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Por
Marcelo Augusto Galvão
Ajuste
de Contas
O sufocante
calor daquela madrugada fazia gotas de suor brotarem na testa
de Jonah Hex. Na penumbra da varanda da casa de Cedric Bellows,
seu atual empregador, Hex vigiava a propriedade, procurando por
alguma pista que o tirasse daquele beco sem saída em que
se encontrava.
Cinco dias atrás, o pistoleiro fora contratado por Bellows,
antigo comandante do exército confederado e agora candidato
pelo Mississippi ao senado, para descobrir quem havia invadido
sua propriedade há algumas semanas, matando animais da
fazenda e provocando outros danos. Na opinião de Bellows,
aqueles acontecimentos faziam parte de um plano armado por inimigos
políticos para assustá-lo e tirá-lo do páreo.
Porém, a busca de Hex por alguma pista ou trilha que o
levasse ao suposto responsável revelou-se infrutífera.
Mas desde ontem, os empregados da fazenda, alguns negros para
quem o fim da escravidão no sul tivera pouco efeito na
prática, reclamavam de estranhos rondando com freqüência
o lugar e que sumiam antes de serem interpelados. Assim, Hex decidiu
ficar de tocaia na varanda, o melhor lugar para vigiar qualquer
um que ousasse invadir a casa. E se esse alguém fosse suficientemente
esperto, não tentaria enfrentar o pistoleiro.

Do
alto de uma colina, um homem de roupas escuras e barba por fazer
mirava a residência de Cedric Bellows. Seus olhos faiscavam
com inveja e rancor, ao ver aquele lugar tão bonito e,
que ele sabia, fora construído às custas das vidas
de vários homens bons. Respirando fundo, ele deixou a raiva
de lado, substituindo-a pela certeza de que o grande dia finalmente
chegara, depois de dez anos.
Dez anos era um longo tempo. Durante todos esse período,
aquele antigo soldado sulista poderia ter voltado para a fazenda
de seus pais em Atlanta e constituído uma família,
enquanto via os negócios prosperarem e os filhos crescerem.
Ao invés disso, ele resolveu vagar pelo país, dedicando-se
a procurar um meio de vingar-se do homem que arruinara sua vida
e as de outros seis homens.
Mas para aquele veterano de guerra, não bastava acabar
com a vida de seu traiçoeiro ex-comandante. Era preciso
primeiro que ele sofresse. Seu plano estava funcionando, do jeito
que idealizara, pois Bellows, de tão desesperado, havia
contratado um pistoleiro para protegê-lo. "Como se
isso pudesse ajudá-lo em alguma coisa", pensou o veterano,
sorrindo e alisando uma estrela de cinco pontas que levava em
volta do pescoço.

Jonah
Hex não era o único acordado na casa. Sentado em
uma poltrona na sua sala preferida, Cedric Bellows massageava,
sob a camisa do pijama, o coto que lhe restara do braço
direito, numa tentativa de diminuir a dor no "membro fantasma".
Normalmente, ele já teria tomado as pílulas de ópio,
mas estas inevitavelmente o fariam dormir. E a última coisa
que queria no momento era dormir, pois finalmente, após
semanas de intensos pesadelos, ele entendeu o significado daqueles
terríveis sonhos que o levavam a acontecimentos do passado.
A dor no braço era tão incômoda que Bellows
nem percebeu o quanto o aposento havia esfriado, repentinamente.
Quando se deu conta, ele apenas viu uma silhueta ameaçadora
aproximar-se diante de seus olhos.
O grito abafado de Bellows chegou aos ouvidos de Hex. Sacando
as armas dos coldres, o pistoleiro entrou correndo na casa, sentindo
o ar frio ao seu redor. O corredor principal encontrava-se às
escuras, mas ainda assim Hex conseguiu distinguir duas figuras
de cinza, aguardando-lhe. Ambas pularam em cima dele, agarrando
seus pulsos. Hex tentou se desvencilhar, mas seus agressores eram
mais fortes.
Sem desistir, ele desferiu um chute mas viu, inexplicavelmente,
seu golpe errar o alvo, ainda que a distância fosse pequena.
Pelo canto do olho, o pistoleiro viu outra figura surgir. Esta
agarrou um dos bibelôs que decoravam a residência,
levantando-o e descendo com força atrás da cabeça
de Hex, levando-o a inconsciência.

Hex
abriu o olho lentamente, seu crânio latejando de dor. Logo
viu que estava na sala, iluminada por uma solitária lamparina.
Encontrava-se sentado no sofá ao lado de Bellows que encarava,
perplexo, um homem com barba por fazer, carregando um medalhão
no formato de uma estrela de cinco pontas. O desconhecido, carregando
na cintura as armas de Hex, aproximou-se dele.
Bem-vindo de volta, senhor Hex. Pensei que meus camaradas
tivessem batido no senhor com muita força.
Tenho cabeça dura. Hex replicou, esfregando
a nuca, olhando em volta e não achando seus agressores.
O homem, ele notou, tinha o típico sotaque arrastado da
Geórgia Quem é você?
Meu nome é Arthur Sullivan e, como todos aqui nessa
sala, servi aos Estados Confederados. ele se apresentou
Sinto muito envolver o senhor neste reencontro com meu
ex-comandante.
Ex-comandante? Num sabia que eu ia participar de uma reunião
de veteranos.
Não, não se trata de uma reunião.
Trata-se mais de um ajuste de contas. Mas creio que ele pode explicar
melhor.
Mas Bellows nada disse.
Ora, que timidez é essa, capitão?
Sullivan zombou Não vai contar ao senhor Hex como
traiu o seu exército em troca de dinheiro ianque?
Do que cê tá falando? perguntou o pistoleiro,
desconfiado. Sullivan aproximou-se.
Estou falando de como o capitão Cedric Bellows,
comandante de uma das unidades de reconhecimento do exército
Confederado, e da qual eu fazia parte, vendeu informações
sobre a movimentação de nossas tropas para os Ianques!
ele falou, para em seguida completar, exaltado E
quando o resto da unidade não aceitou fazer parte do seu
negócio, ele simplesmente decidiu eliminar o problema,
matando a todos!
O que você esperava que eu fizesse? explodiu
Bellows, finalmente se manifestando Aquela guerra estúpida
estava arruinando o sul. Veja só o que ela fez comigo!
e apontou para o que restara do seu braço.
Isso é verdade? Hex virou-se para Bellows
Matou seus soldados?
Nem todos. Sullivan respondeu pelo outro homem,
que voltou a calar-se Ainda consegui escapar, ferido e
vendo meus companheiros morrerem pelas mãos do inimigo
e com a ajuda do meu próprio comandante. Mais tarde, Bellows
disse que fomos emboscados e que eu havia desertado. Como a palavra
de um capitão valia mais do que a de um soldado, tive que
passar o resto da guerra escondido.
Hex ouvia tudo atento. O veterano soldado, andando em volta do
sofá, continuou:
Jurei a mim mesmo vingar a morte de meus irmãos
de armas. Fiquei vagando pelo país todo, até achar
a maneira ideal de realizar minha vingança. Depois de muito
tempo, finalmente descobri, através de antigos rituais
de magia, como invocar os espíritos de meus camaradas de
volta à este mundo.
Cê tá dizendo que pode conversar com fantasmas,
é isso mesmo, moço?
Exato, senhor Hex. Mudei-me para Hills Grove há
algumas semanas e resolvi colocar meu plano em prática.
Queria atormentar o capitão Bellows, para fazer ele pensar
que estava perdendo a razão. Chamei meus camaradas para
assombrarem os sonhos do capitão Bellows. Depois, os fiz
atacarem a casa e os animais. Sullivan explicou, olhando
com desprezo para Bellows e em seguida para o pistoleiro, que
ouviu tudo aquilo com um discreto sorriso Mas vejo que
o senhor ainda não acredita em mim.
Nada disso. Hex replicou, balançando a cabeça,
enquanto procurava por cigarro e fósforo nos bolsos
Só acho que cê tem tomado muito uísque pra
ficar conversando com fantasmas.
Arthur Sullivan nada disse. Afastou-se alguns passos do pistoleiro,
cerrou os punhos e começou a sussurrar algo. O murmúrio
aumentou de volume, transformando-se em frases estranhas misturadas
ao hálito condensado que saía dos lábios
do ex-soldado, como se fosse inverno dentro da casa.
Um zumbido preencheu a sala e, quando o cigarro recém-aceso
de Hex apagou com uma lufada de vento, sombras apareceram nos
cantos do cômodo. Lentamente, elas dirigiram-se ao redor
de Sullivan, ganhando substância e formando os perfis de
seis distintos homens de faces macilentas e tristes, vestidos
com os uniformes cinzentos de soldados Confederados.
Estes são meus irmãos de guerra! Sullivan
falou, acercando-se novamente de Hex e mostrando os soldados cujos
olhos brilhavam de ódio. Em seguida, voltou-se para Bellows
Aguardei dez longos anos por esse momento, capitão.
Espere, por favor! Podemos resolver isso como homens civilizados!
gaguejou Bellows, olhos arregalados ante as aparições.
Trêmulo, ele se dirigiu à uma gaveta, de onde tirou
uma pequena caixa de madeira. Acomodando-a sob o coto direito,
retirou dela um maço de notas verdes. Desesperado, agitou-as
para Sullivan Pegue esse dinheiro! É todo seu, mas
não me machuque, por favor!
A resposta do veterano soldado veio rápida, na forma de
um escarro no rosto de Bellows. Este abaixou a cabeça,
limpando o rosto e devolvendo o maço para a caixa. Depois,
com um gesto rápido, tirou do fundo dela uma pequena pistola
prateada de um tiro só, apontando-a para Sullivan e disparando.
O projétil atingiu o estômago do homem que, surpreso,
cambaleou para trás e desabou no assoalho. Ao mesmo tempo,
Hex viu os espíritos dos seis soldados, aparentemente desorientados,
desvanecerem no ar como fumaça.
Bellows jogou a derringer (*) descarregada de lado e aproximou-se
de Sullivan, que agonizava.
Nunca deveria ter deixado este bastardo escapar.
o ex-comandante disse, fôlego recuperado. Em seguida, virou-se
para Hex Você entende que eu fui forçado a
fazer aquilo tudo, não é, Hex? Minha família
estava quase na miséria, eu precisava do dinheiro que os
ianques me ofereceram! Nós íamos perder a guerra
de qualquer maneira!
O pistoleiro não respondeu, apenas encarou duramente o
outro homem. Na sua opinião, um traidor como Bellows, que
matara seus soldados em troca de dinheiro, não merecia
compreensão.
Que decepção. Bellows suspirou, retirando
da cintura de Sullivan uma das armas de Hex Você
teria um grande futuro ao meu lado. Pensei até em lhe dar
um emprego de capataz aqui na fazenda. Mas agora que sabe desse
segredo do meu passado, não posso correr o risco de você
abrir a boca e manchar a minha reputação perante
o povo de Hills Grove. e engatilhou a Colt, apontando-a
para o pistoleiro.
Mas ele não completou o gesto. Uma terrível dor
gelada atacou repentinamente o coto do seu braço direito,
levando Bellows a urrar. Hex viu a manga direita da camisa de
Bellows, até então dobrada na altura do ombro, agitar-se
como se tivesse vontade própria. O tecido da camisa foi
rapidamente tomando forma e volume, preenchendo o espaço
outrora vazio para moldar um perfeito braço que, ante o
olhar perplexo do seu dono, agarrou a pistola na mão esquerda
de Bellows, jogando-a no chão com um safanão.
Uma risada soou atrás de Bellows. Sullivan levantava-se
com dificuldade, o sangue jorrando do seu ferimento enquanto balbuciava
algo em uma língua estranha. Bellows sentiu os pêlos
do seu corpo arrepiarem quando os seis soldados reapareceram de
repente ao seu redor, caminhando em sua direção.
Saiam daqui! ele gritou, sem resultado, o círculo
de espíritos se fechando mais e mais. Logo Bellows viu-se
acuado em um canto da sala e, com seu braço esquerdo imobilizado
pelo forte aperto do seu "membro fantasma", gritou para
Hex Faça Sullivan parar com isso, por favor! Fique
com todo o meu dinheiro, mas me ajude!
Jonah Hex, conseguindo acender o cigarro dessa vez, disse:
Só vou pegar o que cê me deve. Pode ficar
com o resto. e retirou um maço da caixa de madeira
jogada no chão Se bem que, para onde cê tá
indo, dinheiro vai ser a última das suas preocupações.
Mas Cedric Bellows já não escutava mais nada.

O pistoleiro,
após recolher suas armas, caminhou na direção
de Sullivan que, com um débil sorriso, morrera, vendo sua
vingança finalmente cumprida. Hex deixou a sala e, selando
seu cavalo, partiu o mais rápido possível de Hills
Grove, a fim de evitar maiores problemas.
Um pouco antes do amanhecer, cavalgando por uma estrada de terra
batida, Jonah Hex teve a estranha sensação de que
era espionado por alguém. Virando o corpo, viu sete pálidas
figuras vestidas de cinza na beira da estrada, o observando com
atenção. Balançando a cabeça, o pistoleiro
cravou as esporas no cavalo, apressando a marcha em direção
ao oeste.
No próximo número: Não deixe de acompanhar
as aventuras de Jonah Hex pelas pradarias mais empoeiradas e assombradas
do Velho Oeste.

::
Notas do Autor
(*) Usada por John Wilkes Booth no assassinato do presidente Lincoln,
a Derringer é uma pequena pistola de antecarga criada pelo
armeiro Henry Derringer Jr. Eventualmente, era usada por assassinos
do Oeste por sua facilidade em ser escondida por debaixo da manga
da camisa.

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