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Por
Délio Freire
Refugos,
Viagens e Modelos
Parte I
Quando a porta do
pub é aberta, o cheiro de mijo velho e cerveja falsificada
espalhada pelos cantos se insere pelas narinas de John Constantine,
trazendo uma sensação de reconhecimento e lembranças
nostálgicas agradáveis e outras nem tanto. Andando
com passos leves para não acordar o dia, o mago prossegue
seu caminho.
Cumprimentado os amigos que não via há bons tempos,
Constantine passa por um homem que fuma um cigarro de maconha
despreocupadamente, uma prostituta balzaquiana que oferece seus
serviços sem se preocupar com o ridículo de suas
coxas disformes convidarem para um prazer que inexiste e, mais
ao fundo, um homem bêbado inchado e sem nenhum resquício
de equilíbrio para se levantar sozinho.
Chas?! a surpresa é tamanha que o
mago quase deixa cair seu cigarro. Quase O que diabos aconteceu
com você, homem? O fundo do poço é território
meu, esqueceu?
Me deixa aqui, caralho!
O velho Moe não vai gostar de te ver aí deitado
espantando os clientes, Chas. Levanta daí e deixa de viadagem.
Chas tenta se erguer para andar mas, sozinho, sente-se como uma
centopéia cheia de ácido, suas pernas parecendo
multiplicar-se de forma desordenada e impedindo sua coordenação
funcionar.
Merda, Chas! Constantine fala alto, se dirigindo
aos outros elementos do pub Será que tem
alguma porra de alma caridosa que possa me ajudar a levar esse
meu amigo rinoceronte até uma mesa???
Como num passe de mágica, um segundo ombro amigo surge
ajudando Chas, bêbado como uma puta velha, a encontrar seu
abrigo em meio aquela multidão de doces desajustados e
viajantes sem rumo. Com cuidado, Constantine e o novo amigo deixam
Chas sentado em uma cadeira, quase fazendo-a arriar com seu peso;
o corpo totalmente inclinado para a esquerda.
Valeu, camarada o mago dirige-se ao estranho
Te devo um drink.
Apenas um? Será que anos e anos amolando o Diabo
está de deixando pão-duro? Ou Deus te condenou à
pobreza como castigo por anos a fio de aporrinhação
contra ele e seus anjos?
Te conheço, puto? o homem à sua frente,
vestido como um Yuppie, não se parece exatamente
com as companhias habituais de John Constantine Não
tenho amigos que se vistam de terno Armani; na verdade, tirando
este aqui, não tenho amigos.
Chas, em resposta, solta um sonoro peido.
Você ainda não cresceu, não é,
John? Sempre andando com os velhos tipos? Eu, ao contrário,
cresci, e muito... o estranho resolve se sentar à
mesa, repousando sua pasta em cima dela Sente-se, velho
amigo.
Espremendo um dos olhos em um gesto de desconfiança e desafio,
o mago olha seu autoproclamado amigo. Dando de ombros, ele senta-se
ladeado por Chas, que entra em um sono profundo que não
o permitirá interromper e nem ser interrompido por um bom
tempo durante a conversa, e pelo outro homem que abre a pasta,
deixando aparecer um laptop e um pequeno visor, como os
óculos usados em videogames de ponta, pendendo para fora
da pasta e caindo sobre a mesa. Constantine abre um sorriso cínico
e sorri.
Vejo que gosta de brinquedos, senhor homem de negócios.
Me dê isso! com um gesto brusco, o Yuppie
retira o visor das mãos de Constantine e o guarda novamente
na maleta Só me dê alguns segundos; depois
voltamos a conversar.
Operando seu laptop com uma agilidade impressionante nas
mãos, o homem parece se desligar momentaneamente do mundo,
como fazem as pessoas extremamente religiosas. Alguns movimentos
labiais, se fossem lidos por algum monge tibetano que passeasse
por aquele pub naquele momento, poderiam ser reconhecidos
como um antiqüíssimo mantra que abre as portas para
um universo onírico de transes incessantes. Todo o processo
dura em torno de dois minutos que, no ponto de vista de Constantine,
tornam-se uma chatice sem tamanho tanto quanto assistir a foda
alheia sem poder participar.
Pronto fechando rapidamente sua pasta, o homem volta
a se dirigir ao mago Onde estávamos?
Que merda é essa que você fez?
Magia e tecnologia. Invariavelmente, ninguém me
pertuba quando estou conectado ao meu laptop; enquanto
pensam que estou acessando a bolsa de valores e cantarolando o
último sucesso do Belle & Sebastian, na verdade posso
estar invocando um demônio em forma de vírus para
atacar o meu inimigo mágico que pode ser desde uma grande
corporação a um idiota que possui o posto mais alto
em minha sociedade de Magia Eletrônica. Meus demônios
não perturbam apenas mentes o maluco aproxima seu
rosto ao do mago britânico eles chupam dados com
canudinho como se fossem cérebros tenros cheios de informação.
E o que que tem a ver o cu com as calças?
Constantine corta um pedaço de torta de rins (*) servido
pelo dono do boteco e o mastiga bem devagar.
Pode-se gerar bastante energia com os aparelhos eletrônicos
adequados... Com a Psicotrônica, posso aliar eletricidade,
eletrônica e magia ritualística! os olhos
do maluco quase parecem saltar das órbitas Com todo
essa sofisticação tecnológica, pode-se aumentar
a potência de um ritual mágico em escalas inimagináveis!
Já ouvi falar nisso. Tem os mesmos efeitos que uma
magia ritual, ou seja, depende única e exclusivamente das
qualidades mágicas do operador. Mas o que é que
eu tenho a ver com isso tudo?
Preciso de sua ajuda. Com meus conhecimentos de Magia Eletrônica
e sua cultura mágica tradicional, podemos reatar nossa
velha aliança em bases mais sólidas.
Olha, cara. Tô mais fudido que você possa imaginar...
Já apertei o saco de Mefisto pra ele gritar igual a uma
mocinha e parar de me encher a paciência, azucrinei o Thor
pra me fazer um favorzinho, acendi um cigarro na cabeça
de uma caveira turbinada, tive pesadelos dignos de um filme de
Bergman, humilhei vampiros e você vem me dizer pra me afundar
em mais merda ainda?
Pelos velhos tempos...
Porra... Tem mais essa, velho. Não me lembro mesmo
de você.
Abrindo novamente sua pasta, o homem parece propositadamente agir
de forma tediosa quando retira um pequeno MP3 player e
o entrega para Constantine.
Ouça.
Não é a porra de nenhum truque mágico,
é?
Não, John. É só uma música;
quando a ouvir, se lembrará de mim.
Que merda! Ouvir musiquinha pra relembrar o passado é
coisa de viado!
Meio que a contragosto, Constantine coloca o fone de ouvido e
imediatamente começa a ouvir o som estridente de guitarras
realizarem uma introdução agressiva a uma música
que possui a mesma característica. Bodies, dos Sex
Pistols, começa a circular seu cérebro, como se
estivesse resgatando lembranças escondidas.
Com um gesto rápido, enquanto observa Constantine viajar
na música, o yuppie joga em câmera lenta uma
pedra de açúcar em meio a sua xícara; o líquido
oscila sucessivas vezes, ondulando.

Há mais de
vinte anos atrás, o mago se vê mais jovem, saindo
em desabalada carreira para fora de uma loja de roupas de couro
chamada Sex de propriedade do casal McLaren; segundos depois dele,
sai um rapaz mais jovem que começa a correr também,
mas para uma direção oposta à de Constantine.
Sozinho, despreparado e chapado de drogas, o jovem Constantine
sente seus pulmões arderem, suas pernas parecerem pegar
fogo para se afastar o mais rápido possível da cena
do crime. O filho da puta do Pete não está ao seu
lado e, na verdade, todo o dinheiro está com ele; mas agora
é tarde, pois todos o viram assaltar a loja em plena luz
do dia. O som do carro de polícia se torna crescente, zumbindo
atrás dele como uma mosca chata a lhe importunar freqüentemente.
Quando está para virar a esquina, o impacto forte de um
cassetete faz seu nariz sangrar e suas pernas, já bambas,
desabarem numa implosão de estafa e desespero. Várias
botas dos policiais começam a chutá-lo e algumas
vozes perguntam sucessivas vezes:
E o dinheiro? mais chutes e cuspes Onde escondeu?
Punk dos infernos! grita outro policial,
levantando o rapaz e arrancando o seu walkman.

Pete...
retirando o fone de ouvido, Constantine não esconde um
certo desprezo ao conseguir reconhecer o homem à sua frente
Vermezinho desgraçado.
Sabia que não se esqueceria de mim facilmente.
Pete não esconde o sorriso Desculpe, mas eu tinha
que fazer isso, tinha que ver seu rosto ao ouvir a música.
Até hoje gostaria de ver o seu rosto naquele dia.
Por quê?
Por que o quê, John? Pete dissimula, mas não
consegue segurar o deboche.
Você não ficou ao meu lado depois que saímos
da loja.
Diabos, isso já faz quase duas décadas.
E se negou a me reconhecer na acareação!
Filho da puta!
Voando sobre o outro alucinadamente, as mãos do mago pressionam
o pescoço de Pete que, sob nenhuma hipótese, deixa
de achar aquilo tudo muito divertido.
Acordando do sono profundo com o barulho, Chas se levanta e tenta
deter o seu amigo. Soltando o outro e dando uma leve cotovelada
em Chas para que retire as mãos dele, Constantine resolve
se sentar e tomar fôlego.
Continua o mesmo impulsivo de sempre, John.
Impulsivo? Constantine se contém para não
esmurrá-lo ali, agora Eu comi o pão que o
diabo amassou naquela merda de cela durante três noites;
se o próprio McLaren não retirasse a queixa, eu
taria fodido.
Aliás, naquela época, você conhecia
bem as cadeias de Londres.
Boa parte, graças a você, filho da puta!
tentando se acalmar, John bebe um pouco mais de Whisky.
Eu compreendo o rancor que sente por mim, mas acredito
que possamos unir nossas forças.
Você negou nossa amizade por duas vezes! Duas
vezes! Por que diabos eu te faria alguma espécie de
favor, Pete?
Muito bem, John. Vou te falar de algumas coisas que vão
te deixar impressionado. Algumas coisas sobre Magia Eletrônica,
revolução e poder... muito poder...
No próximo número: Não perca a conclusão
dessa história, em que Constantine finalmente entra em
contato com a Ordem dos Magos Eletrônicos.
:: Notas
do Autor
(*) Prato típico
servido como acompanhamento de bebidas em pubs londrinos.
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