hyperfan  
 

Doutor Estranho e Hellblazer - O Estranho e o Louco # 04

Por Dell Freire

Sublimatio

:: Sobre o Autor

:: Edição Anterior
:: Voltar a Doutor Estranho e Hellblazer - O Estranho e o Louco
:: Outros Títulos

Stephen Strange murmura algumas palavras que o levam a um transe auto-hipnótico e suas mãos e pernas calculadamente levam o seu corpo a realizar a posição de flor de lótus, comumente praticada em Yoga; vagarosamente, sua magia purifica seu corpo, retira toda a densidade e impurezas comuns e Strange começa a levitar em sentido vertical.

À sua frente, o Apocryphon se abre diante das intenções mágicas do Mago Supremo. "Este livro deve ser fascinante", reflete Strange. "Não sei até que ponto se apresenta como perigo ou como um desafio lançado pelos nossos Superiores Desconhecidos" (**)

O ambiente do quarto em que está hospedado ganha um natural perfume de incenso e esferas de diversas cores começam a levitar, cada uma representando as forças dos elementares e os pontos cardeais. "Há uma necessidade de se conhecer o inimigo para poder enfrentá-lo e, diante desse axioma, não tenho mais nada a fazer a não ser procurar a resposta, mesmo que seja sozinho."

Nesse instante, firmes e repetidas batidas na porta são ouvidas por ele. Ele não move um músculo.

— Deixa de ser maneiroso, porra! Sabe que eu quero falar contigo!

"Constantine!" Descomposto com a interrupção brusca, Strange relaxa os músculos e abre as mãos, fazendo seu corpo retornar ao chão. Após encerrar a levitação, ele se dirige até a porta para abrí-la.

— O que quer? — o Doutor ajeita as mangas de seu uniforme, virando as costas para o outro — Pensei que tivéssemos chegado ao final de nosso objetivo.

— Nah...— o tom de voz do britânico é um pouco pastoso — Ainda quero trocar umas idéias contigo, velho.

— Constantine, você está bêbado; não acho que seja o melhor momento para falarmos sobre o que quer que seja. Não jogue nossa amistosa convivência até o momento para o alto.

— Cadê o livro?

— Aqui — com um gesto, Strange chama o volume para suas mãos — Estava para decifrá-lo quando você me fez o favor de interromper.

John Constantine retira o seu isqueiro Zippo, que possui a figura da serpente Ourobouros cravado nele, e o acende, fazendo aparecer uma pequena chama bruxuleante.

— Quer ter a honra? — o sorriso do inglês é largo.

— Entre e feche a porta — pede o ex-médico.

Não sem antes acender um dos seus intermináveis cigarros, Constantine atende ao pedido do outro; quando se vira, Stephen Strange está sentado com sua habitual roupa de Mago Supremo, olhos fixos nele. Mal contém uma gargalhada; não seria hoje nem nunca que iria se acostumar com as roupas carnavalescas de mais da metade de seus aliados. "E olha que o cara está até discreto hoje..." observa consigo mesmo o inglês.

— Eu tomei uma atitude e gostaria de lhe comunicar. — as mãos de Stephen Strange estão fechadas e os dedos indicadores um pouco abaixo dos lábios — Não irei destruir esse livro, exatamente pelo que representa para toda a humanidade; mas também não irei expor o seu conteúdo para ninguém. Penso que ele deve ser devidamente estudado e catalogado para possível referência e que essa é uma oportunidade única que me dou o direito de ter. Minhas mãos são seguras e responsáveis o suficiente para lê-lo.

Constantine se recosta um pouco na parede, o cigarro movendo-se para cima e para baixo na boca.

— Ah, tá! E pelo que entendi isso não foi exatamente uma consulta; você já tomou essa decisão.

— Exatamente — responde Strange, impassível.

— Sabe, por um minuto pensei que você fosse diferente da maioria. — O olhar do inglês o fuzila e, em seguida, seu sorriso cínico se abre — Mas é sempre a mesma merda: mais um mago fodão pronto para colocar o mundo sob a sua capa dizendo o que ele precisa.

— Não jogue comigo. — o Mago Supremo é direto — Sobre mim, a influência de sua oratória é totalmente nula. E, pelo que pude perceber, muito das suas experiências são mais direcionadas ao Microcosmo; sua visão de mundo é rasa, periférica e pouco ligada ao Macrocosmo. Alguns momentos com meus amigos da Liga da Justiça (***) poderiam mudar isso...

— Foda-se a Liga! — ele passa as mãos sobre os cabelos louros — Não me venha com esse papo protecionista de que estamos aqui para salvar a porra do mundo!

— Sem querer bater de frente com a sua retórica digna de um gentleman, o mundo oculto não é tão simples como parece. Ele precisa de alguém que sustente todo o seu organograma, toda a sua estrutura mágica; qualquer coisa que escape pode ser tão perigoso quanto uma pequena fissura em uma represa. Tudo deve ser conhecido!

O Doutor Estranho se levanta, a voz tranqüila causando uma certa irritação em Constantine, e prossegue enquanto caminha em direção à janela.

— O Sol é umas das maiores forças da natureza e, para que ele não destruísse nossos antepassados, o deus Set precisou surgir de dentro dele, trazendo a inundação das águas do Nilo para fertilizar a terra e trazer liberdade a seu povo. — ele se vira para seu interlocutor, sem perder a calma — Eu sou Set se erguendo dentro do Sol, Constantine. Eu sou aquele que fertiliza para o plantio e sabe o que vai chegar na colheita. E, por isso, não posso fugir às minhas responsabilidades.

— Muito conveniente. — o outro balança a cabeça tristemente — Muito mesmo. A porcaria toda, Strange, é que nem você e nem ninguém chega ao controle de tudo. Não me importo com o poder do Apocryphon e nem vou usá-lo em uma equação mágica que proteja o mundo; mas não quero e nem vou deixar que a sua arrogância traga mais destruição. Se Cristo ou o próprio Demônio vissem o número de mortos que suas briguinhas causaram, ficariam envergonhados!

— Então, pelo que vejo, seu discurso todo é uma fachada. Você quer, tanto quanto eu, salvar o mundo. Mesmo que seja à sua maneira, é o que você também deseja.

Constantine, com fúria, faz um gesto obsceno.

— Foda-se o mundo, Strange! Eu não quero salvá-lo! Eu quero salvar o homem, o indivíduo ou, como você gosta de vomitar, a porra do Microcosmo. Eu sou a grande Babalon, a grande puta do Novo Aeon que dança e cavalga na Besta querendo mudança! Não tenho nenhuma virtude estéril pra salvar essa desgraça de mundo. Se for preciso beber o sangue dos santos pra garantir a minha sagrada Vontade de trepar e gozar, eu o farei!

— Nós somos forças antagônicas — Strange põe as duas mãos espalmadas sobre a mesa, o livro entre os dois magos, o olhar fixo sobre Constantine.

— Não tenha a mínima dúvida disso! — o inglês de sobretudo retira o cigarro da boca e, com ele ainda aceso, o usa para queimar a mão direita do Mago Supremo.

Arghhhhhhhhh! — em um ato rápido, Strange segura a mão ferida — Já domei demônios mais fortes que você no Inferno! Não abuse de minha paciência.

— Tente me ensinar das tuas coisas, Strange... Que a vida é séria e a guerra é dura... Mas se não puder, cale essa boca! (****)

De repente, duas risadas sobrenaturais dominam o ambiente.

— Chamando demônios do Inferno pra me pegar, Doutor Estranho?

— Não existe Inferno maior que o nosso inconsciente, Constantine; mas essas vozes não vêm de lá.

A porta se abre, deixando os dois magos de sobreaviso para uma eventual ameaça sobrenatural; as vozes se tornam mais próximas e parecem conversar animadamente. O espírito do Ancião, o velho mestre de Strange morto há anos, surge ladeado por um jovem pré-adolescente cheio de vigor mágico conhecido como Tim Hunter. Como espíritos traquinas, cada um aponta para seu amigo correspondente, em meio a risadas.

— O Careta. — o Ancião aponta para Stephen Strange.

— E o Vagabundo! — aponta Tim Hunter para John Constantine — Eu não poderia perder um momento como esse.

— O ego de vocês dois consegue ser maior do que a minha paciência e do que a insegurança desse jovem promissor. — um Ancião ligeiramente preocupado resolve pôr um pouco de ordem na situação — Mas, ao menos, esse jovem está na idade para o aprendizado; o mesmo não digo de vocês, homens orgulhosos.

— De que museu tirou essa peça, Tim? — pergunta Constantine.

Com um estalo de dedos, o corpo astral do Ancião joga o homem de sobretudo contra a parede de forma violenta e ele, com um palavrão, resolve não fazer novas provocações.

— Basta eu te abandonar por alguns anos, Stephen, e começa a andar com más companhias...

— É um prazer revê-lo, senhor.

— Apesar do momento não ser dos mais oportunos e — olhando furiosamente para Constantine — as companhias não serem das mais agradáveis, achei por bem intervir nesse processo.

— E ele? — o Doutor Estranho se inquieta com a presença de Hunter.

— É um prazer também te conhecer, Doutor... — o jovem mago ajeita os óculos e depois cruza os braços — E, por favor, você e o John poderiam parar de discutir pra gente resolver isso logo. Ainda tenho que estudar pra uma prova de biologia e uma de — ele faz uma careta — geometria...

— Pitágoras era um grande mago. — o Ancião diz para o menino.

— Não vem com essa! — Hunter balança a cabeça negativamente — se o destino do mundo depender de meus dons matemáticos, é bom que a gente se prepare pro Apocalipse.

— Não estamos longe disso, Tim. — suspira o Ancião — Pode me explicar o que você pretendia abrindo o livro, Stephen??!!

— É minha responsabilidade...

— Não recomece, por favor. — o Ancião levanta a mão direita — Você e esse ser desprezível de sobretudo ainda têm muito o que aprender em seus caminhos e uma dessas coisas é de que o Apocryphon não é para ser profanado com a leitura e muito menos destruído.

— Ele é pra ser vivido por quem é de direito. — afirma o garoto.

— Viram? Até um rapazinho como ele já entendeu tudo...

O livro levita até as mãos do velho mago.

— Eu e o jovem Hunter ainda temos muito o que conversar com vocês dois; sabemos como são turrões e só entenderão o que dissermos depois de muita conversa. Caso contrário, como todos os outros amigos de vocês também fizeram, irão se servir do livro e não serví-lo. Conversaremos, os quatro, sobre isso no jantar de hoje à noite. E, até lá, o livro ficará sob nossos cuidados.

O velho e o menino vão saindo, quando o Ancião se vira, dirigindo-se a Constantine.

— E você, por favor, dê um jeito de fazer um bom e forte gargarejo! Ao contrário do que possa pensar, espíritos não tem o hábito de dialogar com pessoas fedendo à álcool!

Em um pequeno restaurante em Louisiana, John Constantine e Stephen Strange esperam seus dois amigos.

— Está inclinado a fazer o jogo deles, não é, Stephen?

— Não. Estou inclinado a respeitar o ponto de vista de alguém que me ensinou tudo o que sei. Você deveria fazer o mesmo.

— Por quê? A única coisa que devo àquele ectoplasma engraçadinho é uma tremenda dor nas costas. — Constantine endireita a coluna — Sob hipótese alguma vou fazer o seu jogo e de tantos outros que querem ser os vigilantes cósmicos do Universo e que estão pouco se fudendo pras liberdades individuais.

— Se o que você chama de liberdades...

— Não! De novo não! — Tim Hunter aparece dando um tapa de insatisfação na própria testa e com o Apocryphon debaixo do braço — Vocês não cansam nunca de discutir?

— Onde está o Matusalém? — pergunta o inglês.

— Eu ouvi isso, Constantine! — responde o Ancião que surge de repente.

O antigo instrutor de Strange usa um pequeno feitiço que, aos olhos dos outros, faz com que pareça um ser vivo vestindo um terno e uma calça bem cortada; o próprio Doutor Estranho, ainda com sua habitual vestimenta de trabalho, também usa do mesmo feitiço. Hunter e Constantine, informais como sempre, não usam de nenhum subterfúgio semelhante.

— O que vocês dois querem tanto conversar?

— Acalmem-se os dois e bebam um pouco mais desse vinho — responde um Ancião um pouco mais animado do que na noite anterior .

— Senhor, gostaria de lembrá-lo de que eu não bebo há... — a cabeça de Stephen Strange começa a latejar um pouco — Apenas pedi... um suco... e...

— Algum problema, Stephen? — pergunta o Ancião — Espero que sua bebida não esteja estragada.

Nesse momento, Constantine segura firmemente o braço de Tim Hunter.

— Moleque... eu tô ficando mais zonzo... do que na minha última bebedeira... Alguém colocou drogas... nas...

— Sim. — Tim Hunter sorri, travesso — E foi bastante caro subornar o cara pra fazer isso.

— Filhos da ...

Pouco antes de desmaiar, o mago inglês começa a tentar puxar o livro para si, mas seu corpo está começando a não responder aos seus comandos; ao seu lado, Strange está surpreso e totalmente zonzo. A última visão de Stephen é o sorriso largo e enigmático do Ancião, seu rosto envelhecido começando a girar diante do Mago Supremo. Gradativamente, a perda da consciência chega para Constantine e o Doutor Estranho tão direta e sombria como a escuridão.

A ausência total de luz no estábulo torna o despertar dos dois magos um pouco menos incômodo.

— Onde estamos, Constantine? — o ex-médico levanta-se, com fortes dores na cabeça.

— Não sei...

Em um reflexo natural, o britânico busca seu isqueiro, mas sem sucesso.

— Mas que porra...? — para sua surpresa, suas roupas estão completamente diferentes.

— Por Vishanti, não estamos mais em nossa época! — as roupas de Stephen Strange também não são mais as mesmas, se aproximando da vestimenta do início da Era Cristã.

O barulho fora do estábulo parece uma festa, com instrumentos musicais, danças e cantoria; as conversas são feitas em voz alta e as risadas demonstram puro prazer.

— Vamos sair. — Stephen Strange não vê outra hipótese e seu aliado não se opõe.

Em meio às festividades que parecem ser uma mistura entre o sagrado e o profano, os dois homens fora de sua época caminham entre o povo. O Doutor Estranho mostra-se curioso com relação a tudo que vê e Constantine mantém um ar de total indiferença. Ambos parecem esperar ainda tentando se adaptar à situação.

— Trinta dinheiros... Não menos do que trinta dinheiros... — um homem sussurra para outro, enquanto os dois magos passam, mas Constantine consegue ouví-lo perfeitamente.

— Tem sempre um espírito de porco pra melar tudo, não é, Stephen, meu velho?

— Gostaria de ter o mesmo ar blasé que você, Constantine.

— Treina, meu velho, treina que um dia tu consegue.

— Aparentemente percebeu onde estamos?

— Num pesadelo? Ou isso ou acabaram de inventar uma Disneylândia bíblica...

Um pequeno homem velho e sujo consegue segurar um barril de vinho maior do que ele. Seu bigode e seus cabelos acinzentados fazem um contraste com sua pele morena e seus traços marcadamente árabes; parece estar agitado.

— Vocês dois... forasteiros... venham comigo... Ele quer vocês... ao seu lado...

— Mas quem...?

— Vamos, Stephen! O que temos a perder?

Ambos seguem o pequeno homem que se esforça para falar e guiá-los ao mesmo tempo no meio da multidão.

— Ali. Ele está logo ali... venham...

O homem apontado pelo árabe bate palmas acompanhando o ritmo da música ao lado de uma linda mulher que possui alguns traços da raça negra; na verdade, o tal homem com quem Strange e Constantine deveriam se encontrar é um judeu apenas um pouco menos moreno do que ela e possui uma barba espessa, um nariz levemente adunco, cabelos curtos e um pouco crespos, sombrancelhas cerradas e um olhar firme que ora se concentra nas festividades, ora se concentra na aproximação dos forasteiros.

— Senhor, eis mais um pouco de vinho.

— Ó, meu grande amigo Raful, sempre o mais atencioso e verdadeiro dos amigos.

— Bondade sua, senhor. Na verdade, esse velho árabe não faz mais do que a obrigação em ser gentil com os mais moços. — ele se lembra dos dois homens que o ladeiam — Ah, trouxe os forasteiros com quem gostaria de conversar.

— Grato, Raful. Vamos, sentem-se. Sintam-se em casa, meus meninos. — o sorriso largo do homem que parece ser o anfitrião logo é preenchido por um rápido beijo de sua mulher que se afastou para deixá-lo a sós.

— Maria é a mais doce das mulheres. — ele enche uma taça de vinho e pega um pedaço de carneiro assado embebido em molho — Querem vinho?

— Não, obrigado... — recusa Strange.

— Ainda chateados com o menino? — sorri o judeu, fazendo uma referência a Tim.

— Ah, mas então você está por dentro da jogada! — diante da mesa, Constantine não se faz de rogado. Pega um pedaço de pão, uma coxa de frango e uma taça. Ele estica o braço para que o Judeu possa enchê-la.

— Na verdade, digamos que tanto o garoto como o velho atenderam a um pedido meu... — o homem enche a taça até a borda — Parece que vocês dois querem se apropriar de algo pelo qual sou responsável.

— Por que escrever um Apocryphon? Por que não destruí-lo?

— Stephen, eu pedi para que alguém o destruísse. — ele olha de lado para sua mulher que se mantém a alguns metros dele — Mas parece que não fui atendido...

— Peça algo para uma mulher e ela fará justamente o contrário, homem. — Constantine parece saborear muito o vinho e, bastante à vontade, arrota.

— Por Vishanti, perdoe-o por...

— Acalme-se, Stephen. — sorri o Judeu — O vinho é realmente um dos melhores de toda a região.

Pegando a própria taça, o Judeu brinda com John Constantine.

— Pelo visto — Stephen retoma o assunto — é de seu desejo ver o livrodestruído.

— Originalmente, sim. Mas agora é tarde demais. Compreenda que, mesmo na minha posição, ou mesmo por ela, não haveria outra forma de guardar minhas sensações do que em um diário. Há tradições muito antigas que me recomendavam isso. Porém, confesso, errei em deixá-lo em mãos erradas.

— Grandes amigos meus e do Estranho queriam despertar o Outro e obrigá-lo a servi-lo — afirma Constantine.

— Tolice. Esses não entenderam nada! Nada! — o Judeu fica ligeiramente furioso — Não tenho um irmão gêmeo, um Outro todo-poderoso que irá aparecer como um djinn (*****) que irá satisfazer os desejos de alguém. Apenas indiquei, em meu diário, que todo homem e toda mulher, por mais humilde que seja, possui dentro de si um Outro mais poderoso, mais forte, um verdadeiro mago, um deus poderoso que pode e deve realizar os seus desejos e de seus irmãos.

— Não existe Deus senão o próprio homem. — afirma Constantine.

— De certa forma, sim — o olhar do Judeu se torna distante — Parece incrível, mas eu sabia as múltiplas visões que todo o meu esforço iria causar. E sabia que minha palavra seria deturpada pelas diversas religiões fundadas em meu nome, desenvolvendo no homem a submissão aos conceitos e às morais vigentes e à ordem política estabelecida, matando assim o Outro que existe em cada um de nós.

— A magia ficou em segundo plano. — afirma Stephen, cuidadosamente.

— Definitivamente, ficou. — o olhar apaixonado do Judeu repousa sobre as formas insinuantes de Maria — E sem magia não estaríamos aqui conversando. Se cada um manifestar o poder que existe dentro de si, isso irá salvá-los; caso contrário, se for represado, isso os matará.

— Mas Peixes e Virgem não poderão oferecer isso; estou enganado? — questiona o Doutor Estranho, referindo-se as representações zodiacais da mitologia cristã.

— Não irão. — o Judeu se mostra mais tranqüilo — É hora de abandonar a velha era de Peixes e Virgem e ver que nosso esplendor está na nossa verdadeira forma: Aquário e Leão.

— Babalon e a Besta Therion. A Bela e a Fera. — Constantine começa a ficar embriagado pela conversa e pelo vinho e faz suas habituais intervenções — Um absurdo atrás de outro absurdo!

— Sim, John. Mas a verdadeira fé é crer no absurdo — afirma o Judeu.

— Então não podemos nos aprofundar nos mistérios do livro, pois ainda não está ao nosso alcance. — afirma o Doutor Estranho — Nem podemos desistir e queimá-lo por nos acharmos diante de algo maior do que nós.

— Como disse o garoto, temos que simplesmente viver o livro — completa John.

— Exatamente! — com um sorriso largo, o Judeu se levanta e abraça seus novos amigos — E não deixem ninguém, em hipótese alguma, tirar essa oportunidade de vocês! Meus amigos... Vejo que vocês dois ainda possuem uma longa estrada pela frente e que são meus gêmeos e meus verdadeiros companheiros. Examinem a si mesmos para compreender quem são. Eu sou o conhecimento da Verdade. Se me acompanharem, ainda que não compreendam, já poderão ser chamados de aqueles que conhecem a si mesmos. Pois quem não se conheceu, nada conheceu; mas quem se conheceu alcançou ao mesmo tempo conhecimento sobre as profundezas de todas as coisas.

Surge uma aura luminosa do corpo do Judeu que começa a incomodar a vista de John Constantine e Stephen Strange e vai se transformando em um intenso clarão. Eles se afastam de seu novo aliado, imaginando que podem ser feridos pela força do homem à sua frente; seus braços protegem seus olhos, há uma forte e irresistível sensação de tontura. Ambos desmaiam.

Quando os dois magos acordam, estão de posse de suas vestes habituais e encontram-se no hotel em que estão hospedados em Louisiana.

— Putz, que demora! — Tim Hunter dá uma risadinha, ainda com o livro debaixo do braço — Será que exageramos na dose?

— Garoto, lembre-me de em uma outra oportunidade eu te dar o troco, OK? — Constantine levanta-se, desorientado, irritado e confuso — E eu não estou brincando.

— Deixe de ser rabugento, Constantine. — a forma astral do Ancião levita — Certas pessoas não mudam mesmo.

— Senhor, quanto ao livro... — Stephen parece um pouco constrangido — Acho que nem eu nem Constantine devemos dizer o que deve ser feito dele.

— Isso. — concorda Constantine, acendendo um cigarro.

— Finalmente conseguimos a compreensão de vocês. — afirma o Ancião — De nada adiantaria se levássemos o livro e ficassem a nos importunar sobre ele o tempo todo. Esqueçam-no e jamais irão se separar dele. É a minha recomendação.

Tim Hunter abre a porta para sair, o Apocryphon em suas mãos; tanto ele quanto o velho demonstram uma cumplicidade que antes era insuspeitada.

— Nós vamos ser os guardiões do Apocryphon — diz o garoto — porque o velho e o novo, a morte e a vida, a tradição e a revolução contêm a Verdade.

A porta é fechada. John Constantine e o Doutor Estranho se entreolham; cabe ao último estender a mão em sinal de conciliação. O mago inglês aceita o aperto de mão.

— Apesar das diferenças, foi uma honra ser seu aliado, Constantine.

— OK, velho. Digo o mesmo. Mas não havia como não termos nossas diferenças. Eu nasci em meio às ruas, cresci em meio aos trabalhadores e vi nascer o movimento punk; diferente de você, um ricaço, eu não nasci com o Olho de Agamotto virado pra lua.

Nesse momento, um livro cai da estante do quarto de hotel com as páginas viradas para cima e exibindo o horrendo Baphomet de Mendes, uma imensa figura com pernas e cabeça de bode que possui seios femininos. Uma das mãos simbolicamente está virada para cima e a outra para baixo.

— Havia um garoto que a Morte levou recentemente e que possuía uma outra edição deste livro (******). É um livro de feitiços de quinta categoria. — vêm à mente de Constantine a imagem do corpo do jovem estirado no chão — Curioso que uma cópia dele esteja aqui e que tenha caído exatamente nessa página.

— Sim, meu amigo. Talvez essa figura represente nossas vidas. Uma apontando para cima e outra para baixo. Uma coagulando e outra dissolvendo. Uma construindo e o outra destruindo.

— Mas eu sei e você sabe que ambas vão dar no mesmo lugar. — complementa Constantine, abrindo a porta do quarto de hotel e se despedindo do Doutor Estranho fazendo o sinal de V com uma das mãos.

:: Notas do Autor

(*) Sublimatio, na Alquimia, é o processo transformador de um conteúdo em imagem. Pode ser compreendido como impulso espontâneo para dar um sentido espiritual a fatos concretos.

(**) Resgatado por McGregor Mathers, o conceito dos Superiores Desconhecidos é algo que faz parte do imaginário de alguns povos do Oriente e do Ocidente. Habitando debaixo da Terra, vindo de outros planetas, do Inferno ou do Inconsciente, esses seres seriam os governantes e instrutores do mundo através de contatos esporádicos com alguns iniciados.

(***) Grupo ao qual o Doutor Estranho está filiado e tem como objetivo a proteção do Universo.

(****) Essa frase é uma pequena homenagem a Raul Seixas (in memorian) e seus aliados na construção do Novo Aeon: Frater Parzival (in memorian), Frater Áster (onde quer que esteja) e Frater Lúcifer (que decepcionou a todos eles).

(*****) Gênio da lâmpada para os povos árabes.

(******) Durante a segunda edição desta mini-série.



 
[ topo ]
 
Todos os nomes, conceitos e personagens são © e ® de seus proprietários. Todo o resto é propriedade hyperfan.