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Por
Marcelo Augusto Galvão
Lembranças
Mutiladas
Mississippi
Verão de 1873.
Tenente Hex!
O caçador de recompensas, saindo do escritório do
xerife de Hills Grove e contando o dinheiro pela captura de alguns
ladrões de banco que assolavam a região, virou-se
em direção da voz. Um homem de barba grisalha e
profundas olheiras, vestindo roupas caras, observava Jonah Hex
com um sorriso.
Faz muito tempo que num atendo mais por essa patente retrucou
o pistoleiro, desconfiado, franzindo a testa. Seu humor não
andava bom, principalmente depois de passar dois dias ao relento
à procura dos bandidos.
Não me reconhece? Sou eu, Cedric Bellows retrucou o
homem bem vestido, estendendo a mão num cumprimento. Lutamos em Chancerlosville. Só então o pistoleiro
notou a madeira polida da prótese que o homem usava onde
antes existia seu braço direito.
Os corpos de mortos e feridos agonizantes espalhavam-se pelos
campos de Chancerlosville. Eram tantos que formavam uma espécie
de tapete humano, cobrindo quase que totalmente a relva naquela
primavera de 1863.
As "avalanches", como eram chamadas as ambulâncias,
recolhiam os feridos, levando-os para o hospital improvisado no
campo de batalha. Muitos chegavam mortos, seus ferimentos agravados
tanto pela demora em resgatá-los quanto por serem colocados
uns em cima dos outros, amontoados como uma avalanche; daí
o apelido dado às carroças de duas rodas e sem molas.
No hospital, percebia-se facilmente uma divisão de pacientes:
aqueles feridos no tronco ou no crânio eram deixados nas
barracas da direita, enquanto os com ferimentos nos membros eram
levados para as da esquerda. O primeiro grupo estava praticamente
condenado; algumas almas caridosas ainda prontificavam-se a lhes
ministrar morfina, tentando evitar que os moribundos tivessem
uma morte dolorosa, que nem mesmo o inimigo merecia. O segundo
grupo, por sua vez, daria aos médicos do regimento a alcunha
pela qual seriam conhecidos durante muito tempo: serra-ossos.
Jonah Hex, parado na entrada da barraca, observava a agitação
no hospital. Alistara-se como batedor do Exército Confederado,
com a perigosa missão de reconhecimento de terreno. Desde
que a guerra começara, havia lutado em várias batalhas.
Após um confronto, era dever daqueles que haviam sobrevivido
ilesos procurar por feridos no meio da carnificina. E ali estava
Hex, depois de confiar mais um soldado aos cuidados dos médicos,
vendo uma cena conhecida.
Jovens homens gritavam de dor, seus braços e pernas despedaçados
por balas. O sangue empapava os lençóis sujos. O
cheiro do clorofórmio saturava o ar, às vezes não
conseguindo abafar a agonia dos feridos. Com um serrote, seu principal
instrumento cirúrgico, o serra-ossos aproximava-se do paciente
e, se fosse habilidoso, realizaria a amputação em
cerca de quinze minutos, tendo tempo apenas para limpar as mãos
no avental manchado de sangue e outros fluidos corporais até
o próximo paciente.
A batalha para aqueles homens, Hex sabia, estava somente começando.
Se sobrevivessem à amputação, enfrentariam
ainda a diarréia, a malária e o tifo. Só
então retornariam ao lar, lembrando-se para sempre que
haviam deixado um pedaço de seus corpos nos campos de Chancerlosville,
Virgínia.
É sempre bom ver um companheiro de uma batalha gloriosa
disse o ex-capitão Cedric Bellows, quando Hex o cumprimentou.
Ele se referia, obviamente, à vitória das tropas
confederadas, sob o comando do General Lee, na Virgínia.
Ambos haviam servido no mesmo regimento, lutando contra as brigadas
da União. Hex lembrava-se que considerava Bellows um filhinho
de papai, alguém para quem a guerra não passava
de um jogo. Pelo visto, o homem não mudara muito depois
de dez anos.
Bom, acho que as famílias dos mortos num devem pensar
a mesma coisa o pistoleiro replicou, recordando-se que a vitória
custara a vida de treze mil soldados sulistas. Agora se me dá
licença, o sol tá se pondo e eu preciso arranjar
um lugar para dormir.
Ora, você pode passar a noite em minha residência.
E enquanto jantamos, poderíamos relembrar os bons e velhos
tempos.
Guardando o dinheiro no bolso, Hex aproximou-se e fixou os olhos
em Bellows:
Num sei que diabos de "bons e velhos tempos" são
esses, pois eu num gostava de levar chumbo de ianque. Mas como
num quero passar outra noite no relento, aceito seu convite.

Cedric
Bellows morava numa enorme casa de dois andares nos arredores
de Hills Grove. O local era cercado por colinas verdes e Hex logo
viu que a propriedade prolongava-se por vários acres. A
julgar pelo belo cavalo que montava, Bellows era dono de uma grande
fortuna.
Durante o jantar, servido na varanda, o caçador de recompensas
verificou que estava certo. Após a campanha na Virgínia,
Bellows fora transferido para outro regimento, sendo depois ferido
numa missão e perdendo o braço. Sua recuperação
foi no Mississipi, onde a família, proprietária
de plantação de algodão, passava por dificuldades.
Conheceu e casou-se com a herdeira de um rico comerciante, um
homem que enriquecera vendendo mantimentos para as tropas sulistas.
A senhora Elizabeth Bellows, infelizmente, falecera meses atrás,
vítima de um acidente. Viúvo e sem filhos, ele passava
seus dias cuidando da propriedade, enquanto pensava numa nova
carreira:
Senador ele explicou, oferecendo um charuto a Hex.
Tenho todo o potencial para fazer deste estado um dos melhores
de todo o país, pode apostar!
O pistoleiro, acendendo o charuto, nada respondeu, lembrando-se
do que seu pai sempre dizia: todo político é um
mercador de promessas. Bellows serviu-se de mais uma dose de bourbon,
entornando-a habilmente no copo com sua mão direita.
Mas as coisas não estão tão boas quanto
parecem. Na verdade, convidei você porque preciso de sua
ajuda...
"Tava demorando", Hex pensou. Ninguém convidaria
um caçador de recompensas para um delicioso jantar se não
estivesse interessado por algo em troca.
Tenho tido alguns... como eu diria... alguns problemas
por aqui. Espero que você possa resolvê-los para mim,
mediante uma certa quantia, eu imagino.
Encostando-se na cadeira, Hex ficou imaginando que tipo de problema
afetaria um homem rico como Bellows. Este, após limpar
a garganta com um pigarro, começou a falar.
Cedric não conseguia dormir naquela quente noite. Uma
dor aguda percorria seu "braço direito", ainda
que ele não mais existisse. "Membro fantasma"
era como o médico chamava aquela sensação
de formigamento e dor. Gemendo, o ex-capitão se levantou
para procurar pela caixinha com pílulas de ópio
que o doutor lhe prescrevera, o único remédio que
aliviaria seu sofrimento. Achou o medicamento na cômoda,
ao lado da sua prótese. O som de algo quebrando-se no andar
de baixo fez Cedric parar. Outro barulho seguiu-se, desta vez
um baque surdo. Sem demora, ele alcançou com a mão
esquerda a Colt na gaveta do criado-mudo, deixando a prótese
de lado, pois sabia que demoraria alguns minutos até colocá-la.
Os degraus da escada rangiam enquanto descia. Com cautela, encaminhou-se
para a enorme sala principal. Este aposento era o lugar preferido
de Cedric, de onde podia apreciar sua propriedade, rodeado por
belos quadros à óleo e bibelôs que decoravam
o ambiente. Ao chegar lá, acendeu a lamparina de querosene.
A luz iluminou uma cadeira caída, bem como um dos vidros
da porta da varanda estilhaçado. Cacos espalhavam-se pelo
assoalho, não no do sala, ele notou, mas pelo chão
da varanda. Alguém dentro da residência quebrara
a vidraça e os empregados estavam de folga esta noite.
Havia um intruso em sua casa, concluiu Cedric, engatilhando o
revólver. O pensamento foi interrompido por um sarcástico
riso vindo do outro extremo do aposento. Virando-se rapidamente,
o veterano oficial viu a silhueta de um homem, suas feições
escondidas na penumbra da sala. Mesmo assim, Cedric pode ver que
o intruso vestia roupas cinzas, levando na cabeça um quepe.
Seus pés estavam descalços, cobertos de barro. Cedric
Bellows apontou a arma para o desconhecido, caminhando em sua
direção e preparando-se para atirar.
Ele não chegou a disparar. Um leve zumbido preencheu a
sala, ao mesmo tempo em que os quadros e bibelôs tremiam.
Aturdido, Cedric notou que a temperatura na sala caíra
bruscamente, embora fosse pleno verão. Subitamente, vidros
despedaçaram-se, cadeiras caíram, quadros foram
derrubados, bibelôs voaram pelo cômodo. A lamparina
emitiu um estranho chiado e explodiu.
Cedric olhou em volta, sem compreender o que acontecia. Esquecendo-se
do intruso, ele se lançou ao chão, pensando em um
jeito de escapar. Mas antes que pudesse agir, o pandemônio
cessou, tão abruptamente como começara. Ele ficou
parado por mais alguns segundos, o frio na sala diminuindo, até
lembrar-se de novo do desconhecido invasor. Cedric levantou-se
com a arma em punho, apenas para ver que o estranho sumira, não
deixando nenhum rastro, nem mesmo pegadas que pés sujos
de barro deixariam.
Isso aconteceu há duas semanas Bellows concluiu,
servindo-se de mais uma dose de uísque. Desde então,
tenho pesadelos horríveis. Vejo pessoas gritando, sinto
o cheiro de pólvora no ar... É tudo tão...
estranho.
Hex continuou calado, observando o homem à sua frente.
Ele já encontrara gente como Cedric Bellows antes. Eram
homens que viram todo tipo de desgraça na guerra e que
haviam deixado não só pedaços de seus corpos
no campo de batalha, mas também um pouco da sua sanidade.
Sei que isso parece loucura disse Bellows, ao perceber
o olhar incrédulo do pistoleiro. Mas outras coisas
estranhas aconteceram por aqui. Dois dos meus melhores cavalos
apareceram mortos, sem nenhuma explicação, assim
como três cabeças de gado. Alguns dos meus empregados
estão com medo. Contam que não conseguem dormir
direito, escutando vozes e barulhos estranhos dentro da casa.
E o quer que eu faça? Hex encolheu os ombros.
Tenho certeza de que não sou doido o veterano
oficial respondeu, enfático. O que vi naquela noite
era real. Para mim, isso é uma tramóia de algum
adversário político da região, querendo se
aproveitar, pensando que pode me tirar do páreo se me assustar.
Eles sabem que minhas chances são boas.
Pode esquecer. Num me meto em politicagem, muito menos
em assassinato de político disse Hex, levantando-se.
Quero apenas que descubra quem tentou me meter medo e matou
meus animais. Sei que é um ótimo rastreador e pode
descobrir a trilha de quem aprontou isso. O xerife daqui é
um idiota, incapaz de solucionar qualquer coisa ele explicou,
com os olhos alterados pela bebida. Lutamos juntos, confio
em você. Além disso, o salário que ofereço
é o dobro do que ganhou hoje. E você ainda pode comer
e dormir aqui.
Hex tragou e soltou a fumaça do charuto, enquanto ponderava
sobre as palavras de Bellows. Talvez o homem não fosse
doido mesmo e alguém realmente procurasse prejudicá-lo.
O dinheiro, é claro, também atraía o pistoleiro,
sem contar comida e cama de graça. Bebendo de um só
gole o resto do bourbon em seu copo, Hex estendeu o braço,
cumprimentando Bellows para fechar o acordo, sentindo o frio da
prótese sem vida.

Naquele
mesmo momento, no centro de Hills Grove, a janela de um dos quartos
do único hotel da cidade brilhava intensamente. A decoração
daquele cômodo de fundos fora modificada esta noite, com
os móveis arrastados para os cantos do aposento. Diversas
velas iluminavam o ambiente, embora o hotel fornecesse lamparinas.
No centro do quarto, uma figura ajoelhada desenhava, pacientemente,
linhas brancas no assoalho. Suas mãos já haviam
se acostumado a desenhar um pentagrama por diversas vezes, desde
os tempos em que ele viajara e aprendera rituais há muito
esquecidos, mas ainda preservados, em lugares como Salem e Nova
Orleans. Naquelas ocasiões, porém, ele apenas exercitava
suas lições, preparando-se para o grande dia.
E o grande dia está próximo, pensou
o homem, olhando um retrato onde ele e seus irmãos de guerra,
jovens sorridentes em seus uniformes cinzas, exibiam suas armas
reluzentes ao fotógrafo, sem saber o destino que os aguardava.
Seus olhos vagaram pela fotografia, agora amarelada pela ação
do tempo, até se deterem no rosto de seu comandante, capitão
Cedric Bellows, ostentando barba negra, grande e cerrada, como
era moda na época.
O coração do homem ajoelhado imediatamente encheu-se
de ódio. Ele começou, em seguida, a murmurar um
cântico em uma língua desconhecida. As chamas das
velas agitaram-se e a temperatura do quarto caiu repentinamente,
embora gotas de suor corressem pelo seu corpo. Um zumbido podia
ser ouvido no cômodo. Sombras sem formas passaram a surgir
ao redor do pentagrama e, conforme o cântico aumentava de
volume, solidificavam-se formando silhuetas humanas.
Mais alguns minutos e o canto cessou. O homem no pentagrama agora
respirava ofegante, satisfeito ao ver-se rodeado por meia dúzia
de figuras de casacas cinzentas, sussurrando em uníssono
uma única palavra:
vingança.

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