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Demolidor # 05

Por Alexandre Mandarino

Diabinhos

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Matt Murdock terminou de escovar os dentes, pegou os livros sobre a mesa de madeira velha da sala e gritou:

— Tchau, pai. Tô indo pra escola!

— Até logo, filho. Hoje não tenho luta. Vou dar uma volta e estarei em casa quando você chegar. Bons estudos!

Não era novidade o fato de Jack Murdock não ter uma luta. Boxeadores velhos eram desprezados, exclusivamente culpados por abraçarem um esporte onde se envelhecia mais cedo. Até mesmo os nomes envelheciam: quem se importaria com um Gladiador Murdock em pleno final dos anos 70? Matt se preocupava com seu pai. Desde que sua mãe morrera, anos atrás, ele havia começado a beber mais e mais. As lutas escasseavam e vários bicos eram necessários para manter a casa e a escola do único filho. "Prometa que nunca vai lutar, Matthew. Por favor. Eu prometi isso à sua mãe. Por favor, filho, prometa. Você precisa estudar para que não se torne um ignorante sem oportunidades como eu. Diga que não vai lutar. Vê o que eu ganhei nos ringues? Um nariz torto, queixo amassado, esta cara feia e os bolsos vazios".

"Está bem, pai. Eu prometo".

Os livros pesavam sobre o ombro direito de Matt em seu caminho para a escola. Até que chegava o momento mais terrível do dia. O ritual que se repetia a cada manhã. A hora de dobrar a esquina de sua rua e entrar no quarteirão seguinte. Como sempre, lá estavam eles. Os meninos da Rua Hickory. Subitamente, a promessa feita ao pai passava a pesar mais que os livros.

— Aí, galera, olha só quem tá ali. É o babaca do Murdock — disse Ethan, de 12 anos.

— Eh. É o próprio Baretta — emendou Shaft, de 15. — Vejam só, a coragem em pessoa. O Muhammad Ali da Cozinha do Inferno.

— Com certeza. Ele é um demolidor, né, não? — disse Wack, de 14 anos. — E aí, Demolidor? Vai demolir o quê hoje, cara? A nossa paciência?

Bobby, de 15 anos, se aproximou e deu um empurrão em Matt:

— Nada, ele vai demolir a poça. Demole a lama, babacão!

Os livros de matemática e história caíram na água imunda, lavando na sujeira o dinheiro que seu pai havia investido com tanto sacrifício.

— Seus... seus merdas! — berrou Murdock.

— Olha só... ele quer vir porrar — disse Ethan. — Vem, Demolidor, vem!

Matt lembrou-se da promessa. Mordeu os lábios, olhou para baixo, fingiu que seus ouvidos não funcionavam e catou os livros no chão. Estavam encharcados. Matt teria que secá-los de alguma forma, antes que seu pai visse o possível estrago.

Durante a aula de história, Maggie ficou olhando para ele. Os olhos azuis, mesmo à distância, logo fizeram o menino esquecer a frustração. No intervalo das aulas, ela se aproximou, mastigando um sanduíche mal feito de pasta de amendoim.

— Matthew — ela nunca o chamava de Matt — o que houve? Você tá nervoso, eu percebi logo. Foram aqueles caras de novo?

— Eu não quero falar sobre isso, Maggie.

Era sempre a mesma coisa. Matt não queria falar sobre isso. Não queria ouvir o que os meninos diziam. Não queria sentir os empurrões. Não podia falar e reagir aos insultos. Como seria ótimo se ele vivesse em uma casca. Se o mundo sumisse e Matt ficasse sozinho. Se seus sentidos sumissem logo de vez e ele não precisasse ouvir as humilhações.

No dia seguinte, após a aula, Matt chegou em casa e encontrou o pai completamente bêbado. As garrafas de whisky vagabundo rolavam, uma a uma, para baixo do sofá. Por instinto, o menino de nove anos entrou pela porta lateral da cozinha e foi para o quarto em silêncio. Lá, comeu o sanduíche de geléia de morango que Maggie havia levado para ele naquela manhã. Maggie. Ela tinha o mesmo nome de sua mãe. Será que os olhos também eram parecidos? Ele gostava de pensar que sim.

Depois de comer, abriu um dos livros e estudou durante duas horas. Finalmente, cansado, fechou os pesados volumes. Caminhou até a porta, trancou-a e, olhando para os lados — ainda que sem motivo — levantou o colchão. Lá estavam eles. Jonah Hex. Rawhide Kid. Kid Colt. E o seu preferido entre todos: o Defensor Mascarado. O nome era o mesmo — Matthew — e a profissão que o herói de Tombstone exercia era a que ele havia escolhido para si: advogado. Ou teria escolhido por causa das revistas? Ele nem se lembrava mais. Havia um cavalo chamado Justiça e Matt achava isso muito empolgante. Havia tão pouca justiça naquele lugar... E nem estava pensando nas surras dos meninos da Hickory. Ele se revoltava com o que via à sua volta.

A sra. Margie, mãe de Ethan, havia morrido há duas semanas. Fora mordida por um rato na perna esquerda. Incapaz de "lembrar onde estava" o cartão da previdência, foi mal atendida por um médico bêbado da vizinhança. A perna infeccionou, gangrenou, morreu e a sra. Margie foi com ela. Ninguém sabia muito sobre o pai de Ethan. Nem o próprio Ethan: ele havia desaparecido há anos. O menino de 12 anos vivia agora com Sarah, a ama-de-leite do bairro. Era o único garoto de quem a Sarah ainda cuidava.

O "médico bêbado da vizinhança" era o pai de Shaft. Os vizinhos ouviam o velho gritar que ele era "o castigo que Deus havia imposto em sua vida por ter feito tantos abortos". Shaft nunca disse nada, até o dia em que perguntou para a professora o que era um aborto. O garoto de 15 anos nunca se arrependeu tanto pelo conhecimento. O sr. Walker, pai de Shaft, bebia há tanto tempo que ninguém naqueles quarteirões se lembrava de tê-lo visto sóbrio. Demitido do hospital municipal por motivos misteriosos, realizou abortos durante anos para sobreviver. Afinal, o gim fazia sua mão tremer tanto e havia tanta clientela na Cozinha do Inferno... Seu Robespierre, o dono da quitanda, jura que ouviu uma vez o sr. Walker, bêbado, murmurar que havia sido demitido do hospital municipal por ser "um negro imundo", mas ninguém sabe se isso é verdade.

Afinal, seu Robespierre nunca falava a verdade. O próprio nome era uma mentira — uma homenagem a alguém da Revolução Francesa ou algo assim, lembrava Matt. O nome real era Phillips e ele era o pai de Maggie, nove anos. A quitanda de Robespierre era o principal ponto de venda de frutas e legumes da Cozinha do Inferno e todo mundo ia lá. Mas muita gente ia pra se divertir. Robespierre falava de como tinha conhecido pessoalmente Danton, Edgar Allan Poe, Benjamin Franklin. Juram que certa vez ele disse que tinha sido um dos apóstolos de Cristo, mas parou de argumentar quando percebeu que Maggie estava chorando, escondida atrás dos pepinos. Seu Robespierre era mesmo difícil de entender.

Nem mesmo o sr. Kelley o entendia. E o sr. Kelley, padrasto de Wack, era considerado muito inteligente. Ele tinha sonhos para a Cozinha do Inferno e vivia tentando convencer as pessoas a votar e "fazer valer seus direitos". A maioria ria dele, mas algumas pessoas sentavam e escutavam. Matt sempre tentava ouvir (pelo menos quando Wack não estava por perto). O sr. Kelley era professor e ninguém nunca havia entendido direito a história da mãe de Wack. Parece que ele tinha sido casado com ela, mas nem mesmo os amigos de Wack sabiam a verdade. Talvez nem mesmo o menino soubesse a verdade. Meninos de 14 anos sabiam verdades?

E havia Bobby. Não, não o garoto de 15 anos. O pai dele, que também chamavam de Bobby. Ele havia sido um velho campeão de beisebol e tinha mais de sessenta anos. Bobby — o filho, o não-campeão — era temporão. A esposa de Bobby — o pai, porque filhos não têm esposas — era lavadeira e também costurava para fora. Seu Bobby era velho demais para trabalhar e estava sempre sorrindo, mas volta e meia era visto reclamando sobre a aposentadoria e como "esse país não respeitava seus símbolos, era tudo uma mentira". Jack Gladiador Murdock achava que seu Bobby era um desses símbolos. O próprio seu Bobby também se achava — e ninguém discordava. Bobby — o filho — vivia tentando apanhar os velhos bastões e bolas de seu pai, mas eles estavam em um armário trancado e só seu Bobby tinha a chave. Afinal, era ele quem passava as manhãs polindo os troféus que ficavam ali também.

Uma manhã, quando estava distraído pensando em como o outro Matthew — o Defensor Mascarado — iria sair da situação em que se meteu na última edição de Marvel Western, Matt nem percebeu que a turma da Rua Hickory não estava na esquina. Carregou seu fardo de livros até a escola. Mas, no intervalo das aulas, Maggie contou a história.

— É verdade, Matt. O sr. Walker tá caído lá dentro do casarão da Rua 9. Dizem que ele tá machucado. Deve ter caído. Foi o Fininho, o jornaleiro, que me contou. Ele viu o velho lá dentro.

Matt saiu preocupado da aula. O casarão da Rua 9 estava fechado e abandonado há muitas décadas. E um demônio vivia lá. Todo mundo sabia disso. Intrigado, Matt não conseguiu tirar da cabeça a imagem do médico negro, embriagado, sem conseguir se mover. Maggie disse que ninguém teve coragem de entrar na casa. Um demônio vivia lá. O mesmo demônio que já havia passado por outras casas abandonadas da Cozinha do Inferno e havia semanas estava morando no casarão verde da Rua 9. Finalmente, em seu caminho pra casa, Matt se viu diante da fachada do casarão. Olhou para os lados, como sempre fazia, e escondeu seus livros nas ruínas dos muros da frente. Respirou fundo, tomou coragem e entrou.

Lá dentro, tudo estava escuro. Não se podia ver absolutamente nada. Caminhou alguns passos e atravessou uns dois — ou seriam três? — cômodos. Foi quando ouviu vozes. Alguém gemia e soluçava.

— Não... eu não consigo levantar... dói muito.

Era o velho Kelley. Outras vozes se fizeram ouvir.

— Você consegue, sim. Vamos lá, pai.

— Já disse pra não me chamar de pai, moleque. Você foi um castigo, um tormento que Deus me deu por ter tirado tantos de vocês, diabinhos, do mundo.

— Vambora, Shaft. Deixa esse caco aí.

— É, ele nem gosta de ser teu pai, o pé-de-cana.

Outras vozes. Os outros meninos estavam lá. Ethan e Bobby.

— Isso, vamo cair fora e chamar alguém pra ajudar. O demônio tá vivendo aqui, cara. Vambora!

Nervoso, Matt gritou:

— Não, peraí. A gente não pode deixar ele aqui. Vamos pegar cada um em um braço e perna e a gente consegue arrastar ele pra fora.

— Hã? Olha só quem tá aqui! — disse Bobby — É o Demolidor!

— Teve coragem de entrar aqui sozinho, covardão? Tá aprendendo a virar homem, é? — completou Ethan.

— Mas tu vai ver só. Galera, vamo mostrar pra ele que não se entra na casa do demônio a toa.

Os quatro meninos começaram a bater em Matt. No escuro, ele não conseguia ver nada. Cotoveladas, pontapés, era sangue que saía do seu nariz? O escuro. Maldita escuridão. Para onde ele iria correr? Mas antes da coisa realmente ficar feia, uma nova voz se fez ouvir:

— Vamo parando com isso aí. Seus capetinhas! Olha só a covardia. Quatro menino grande batendo num menor na escuridão. Sai daí!

— Corre! — gritou Ethan. — É o demônio!

Matt desmaiou e a escuridão ficou ainda maior.

Acordou meia hora mais tarde. Estava em sua cama. Olhou em volta. Alguém havia feito curativos em seus ferimentos.

— Pai?

O velho Jack dormia, bêbado e triste, deitado no sofá. E parecia estar assim desde o início da manhã. Naquela noite, Matt adormeceu tentando se convencer de que o Defensor Mascarado o havia recolhido naquele casarão, levado em seu cavalo até em casa (Justiça?), feito curativos em seus braços, pernas e queixo e ido embora. Mas ele sabia que isso era impossível. A verdade, como sempre, era mais feia e intrigante. O demônio o havia salvo.

No dia seguinte, Maggie contou a ele que alguém chamou o pai dela, seu Robespierre, para ajudar o sr. Kelley dentro da casa. Robespierre foi na mesma hora, garantindo que havia conhecido Helen Keller.

— E quem chamou?

— Eu vi só do alto da janela do segundo andar, Matt. Mas era um homem muito feio.

Cinco meses depois, a polícia descobriu quem era o demônio. Era o sr. Williams, pai de Ethan, que havia sumido há anos. Ele havia enlouquecido e vivia durante o dia enclausurado nos casarões abandonados da Cozinha do Inferno, sempre mudando de lugar quando era descoberto. Estava barbudo, cabeludo, cheio de piolhos, com os olhos incrivelmente vermelhos. Ethan não o reconheceu e disse que aquele não era o pai dele. Nessa hora, o sr. Williams olhou para o menino e fez uma cara que Matt nunca conseguiu entender.

Três anos depois, naquele mesmo dia, Matt se viu novamente preso na escuridão.

Mas, desta vez, ela não foi embora.

Depois dos dias que passou no hospital, Matt voltou à sua rotina. Carregava os livros, atravessava a esquina e ia para a escola. Mas tudo havia mudado. Era a bengala quem atravessava a esquina para ele. E os meninos — sabia que estavam lá — nunca mais falaram nada. Finalmente, Matt não precisava ouvir o que eles diziam. Eles não diziam nada. Não precisava fingir que não sentia os empurrões e — o mais doloroso — não precisava fingir que não os estava vendo. Agora eram eles que fingiam não enxergar Matt. A escuridão estava dentro dele, mas Matt logo percebeu que os que estavam fora dela é que não enxergavam.

O irônico é que só descobriu o quanto essa sensação era verdadeira anos depois, quando aprendeu a dominar seus supersentidos.

Uma manhã em especial pareceu ser mais brilhante que as outras. Seu pai havia arrumado um emprego como boxeador, o que ele mais gostava. Finalmente, poderia parar com os biscates e — quem sabe — até mesmo de beber.

— Filho, o Sweeney topou em me dar uma nova chance nos ringues. Vou poder continuar pagando a sua faculdade.

Agora Matt sabia que tudo iria melhorar.

Ethan Preston abandonou a Cozinha do Inferno após a morte de Sarah, a ama-de-leite. Trabalhou como vendedor de seguros durante alguns anos, em Nova Jersey. Em seguida, entrou para um culto evangélico e tornou-se obreiro. A menção do "demônio" o deixava muito transtornado. Tentou várias vezes descobrir que fim seu pai havia levado após aquele estranho dia, sem nenhum sucesso. Morreu aos 29 anos, baleado durante um assalto, no dia em que decidiu voltar à Cozinha do Inferno e entrar novamente no Casarão da Rua 9. Ele não sabia que o Casarão não existia mais.

Ronald Walker, o Shaft, tentou fazer medicina, mas não conseguiu vaga em uma universidade. Trabalhou durante anos como voluntário em uma organização contra abortos, até finalmente conseguir bolsa em uma faculdade, graças aos seu talento como jogador de basquete. Duas semanas depois do início das aulas, aos 26 anos, foi morto pela polícia de Nova York quando saía de uma passeata em frente a uma clínica de aborto. O sargento Jackson disse em seu depoimento que Shaft estava tentando "atear fogo na clínica", apesar de várias testemunhas terem garantido o contrário.

Robert Paul Smith, o Bobby, conseguiu se eleger vereador, angariando votos pela Cozinha do Inferno e Bowery. Desprezado pelos colegas por "não ter estudo", tentou durante anos erguer um estádio de beisebol no bairro onde havia nascido e crescido, bem como promover uma campanha para levar lazer aos jovens carentes. Morreu aos 27 anos, em um misterioso acidente de carro, sem conseguir realizar seu sonho. O Estádio Robert Smith — o pai, não o filho — nunca saiu do papel.

Terence Kelly, o Wack, trabalhou durante anos como disc-jockey em rádios de Nova Jersey. Em uma noite escura e nublada, uma senhora telefonou para a rádio e disse que era a sua mãe. A rádio ficou fora do ar durante uma hora e meia. Quando finalmente conseguiram abrir as portas trancadas do estúdio, Wack estava morto, após ingerir uma quantidade absurda de barbitúricos e vodka. Estranhamente, a conversa com a misteriosa senhora não foi gravada pelo sistema de secretária eletrônica automática da estação. Na vitrola, um vinil arranhado repetia a última frase de What's happening, brother?, de Marvin Gaye.

Margareth Maggie Phillips fez dois abortos nos cinco anos seguintes e manteve a quitanda na Cozinha do Inferno por mais alguns meses após seu pai ter sido levado pelos paramédicos do asilo psiquiátrico municipal — naquela terrível tarde onde ele gritava "Brumário! Brumário!" Em uma manhã de outono, a quitanda amanheceu fechada. Anos depois, Matt soube que Maggie estava trabalhando como auxiliar de enfermagem e professora de inglês em um orfanato no Colorado. Depois disso, perdeu seu paradeiro.

Matthew Matt Murdock formou-se advogado e... bom, é uma longa história. Basta dizer que ele escapou duas vezes da escuridão graças a um demônio.

O demônio?

Bem, dizem que ele, após tantos anos, ainda ronda a Cozinha do Inferno. Mas deve estar muito mudado.



 
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