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Por
Dell Freire
Refugos,
Viagens e Modelos
Parte Final
Os ouvidos de John
Constantine parecem arder com a série de rituais, cálculos
matemáticos e conceitos de mecânica quântica
que vez ou outra parecem levar a lugar algum por sair pela boca
de um auto-intitulado representante da Ordem dos Magos Eletrônicos,
seu velho amigo Pete. Ele volta com o que considera ser uma proposta
irrecusável para Constantine e que levará a ambos
para uma esfera de poder inimaginável nos graus do esoterismo.
Sua proposta me parece tentadora. com o canto do
olho, Constantine finge demonstrar interesse pela proposta
Mas acho que não tem como ajudá-lo... Que diabos!
Não tenho interesse em ficar manipulando mentes ou coisa
parecida! Muito pelo contrário.
Me ouça, Constantine! Me ouça! Pete
fica agitado, debruçando-se suavemente sobre seu laptop
Minha posição dentro da Ordem é frágil,
diria até insustentável; se eu não virar
a mesa, eu é que serei o alvo.
E eu com isso?
Não percebe, homem? Já faço parte
do jogo, conheço as regras e finjo fazer o mesmo jogo que
eles! Com sua ajuda, posso virar a mesa! Posso destruir tudo o
que eles têm e criar uma nova ordem onde eu e você
seremos os soberanos absolutos.
Sei... o mago parece não levar em consideração
a palavra do outro Pete, ouça bem...
Não me fale de novo daquela vez que te ajudei!
Duas vezes! Porra, foram duas vezes que você me negou
ajuda!
Lá vem você de novo com essa história
de te negar duas vezes, John... Pelo que eu me lembro, isso aconteceu
uma única vez!
O caralho! a voz do mago britânico soa amarga;
seu passado volta novamente à tona Eu, você,
a merda do Johnny Rotten e o Syd... Uma merda punk cheia de utopia
que não levaria a lugar algum!
A Noite das Putas! Pete põe a mão
na cabeça, pega um copo de whisky e o bebe rapidamente
Você não vai se lembrar de uma noite...
A idéia foi sua! Invadir uma clínica de abortos,
começar a barbarizar as mulheres que pareciam vacas trêmulas
diante do abatedouro e chutar a bunda de uns açougueiros.
Simples assim.
Foi divertido! com certo orgulho, Pete deixa sua
mente voltar também ao passado.
Arranjamos umas roupas de enfermeiros, colocamos máscaras
cirúrgicas por cima de nossos trapos e cabelos desgrenhados.
Fomos até as últimas conseqüências. Syd
deve ter bolinado quase todas as grávidas, Johnny lambia
a outra metade e você gostava de chutar os médicos,
enquanto eu fiquei ligado na atendente com peitos enormes.
Teria sido melhor se Johnny não tivesse deixado
o cigarro cair e começado o incêndio.
Não! afirma Constantine Esse foi você,
tenho certeza!
Mas eu nunca fumei! o rosto inocente de Pete beira
o deboche.
Nessa época, você tinha todos os vícios.
Putz. Sua memória, quando melhora, chega a ser constrangedora...
A merda começou a feder quando vimos aquele grupo
de ativistas anti-aborto chegar! prossegue John
Fomos tão idiotas que não os percebemos à
espreita bem antes de nós! Eles chegaram e começaram
a botar pra quebrar e queriam que os ajudássemos; pensavam
que pertencíamos à mesma causa que eles.
E ficamos levando porrada dos dois lados!
Sim... Nós não estávamos de lado algum...
Tá! Mas chegue logo ao ponto. Conheço bem
a história: a polícia chega e te prende.
Constantine sorri de lado.
Não sejamos tão simplistas, não vamos
deixar o Chas aqui achando que é só isso.
Chas, o único amigo de Constantine, está dividindo
a mesa com eles, mas dorme em sono profundo graças a uma
bebedeira inesperada Johnny e Syd, quando os militantes
chegaram, acabaram fugindo pelos fundos entre chutes e pontapés.
Você parecia estar gostando do fogo que se alastrava, parecia
tão fascinado quanto uma criança. Quando a sirene
tocou pela primeira vez naquela manhã, você já
estava fugindo. Mas eu levei um pontapé e fui de cara ao
chão. Fui preso. Colocado na viatura. Lembra o que aconteceu
depois?
Não. Pete mente descaradamente.
Um policial te olhou em meio à multidão,
te puxou pelo braço e te colocou na minha frente. Quando
o tira te perguntou se me conhecia, você negou. E foi embora.
Você teria feito o mesmo! afirma Pete.
Se eu teria feito? Talvez. Com mais estilo e verdade? Com
certeza. Só não fico lambendo as botas dos que jogo
pro chão sob pretexto de uma amizade que não existe.
Calma...
Foda-se! quando o mago já está para
ir embora, Pete o puxa pelo braço.
Não estamos aqui juntos gratuitamente. o
olhar de Pete parece hipnotizado, quase em transe Tudo
isso é intencional, fruto de uma conspiração
maior! Nós somos os avatares de uma nova era, John! Apesar
de ter entrado numa sociedade que quer me matar e sugar minha
energia antes que eu deixe de ser sócio, já arrumei
um conjunto de provas suficientes de suas intenções
para o controle do mundo!
Porra, você ainda mistura todas as drogas em uma
noite? Constantine tenta se desvencilhar dele Quem
mais faz parte dessa sua conspiração? O Papai Noel
ou o titio Crowley?
Você se lembra da SNS, a Stoke Newington Sorcerers?
Continue... o interesse do mago aumenta, fazendo
com que Pete o solte e prossiga a conversa.
A ordem a qual pertenço tem ligações
com a SNS, que, como você sabe, pretende ter o controle
de todo o mundo através de um processo de dominação
mágica que começou com o movimento punk vinculado
à Magia do Caos e afirmando que cada um pode e deve ter
as rédeas da sua vida. É um faça-você-mesmo
místico. E então, vai me ajudar a desbaratar esse
grupo e tomar o poder desses idiotas?
Talvez não seja uma idéia tão má
assim, afinal...
Em meio a loucura, paranóia e sussurros de bêbados
pelo bar, Constantine
traça um plano rápido e bem definido com Pete para
destruir a estrutura interna e externa da Ordem dos Magos Eletrônicos.
Alheio aos reais pensamentos de John Constantine, seu amigo acredita
estar fazendo uma forte aliança contra seus antigos aliados.
A noite fria parece
não perturbar os dois andarilhos noturnos que, passando
por alguns prédios abandonados e igrejas carcomidas pelo
tempo, parecem não estar em contraste com o ambiente por
que transitam até chegar ao seu destino.
"A ordem que pretensamente une ciência e misticismo
parece não ter um mínimo de condições
financeiras..." conjectura um sonolento Constantine.
A noite passada foi difícil para ele, um devoto involuntário
da insônia, e mesmo não tendo ultrapassado sua cota
de álcool, o apelo desesperado de Pete lhe causa muitos
transtornos "Que isso valha a pena e que eu não
perca o meu tempo." ele abre um largo sorriso para
o companheiro.
Em meio a lembranças antigas, os chamados sentimentos de
amizade entre eles jamais haveriam de voltar ou se estreitar.
Muito tempo se passara, muita água havia caído em
várias noites de chuva e, por mais que o mago britânico
não goste de admitir, sua vida é calcada na solidão.
Chegamos. a voz de Pete está modificada,
ligeiramente emocionada por estar diante do templo de sua tão
falada ordem.
Sério? Constantine joga o corpo para trás
ligeiramente, pondo as mãos na cintura e olhando para o
topo do prédio Aonde estão os elfos, as gárgulas
e os elementais vigiando a área?
Lamento se o decepcionei, John. Mas nossa ordem se baseia
na discrição.
Porra, Pete. Ainda não aprendeu a não levar
a sério as coisas que tenho pra dizer?
A porta do prédio está aberta. Tomando a frente,
Pete sobe os degraus pausadamente, seguido por um atento John
Constantine, que observa cada detalhe que chega aos seus olhos.
Inicialmente, uma pequena tela enfocando com detalhes o renascimento
da fênix de dentro de suas cinzas está pendurada
em uma parede; quando acaba a escada, a visão do ambiente
é a mais simples possível. Três cômodos
comuns estão adaptados como o templo: há uma cozinha,
dois banheiros e duas pequenas e abafadas salas. As salas, por
sua vez, estão bem divididas, sendo a primeira para as
reuniões ou palestras e a segunda para os cultos ritualísticos
pontuados pelo som de um teclado.
Constantine se aproxima do instrumento e seus dedos discretamente
tocam uma progressão de acordes, um intervalo entre o fá
e o si. Pete olha para ele, em sinal de reprovação,
como se Constantine estivesse profanando aquele local sagrado
(*).
Desculpe. Não resisti. Mas onde estão as
pessoas?
Lá embaixo.
Sério? Ainda vamos caminhar mais?
Lembre-se, Constantine. Procure ser discreto, avisei-os
que traria um valoroso amigo e futuro aliado; é a nossa
melhor oportunidade para tomarmos o poder que eles detêm.
Sim, sim. Claro. Como pude ser tão relapso?
Ignorando o deboche do companheiro, Pete vai até a cozinha
e abre uma porta com uma passagem secreta, indicando que ambos
terão que descer novos degraus.
O que está em cima é igual ao que está
embaixo? pergunta Constantine.
O quê?
Nada... Nada... Foi só uma piada...
A música eletrônica, sem nenhum elemento percussivo,
mas que fortemente induz ao transe, pontua a descida dos dois
homens e cada vez soa mais forte. Faíscas parecem surgir
em meio à escuridão e, logo após, finalmente
John Constantine consegue ter uma visão completa do ambiente.
Várias cadeiras estão espalhadas pela sala e, em
cada uma delas, homens conectados aos seus computadores parecem
ficar repetindo a mesma canção, o mesmo mantra.
Essa é a Bobina Tesla, essencial para os
rituais de ordem mais baixa, no contato com elementares impuros
ou demônios inferiores ao quinto círculo.
como se estivesse conduzindo o outro por uma Disneylândia
bizarra, Pete fica excitado O Gerador Van de Graff
potencializa ao máximo os nossos rituais através
de impulso eletromagnéticos chegando diretamente em nossos
cérebros. Veja como este homem entra automaticamente em
contato com seu Eu Superior e seu rosto parece o de um iluminado.
Fazendo essa careta, parece que ele tá com diarréia,
pra falar a verdade...
John, consegue perceber o que vê? Pesquisadores da
mais pura safra, potencializando suas energias mágicas!
Em pouco tempo, essa ordem será a controladora do Universo.
Tudo passa pela tecnologia: dados, dinheiro, nossa intimidade,
as grandes decisões, material estratégico de grandes
corporações! Tudo acessível a um passo nosso.
Ainda apegado a bagatelas, Pete? a voz suave surge
por detrás dos dois homens Gostaria que percebesse
o quanto seu ego é grande e como tem tanto caminho até
eliminá-lo por completo, até atingir a iluminação
espiritual. E esse é o nosso verdadeiro objetivo,
por detrás de tanto maquinário e acessórios
ritualísticos. Não vai me apresentar ao nosso novo
amigo?
Esse é John Constantine.
Prazer, acho que seu nome não me é estranho.
o senhor de óculos, o líder da seita, estreita
os olhos, buscando reconhecê-lo Realmente, senhor
Constantine, você me é familiar. Talvez deva ter
conhecido algum parente seu...
Pode ser. Meus antepassados aprontaram muito mundo afora;
não seria estranho se você tivesse se deparado com
alguns deles em algum momento.
Entendo. De qualquer forma, imagino haver curiosidade sua
em conhecer e, talvez, ingressar na ordem?
Sem dúvida.
O velho, após a aquiescência do mago beberrão,
coloca um dos braços sobre seu ombro e o puxa para conversar
sigilosamente. Após alguns minutos andando pelo templo
lado a lado, eles se separam e, nesse momento, Constantine faz
um sinal positivo com a cabeça. Tão lentamente que
é quase imperceptível, a não ser para Pete.
Em um acesso de loucura, Pete começa a se dirigir furiosamente
para um conjunto de máquinas radiônicas que, em sua
aparência, parecem caixas que contêm um conjunto de
montagens eletro-eletrônicas com diversos botões
de sintonia, chaves de seleções e uma placa de fricção
para o uso do praticante.
Arrebentando fios, chutando a aparelhagem até encontrar
um bastão de ferro que o ajude em sua fúria destruidora,
Pete não é interrompido, mas observado por um conjunto
de atônitos seguidores da seita que, apenas alguns minutos
depois, o impedem de continuar o ato. Dois homens gigantescos
seguram cada um de seus braços e o colocam diante de seu
líder.
Mas que indisciplina é essa? pergunta o mestre.
Você está acabado, velho! Acabado!
a respiração de Pete é ofegante Eu
e Constantine viemos para foder com sua estrutura, pra acabar
com toda essa sua merda de magia tecnológica e usá-la
ao nosso bel-prazer! Seu poder não mais lhe pertence!
Meu caro senhor Constantine, com o devido respeito que
existe entre os irmãos que praticam a mais sagrada das
artes... O que ele diz é verdade? O senhor está
disposto a me confrontar? Diga!
O rosto suado de Pete olha fixamente para John Constantine que,
com um ar seguro, franze a sobrancelha para dizer em seguida:
Não sei de nada disso. Como disse, sou um irmão
das artes mágicas e, mesmo que não seja adepto de
escola nenhuma, de ordem esotérica alguma, não há
porque nos confrontarmos ou sermos inimigos. Apenas te digo que
conheço o Pete há muito tempo e tal comportamento
é bem estranho; ele insistiu muito para que eu viesse ao
templo conhecer a Ordem. Mas, se soubesse que era pra isso, não
viria. Peço desculpas pela confusão!
Filho da puta! Não mente! Você sabe! A gente
combinou tudo! Usa o teu poder pra ferrar os caras!
Poder? Constantine sorri, acendendo um cigarro
Não tenho poder algum a não ser ter a força
de ser o que eu sou e de fazer o que eu quero.
Desgraçado! Filho da puta! Pete enumera vários
elogios ao seu "amigo".
Aceito suas desculpas, senhor Constantine. o mestre
do templo é generoso Peço que se retire,
que mantenha o silêncio que caracteriza todo bom irmão
e nenhuma retaliação será feita contra você.
Mas Pete... Irá sofrer graves conseqüências
por seus atos.
Fogo! a destruição causada
por Pete finalmente surte efeito e um incêndio se inicia.
Com um sorriso cínico, Constantine sai, não sem
antes acenar para seu velho conhecido, que permanece gritando
impropérios. Antes que Pete o negasse pela terceira vez,
Constantine decidiu negá-lo pela primeira vez, safando-se
da sua traição e do canto da sirene da polícia
que começa a surgir nesse exato momento.
:: Notas do Autor
(*) Na Idade Média, teóricos da Santa Inquisição
proibiram uma certa progressão de acordes musicais (a mais
conhecida é o intervalo entre fá e si), sob o argumento
de que ela causaria a evocação do capeta. A esta
progressão deram o nome de Diabolus in Musica (literalmente
"diabo na música").
Assim como são doze os signos do zodíaco, doze os
meses do ano, doze os apóstolos de Cristo, encerro a primeira
fase de John Constantine pelo Hyperfan em doze edições.
Espero que minha passagem em sua série regular tenha sido
do agrado de vocês e aproveito para agradecer aos eventuais
leitores que acompanharam todos os números. Não
deixem de acompanhar o personagem na mini-série "O
Estranho e o Louco", no especial surpresa do mês de
abril e em eventuais séries que possam surgir. Ah! E não
se esqueçam: Amor é a Lei, mas Amor sob Vontade!
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