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Miles # 03

Por Matheus Pacheco

Seguindo a Estrada de Tijolos Amarelos

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"Mais um dia começa.

Na verdade já deve ter começado há horas para a maioria dos cidadãos normais. Mas eu não sou um cidadão normal, definitivamente. Negro, músico — de jazz ainda por cima -, desempregado e canhoto. Eu acho que posso me definir como um sujeito fora dos padrões.

Acho que já é hora de sair atrás de um trabalho, apesar de ser sábado. Aliás, melhor ainda — a vida musical começa no fim de semana. Mas antes, vamos acordar. Ponho no aparelho de som o primeiro CD do Pastorius que eu encontro. Word of Mouth. Amontoado de loucuras embalados em uma chapinha de plástico. Bach a Beatles a Pastorius. Este cara me lembra meu xará Davis. Sempre experimentando, empurrando a música um passo adiante.

Água gelada. Bom pra acordar. Pastorius na vitrola, junto com o barulho da rua. Da cozinha vem um cheiro de café maravilhoso. Aretha deve ter acordado."

— Oi, Retha.

— Ah, fala Smiley.

— Como foi ontem com o garoto-robô?

— Ah, vai se foder. Não vamos começar o dia assim, tá?

— Tá certo. Vou atrás de trampo hoje.

— Teu trampo é legal de correr atrás, né? Só sair pra beber.

— Nem fodendo. Tem que rolar por aí de dia, falar com os caras certos. À noite está todo mundo bêbado e empolgado demais pra te levarem a sério.

— E onde você vai?

— Sei lá. Vou cair em Manhattan e começar por alguma loja de instrumentos. Provavelmente eu vá direto no Ralph.

— O Ralph, é? Hmmmm... Manda um beijo pra ele.

— Deixe de ser vagaba, Aretha! O cara é casado e tu tá namorando!

— Bah. Não enche, Smiley. É só pela diversão.

— Credo. Adolescentes... Pfe!

"Andar por Manhattan é como ir ao zoológico. Todos os tipos de animais humanos estão aqui, chega a dar medo. Impossível não reparar nos tipinhos estranhos jogados a esmo por aqui (como se eu não fosse um). Uma garota com o cabelo azulado e roupas rasgadas demais pra se definir se é/era um vestido ou saia andando de mãos dadas com um guri (eu acho) cabeludo vestido de preto da cabeça aos pés. Do outro lado da rua, um rapper toca algum loop no seu aparelho de som enquanto cospe palavras de ordem pseudo-politizadas nos transeuntes. Coitado. Coitados.

Na esquina da 72 vejo um irmão tocando violão e gaita de boca. Um som lindo, que mistura um folk Dylanesco com algo meio jazzy. Peraí! Eu conheço esse negão!"

— Billie, velhão!

— Peralá. Só acabar esta.

"Sobre a base de algum desses pop-rocks de hoje em dia — eu poderia jurar que é algo inglês, sei lá — ele coloca sua harmônica, brincando com as texturas, improvisando em cima de escalas árabes. Lindo. Eu compraria todos os discos deste cara se ele não fosse um maldito jogado anarquista que nega o lucro de qualquer forma e se recusa a ganhar mais do que o necessário pra sobreviver. Ele depende apenas da grana que a galera joga pra ele na rua e as suas noites são financiadas por fãs e amigos. Como eu."

— Sensacional, velhinho. O que era isso?

— Conheci uns escoceses estes tempos. Têm uma banda chamada Belle and Sebastian. Sei lá, achei o som dos caras legalzinho e resolvi tirar algo em cima.

"Esqueci de dizer que seu modo de sobrevivência musical é ficar amigo dos artistas pra ganhar CD. Viver em NY tem algumas vantagens, afinal!"

— E quando é que você cria vergonha na cara e grava um disco?

— Pra quê, cara? Tudo o que eu quero eu tenho. E não preciso — nem me interessa — divulgar meu som além da Maçã. Já imaginou os caras de longe me enchendo o saco pra fazer turnês ou algo do gênero?

— Cada maluco com sua mania...

— E você? O que tem feito? Ainda com os Birdies?

— Nada, fui chutado, cara. Larguei uma jam de rua pra correr atrás de uma gata e os caras ficaram putos.

— Bem a tua cara, né, Smiley? Sempre se fodendo por um rabo de saia.

— Sei lá. A mulher era sensacional. Os olhos mais lindos que já vi. Tudo nela era delicioso. Pela primeira vez me apaixonei na vida.

— Eu lembro de que você disse isso pela Jo Ann.

— É. Eu sei. Mas desta vez foi de verdade.

— Ah, isso você disse pela Lucille.

— Ah, vai se foder, Billie.

— E tá fazendo o quê aqui em Downtown na madruga?

— São 11 da manhã, cara. Tou atrás de trampo. Vou falar com o Ralph.

— Nem vai, velho. O cara tá muito estressado. A mulher dele andou colocando umas antenas na testa dele.

— Ih. Nem vou lá, então. Vai que ele lembra que eu pegava ela antes deles casarem.

— Você sempre maneirando, né? Eles já eram noivos quando você tava metendo ali.

— Ah, mas isso não conta. Depois que oficializou eu respeitei.

— Eu também respeitaria a faca do cara.

— Engraçadinho. Vou dar um pulo na Blue Note. Tá a fim?

— Não, valeu. O Chris, que é engenheiro lá, tá puto comigo porque eu andei matando um uísque dele sem pedir noite dessas.

— Beleza, cara. Te cuida.

— Tu também, Smiley. Vê se larga de se foder por mulher.

— Pode deixar.

"O sorriso cínico de Billie me acompanha até a esquina. Taí um cara que enxerga a alma dos outros na primeira conversa. Pena eu não poder ajudá-lo mais."

"Entro na Blue Note. Minha espinha gela. A gravadora do melhor jazz que se poderia querer. Estou aqui dentro. É pena que não esteja na situação que gostaria. Mas é a vida, em umas se perde, nas outras se perde ainda mais e assim por diante até o colapso definitivo da mente de qualquer humano normal.
Tina é a recepcionista. Eu a conheço há algum tempo já. Nunca tivemos nada mas eu a considero uma grande parceira pra cerveja."

— Oi Tina.

— Oi, Smiley! Legal te ver aqui. Alguém te chamou finalmente?

— Nada. Só tou aqui rolando, vendo se aparece algum lance.

— E os Birdies?

— Nem pergunta. Só saiba que já foi. Eles vão e eu fico.

— Azar o deles. Petey tá lá dentro, mixando algum som aí. Vai lá.

— Jóia. Qual estúdio?

— Cinco, eu acho.

— Beijo. Você é um anjo!

— Beijo.

— Petey?

Smiley! E aí, meu velho? Entre aí!

— Como tão as coisas?

— Na boa. Tá com os Birdies ainda?

Puta que o pariu! Todo mundo me pergunta isso! Hehehe. Eu fui chutado por indisciplina.

— Bah, bobagens. Por coisas assim se perdem os melhores músicos. No que tá trampando agora?

— Nada. Tou correndo atrás.

— Tá a fim de tirar um som pro disco de um carinha aí? Tão pagando mais ou menos.

O quê? Você tá me convidando pra gravar na Blue Note? Sem problemas, velho! Que som é?

— Só tenho o piano base gravado e alguns sopros. O carinha vai dar as caras aí à tarde.

— E quem é o figura?

— É um tal de Spidey Mars.

— Meio Boiwesco. Não gostei. Mas vamos ver qual é.

"Petey deixa o som rolar no estúdio. Boa composição, as partituras originais do cara deixam margem a interpretação e certo grau de improviso. Legal, vai dar pra viajar um pouco. Quem se daria bem aqui é o Billie. Burrão..."

— Atenção, Miles, quando eu disser, tá?

— Na boa, tou só esperando.

— Então... Gravando!

"A base começa a rolar, leve, no fundo. Parece que este piano nem vai ser usado na mixagem final, tá aí só de guia pros músicos. É estranho, parece que a música tende a se repetir a cada tantos compassos, mas com discretas variações. Vou concentrar nas diferenças e tentar tirar um leitinho de pedra. Meus dedos suam por sobre as cordas do baixo do estúdio. Saudades do meu, mas só poderia trazer se fosse efetivo da casa. Ah, se ela me desse bola...

Os compassos se seguem e eu começo a perder a cosnsciência das coisas. Meus dedos tomam vida própria e já não sou eu que estou no comando. Danço parado com meu instrumento como fosse uma bela argentina a dançar o tango. Por vezes saio da trilha da base para encontrá-la lá na frente, me esperando como a uma amante fiel.

É quando penso onde estou, no que estou fazendo e descubro que um sonho de infância está se realizando sem que eu me dê conta, naturalmente. Fatal, como um guri que, ao tomar consciência de sua virgindade, broxa inexoravelmente, perco as estribeiras e paro de tocar, de repente, do nada."

— Sensacional, Smiley! Pena que você parou no meio. Já estávamos com 15 minutos de gravação!

Quinze minutos? Que é isso, cara? Parece que eu acabo de começar a tocar.

— O sensacional é você acompanhar o som sem pestanejar. E sem ler a partitura também. Parece que foi você quem compôs isso tudo.

— Sei lá. Me parece familiar, como se realmente tivesse tudo saído de mim. Não entendo.

— Bom, vamos descobrir agora. Tina acaba de anunciar os Spidey.

— Os? É mais de um?

— Parece que é um casal. Eu não os conheço. Este trampo aqui era do George, eu tou de quebra galho porque o cara foi chamado pelo Herbie pra mixar em casa.

— Sei. Peraí que a gente vai junto pro escritório.

— Jóia.

Subo as escadas jogando conversa fora com Pete. Apenas para chegar no escritório e encontrar...

— Aretha?

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