem
dentro da minha cabeça. O que há, Urich? Por que
essa ligação a essa hora?
Você está bem, Matt?
Como?
Está morrendo de sono. A que horas você foi dormir
ontem? Parece que a festa a fantasia foi boa.
Cristo, Urich, o que está havendo com você? Que
idéia é essa de me ligar de manhã para me
interrogar? E pare com essa história de "festa a fantasia".
Você é um dos poucos que sabem exatamente por quê
eu faço isso.
... Sim. Me desculpe, Matt. É que estas notícias
têm me deixado perturbado. Aliás, a ponto de ligar
para você a esta hora.
Notícias?
Você não sabe?
Você é o repórter, Ben. Me conte.
Estão chamando de "mal vermelho". As mortes
começaram há duas semanas. A primeira foi em um
beco do Bowery. Um mendigo chamado Camatz ou algo assim. Foi pendurado
como um móbile a partir de suas próprias entranhas.
Que ótimo, Ben, agora entendi. Você quer que eu
faça dieta pelas manhãs.
Não, escute só. Com seu sangue, foi pintada nas
paredes do beco a inscrição "R. E.".
"Repórter Entediante".
Matt, escute até o final. Há um motivo para eu
ter ligado para você. No dia seguinte, uma prostituta foi
encontrada no Harlem. Enforcada com seus próprios braços,
que haviam sido arrancados. Porra, Matt, você não
ouviu falar dessas mortes?
Ben, mortes é tudo o que ouço falar nessa maldita
cidade. Mas, nesse caso específico, não. Estive
ocupado nas duas últimas semanas com o caso do Horto e
só lia informações relativas ao Joe Bala.
Parabéns por tê-lo capturado.
Continue, Ben. A prostituta.
A mesma coisa: "R. E.", escrito com sangue. Cinco
dias depois, um marinheiro, em frente a um armazém do cais.
Desta vez, nada de siglas estranhas: no lugar delas, um par de
chifres desenhados com sangue.
Chifres...
Sim. Finalmente você começou a entender. De lá
para cá, mais quatro mortes: outra prostituta, um pobre
alcóolatra, um marginal sem importância e um gigolô.
Sem relações entre eles. Bairros diferentes. Um
deles, o marginal, foi encontrado em pleno Times Square. Com exceção
do gigolô, com o sangue de todos foi escrita a frase "Red
Evil", ao lado de um par de chifres. Sempre com o sangue
das vítimas.
Mal vermelho...
Sim. Menos no gigolô. Com o sangue dele, o assassino escreveu
algo a mais e foi isso que me fez ligar para você.
O que estava escrito?
Da Red Evil.

O Mal Vermelho. Da
Red Evil. Daredevil.* Alguém estaria mais uma vez tentando
incriminá-lo? Será que Urich desconfiava dele? Ou
a ligação teria sido simplesmente feita por um velho
amigo querendo avisá-lo? Sim, claro que foi isso. Urich
era um velho amigo, queria apenas avisá-lo de que isso
estava acontecendo antes que o pior acontecesse. "A gente
tá vivo, cara!"
O pior já aconteceu. Os marginais da cidade estão
pensando que o Demolidor se tornou um assasino. Um estripador.
Quanto tempo resta antes que a população e a polícia
pensem o mesmo?
Da Red Evil.
A porta do escritório se abriu, cortando os pensamentos
de Matt como uma faca.
Matt!!
Era seu amigo mais antigo e sócio no escritório
de advocacia, Franklin Nelson.
Matt, esse mundo está ficando louco! Você não
imagina o que eu acabei de saber! Esse último telefonema,
era o Patterson, meu velho amigo da faculdade. Lembra dele?
Sim, Foggy, lembro. O "Pereba".
Isso. O coitado está sendo acusado de estupro!!
Ahn?
É. Ele me ligou, em prantos e desesperado. Uma dona o
acusou de tê-la violentado esta noite. Patterson está
na delegacia, estão abrindo um processo contra ele. Precisamos
defender o cara, Matt. Eu tenho certeza que ele nunca faria isso.
Você precisa me ajudar, deve ser alguém tentando
alguma coisa. Tente descobrir algo, por favor.
Calma, Foggy. Vou ver o que posso fazer.

Atrás de Matt,
apenas a janela aberta de sua sala no escritório de advocacia
Nelson & Murdock. O demônio se balançava novamente
pela cidade, se esforçando para que o pôr-do-sol
amortecesse a sensação de podridão que invadia
seus sentidos. Não podia ver os raios dourados nem a a
bola de fogo mergulhando no Hudson, mas sentia tudo isso, com
uma espécie de radar. Para Matt, a vida era como um jogo
de computador pessimamente renderizado.
"A gente tá vivo, cara!"
"Me prometa que nunca mais vai lutar, filho! Você precisa
estudar e se tornar alguém, para não virar um saco
de pancadas como eu. Prometa!".
Da Red Evil.
Alguém estava matando pobres-diabos e fazendo móbiles
e outras coisas horríveis para incriminar o Demolidor.
Um ser inofensivo como "Pereba" estava sendo acusado
de estupro. E a cidade ainda fedia a carne putrefata.
Quando o demônio estava sobre a ponte do Brooklyn, Stick
apareceu em sua mente.
"Você está caminhando em uma estrada escura.
Não há cidade próxima e você não
conhece muito bem o caminho. Súbito, uma bifurcação.
Que estrada tomar?"
As palavras de seu antigo mestre surgiram como tinta invisível
em sua mente, revelando-se aos poucos, sem esforço.
"Um dos caminhos leva ao mal, ao passo em que a outra
estrada leva ao bem. Mas qual delas? E, mesmo que saibamos qual
leva a quê, como decidir qual delas tomar?"
(Todo o mal é vermelho).
Abaixo de Matt, as pessoas caminhavam despreocupadas, voltando
para casa, indo para um bar, encontrando suas namoradas, indo
buscar seus filhos. Tomando diversos caminhos.
"Pois bem, surpresa. Não é o caminho que
importa. Tanto faz se uma estrada leva para o bem e outra para
o mal. Não têm importância qual estrada se
toma. O mal não vem até você, tampouco o bem.
O mal não está no fim de uma estrada, nítido,
pré-definido, como um objetivo de viagem. O mal não
tem forma, não tem lugar, é inodoro. Não
se toma uma estrada até o mal nem se percorre caminhos
até o bem. O mal não está no fim da estrada.
Ele está antes dela, na bifurcação: o mal
está na dúvida."

Cozinha do Inferno.
Um homem de sobretudo, maltrapilho, aguarda na entrada de um armazém
abandonado. Ele olha para o relógio. Parado. Finalmente,
uma cabeça aparece à porta de madeira.
Entre. Já começamos, você era o último
de hoje.
Os dois homens percorreram um longo corredor de madeira e subiram
uma escada, que rangia às suas passadas. Uma porta foi
aberta e a dupla entrou em uma enorme sala de reuniões,
tomando seus lugares em meio à multidão. Mais à
frente, sobre um palco de madeira, um homem de barba preta, vestido
com couro preto e correntes, falava. A multidão parecia
hipnotizada por suas palavras.
Sempre nos ensinaram que a América era a terra da liberdade.
E eu lhes pergunto? Temos liberdade? Há liberdade na pobreza,
na exclusão? A única liberdade que existe na Cozinha
do Inferno são as visitas esporádicas de candidatos
em época de eleição. Pois lhes digo, meus
companheiros de revolta e miséria: a América está
errada! A nossa liberdade terá que ser arrancada a fórceps
de dentro deste imundo sistema de governo!
A multidão aplaudia, timidamente, nervosa.
O inimigo está lá fora. Temos que dar a outra
face? Esperar sentados enquanto comemos contentes frangos mirrados
no Dia de Ação de Graças? De forma nenhuma!
Políticos, policiais, todos os opressores devem pagar!
Se temem um inimigo vermelho, é isso que terão!
Se acham que o mal é vermelho, então seremos esse
mal! Vamos ter nossa liberdade, a riqueza que nos é de
direito, por todos os meios necessários! Se não
querem dar riqueza aos pobres, nós mesmos iremos tomá-la!
A multidão já vibrava, aplaudindo e uivando.
Sigam-me, desgraçados, excluídos e miseráveis!
Trilhem comigo, Stalin, Mao e Manson o caminho vermelho. Entrem
com Red Papa na nova luta e todos teremos uma vida melhor e mais
digna! Policiais devem morrer! Senadores devem sofrer! Suas filhas
e esposas pingarão sangue! Sigam o caminho do mal vermelho!
Poder para o povo!
Cortina.

Brooklyn. Oito da
noite. Um pequeno apartamento quarto e sala. Um homem vê
televisão, imóvel. De meio em meio minuto, sua mão
direita se levanta para que ele dê uma tragada em um Gitane.
Uma mosca passeia pela saleta. Quebrando a imobilidade, o telefone
toca.
Alô?
"É imortal".
"Arranque uma de suas cabeças e duas tomarão
o seu lugar". Saco. Sou eu, porra. Você ligou para
a minha casa, sou eu que atendo. Simples assim, não precisa
dessas merdas de senhas.
Precisamos nos cuidar. Você sabe com quem está
lidando. Não somos amadores.
Sim, claro, seu longo currículo de vitórias demonstra
claramente isso. Besteira, vocês não serão
mais amadores a partir da semana que vem, quando passarão
a contar com meus serviços.
Como ousa falar assim da...
Da...? Sim, continue, cretino. Fale o nome da sua organização
de merda ao telefone. Vamos ao que interessa. Onde está
a passagem e o passaporte?
Estarão sendo entregues em dois minutos. Adeus.
Silêncio novamente. Mais uma tragada no cigarro sob o testemunho
mudo da televisão sem som. Um minuto e 43 segundos depois,
um envelope escorregava pela porta do apartamento. O homem se
abaixou, pegou-o nas mãos, observou por um minuto o símbolo
de uma caveira com vários tentáculos em um dos lados
e abriu-o. Lá estavam: uma passagem para Bagdá e
um passaporte falso, em nome de Hernando Lopez. "Lopez",
pensou o homem, sorrindo. "Nome engraçado foram arranjar.
Bem..."
Deu uma última tragada no cigarro e o arremessou. A pesada
guimba do Gitane colheu a mosca em pleno ar, prendendo o inseto
queimado em sua brasa; antes de cair no chão, a guimba
ainda atingiu o botão de volume da TV, que finalmente voltou
a falar: "... com facadas no peito, no início desta
noite, em Westchester".
"... parece que o Mercenário vai curtir um sol no
Iraque".

Três e meia
da madrugada. O demônio se balançava de volta para
casa, tentando ignorar o cheiro de putrefação. Quando
entrava na Quinta Avenida, quase riu ao se deparar com uma figura
familiar, fazendo algo ainda mais familiar: no alto de duas enormes
pernas mecânicas hidráulicas, um homenzinho de armadura
tentava abrir uma vidraça de um dos últimos andares
do prédio-sede da Petróleo Roxxon. "Saco. Metalóide.
Ah, Wilbur, quando você vai desistir disso?", pensou
o demônio. Cansado, Matt desceu para a calçada. Sem
fazer barulho, distendeu enfadonhamente o cabo de aço de
seu bastão e enrolou-o diversas vezes pelas pernas do Metalóide.
Depois, pensou. "Esquerda ou direita? Acho que direita, vamos
ver". Caminhou cerca de duzentos metros para o lado direito
da Quinta Avenida. Depois, gritou:
Ei, Wilbur! Aqui!.
Wilbur Day olhou para baixo e viu seu antigo inimigo.
Hã? Demolidor! Vou ter que esmagá-lo mais uma
vez!
Ah, corta esse papo de supervilão, Wilbur. Nós
sabemos como isso termina. disse Matt.
Ao tentar levantar a perna direita para esmagar o Demolidor, Metalóide
cambaleou e caiu no chão da avenida mais importante de
Nova York, vazia àquela hora da madrugada. Um estrondo
ensurdecedor e lá estava Wilbur Day, na posição
horizontal, sem conseguir se levantar ou soltar-se de suas pernas
gigantes.
Cena familiar, não? disse o demônio.
Cale a boca, idiota.
O que você queria na Roxxon? Bom, não importa.
Estou sem tempo para isso e quero dormir. Vem comigo.
Matt apertou um botão já conhecido no capacete do
vilão e as pernas se soltaram. O homenzinho foi colocado
nos ombros do demônio, que caminhou um quarteirão
até uma mansão em frente ao Central Park. Quando
percebeu o que iria acontecer, Wilbur protestou:
Ei, isso é sacanagem!
Antes que pudesse reclamar mais, foi jogado por cima dos muros
da Mansão dos Vingadores. O estrondo de sua armadura batendo
no gramado foi o suficiente para que os sensores sonoros ativassem
os tentáculos automáticos de adamantium.
Ei, demônio! Você vai me pagar! gritava Wilbur.
Os barulhos acordaram um sonolento mordomo. Jarvis abriu a porta
da mansão, viu aquele homenzinho de metal enrolado em cabos
e bocejou.
Uaah, espere até amanhã, Metalóide.
A um quarteirão das primeiras ruas que compõem a
chamada Cozinha do Inferno, o demônio voltou a sentir mais
forte o cheiro fétido de podridão. "Deus, que
desgraça é essa?". Uma forte sensação
de morte pesava na atmosfera, tornando-se quase detectável
pelo seu sentido de radar. Pensando sobre as estranhezas de Nova
York, Matt subitamente ouviu gritos e sons horríveis. "O
que é agora? Essa noite não termina?" Balançou-se
pelos postes e telhados na direção do que parecia
ser a origem dos ruídos: um beco sem saída localizado
vários quarteirões mais à frente. Sons horríveis
do que pareciam ser ossos se partindo invadiam os supersentidos
do Demolidor, preenchendo sua imaginação já
afetada pelos acontecimentos das últimas horas. Estalos
de ossos se partindo. Gritos. "Mais rápido, Matt".
Gotas de sangue caindo no chão, misturando-se às
poças de esgoto. "Rápido". Chiados de
ratazanas fugindo assustadas. Ossos se partindo. Som de zíper.
Uma respiração tranquila, semelhante a de um homem
adormecido. "Rápido". Gotas de sangue. Muitas,
ao mesmo tempo, jorrando no chão do beco. Sons de algo
("eu acho que sei o que é, meu Deus") se rasgando.
"Mais rápido, Matt".
Quando finalmente chegou ao beco, o mundo era um vídeo-tape
paralisado em uma cena. No chão da viela, espalhados, restos
do que pareciam ter sido quatro, não, cinco marginais.
Algo criava vida no estômago de Matt. Tentando não
esbarrar em um fígado humano caído sobre uma folha
de papelão, Matt se aproximou de uma das paredes do beco,
que fedia. Passando a mão direita pelos tijolos vermelhos,
conseguiu "ler" o grafite de sangue: "Todo o Mal
é Vermelho". Embaixo, um par de chifres desenhados
e a frase que o fez estremecer a partir dos joelhos: "Da
Red Evil". Foi quando o cheiro de incenso tomou conta do
beco e o mundo girou como um liquidificador, batendo um coquetel
de carne.
:: Notas do Autor
* Daredevil é o nome original do Demolidor em inglês.
Por que diabos Daredevil foi traduzido como Demolidor?
Hmm... Melhor perguntar para o Jotapê.
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