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Por
Fernando Lopes
Amor
que Mata
Hijo de
puta pensou Consuela consigo mesma, enquanto se abaixava
para pegar do chão um copinho de café vazio. As
costas doíam como se o diabo estivesse sobre elas.
Aquele desgraçado me paga. Vou embora para a casa da Manuela.
Juro que vou. Aí eu quero ver...
Ela lembrou
como era boa a vida com Miguel antes de cruzarem a fronteira do
México. O leve sorriso se desvaneceu ao lembrar a semi-escravidão
do trabalho na colheita de laranjas, o desemprego e a mudança
para Hub City. De lá para cá, as coisas degringolaram.
Trabalhava há seis meses servindo café na estação
de TV.
Sem trabalho, sustentado pela mulher, Miguel passou a beber. Ficou
violento e as discussões tornaram-se cada vez mais freqüentes.
A da noite anterior passou dos limites.
Absorta, Consuela não percebeu a aproximação
dos dois homens. Assustou-se quando um deles mencionou seu nome.
Consuela? Perguntei se o café é fresco?
Desculpe, señor Cameron. É fresco, si señor.
Machucado feio disse o outro homem, que Consuela
não conhecia. Ela amaldiçoou Miguel uma vez mais,
enquanto balbuciava a desculpa que vinha repetindo durante todo
o dia.
Foi um acidente. Caí da escada.
Sage olhou-a, o rosto sério.
Cuidado. Certos acidentes tendem a se repetir. Com freqüência.
Os homens saíram da sala. Consuela descobriu depois quem
era o sujeito. O nome era Vic Sage, novo contratado da emissora.
Ele, como todos os outros, sabia...
O que o Negociador
está fazendo com o Carlyle? perguntou Sage.
Lobby, como sempre respondeu Cameron. Ele
quer aprovar a todo custo o novo projeto de zoneamento e deve
estar tentando cavar uns minutinhos no ar...
Projeto? Johnson entrou para a política?
Às vezes esqueço que você ficou dois
anos fora desculpou-se Cameron. Ele agora é
o chefe do Conselho Municipal.
Vejo que as coisas mudaram por aqui resmungou Sage.
E não foi para melhor.
Vic conhecia bem a fama de Samuel Johnson. Começou como
mensageiro numa empresa de navegação, nos anos 40.
Acabou controlando a empresa. Oficialmente, trabalha com comércio
exterior, na área de alimentos. Comenta-se, entretanto,
que é o responsável por boa parte da droga e armas
que inundam Hub City. Ninguém nunca conseguiu provar nada
contra ele. Os que tentaram recuaram no meio do caminho. Dizem
que ele conhece os podres de todos os poderosos da cidade. Não
é chamado de Negociador à toa. Quem insistiu no
assunto acabarou sumindo "misteriosamente".
Qual o interesse dele no projeto? retomou Sage.
Vai valorizar os imóveis na região do porto.
Que são quase todos dele...
Típico. E os podres dele? Ninguém mais mexeu
no assunto?
E provocar o velho? Que nada! Ninguém é doido
o bastante.
Talvez... pensou Sage consigo mesmo. Tinha uma dívida
pessoal com Johnson. Suas chantagens acabaram com a vida de um
amigo há cinco anos. O pobre Wilson perdeu emprego, mulher,
casa. Acabou morto por um "desconhecido" numa briga
de bar. Sage pretendia cobrar essa dívida com juros, se
tivesse chance.
Naquela noite, quando
Consuela voltou para casa, Miguel a esperava. Sóbrio, pediu
perdão, implorou e repetiu que não voltaria a acontecer.
Alquebrado, caiu chorando aos pés da mulher, que se comoveu
ao ver seu homem reduzido àquele estado. Abraçou-o
e choraram juntos, prometendo a si mesmos uma nova chance. O sexo
veio, afoito e louco, como sempre acontece após uma reconciliação.
Desta vez vai ser diferente pensou, antes de adormecer
ao lado do marido.
Uma semana depois, não foi trabalhar. Apareceu no dia seguinte,
mancando, o braço engessado. Trouxe um atestado médico.
Cruzou com Sage no corredor.
Cuidado, disse ele, soturno esses "acidentes"
vão acabar matando você.
Consuela desviou o olhar e saiu. Quem aquele homem estava pensando
que era? Ficou com raiva por um instante.
Depois, sentiu como se carregasse toda a tristeza do mundo. Sentia
raiva de si mesma.
Vou deixar Miguel. E vai ser hoje. pensou, inspirada
pela vergonha.
A noite, porém, enfraqueceu sua vontade.
Vou tentar conversar primeiro. pensou, lutando para
convencer a si mesma de que estava no controle da situação.
Talvez possamos resolver isso numa boa...
Seus pensamentos foram interrompidos ainda na calçada.
Sua puta! berrava Miguel, bêbado como um gambá.
Pensa que é grande coisa? Você não
é nada!
Pára com isso, Miguel! gritou, desesperada,
o medo e a vergonha martelando-lhe a cabeça.
Os vizinhos amontoavam-se na janela para assistir ao espetáculo.
'Cê não manda em mim! Só porque põe
dinheiro em casa acha que manda em mim? 'Cê não passa
de uma vadia!
Seu desgraçado! Vou embora, hijo de puta!
Vou embora!
Ah, vai? Vou te mostrar pra onde 'cê vai, vagabunda...
Consuela esperou o golpe que não veio. Voltou-se para ver
o que tinha acontecido.
Madre de Diós!
Um homem alto, de sobretudo azul, segurava o braço de Miguel.
Mas ela não pôde ver os olhos de seu salvador. Nem
os olhos, nem o nariz, nem a boca. Seu anjo-da-guarda era um homem
sem rosto.
Encorajado pela bebida, Miguel voltou-se contra seu oponente.
Quem 'cê pensa que é, sem-cara? Isso é
coisa de marido e mulher!
O homem permaneceu em pé, silencioso.
Só porque 'cê num tem boca acha que eu num
te quebro os dente? Filho da...
Partiu como um louco contra o intrometido. Um bloqueio rápido,
um golpe com a mão aberta em seu rosto. Foi jogado para
trás com violência, o nariz quebrado.
Beu dariz! 'Cê quebrou beu dariz! Eu te mato desgraçado!
Tentou a sorte novamente. Foi interrompido por um chute que lhe
arrancou dois dentes. Um segundo fraturou a costela. Caiu a dois
metros de distância, sangrando e gemendo. O homem sem rosto,
ainda mudo, avançou em sua direção.
Consuela, que assistia a tudo catatônica, saiu de seu estado
letárgico para defender Miguel. Seu homem estava sendo
massacrado.
Pára, pelo amor de Deus! berrava, ensandecida.
'Cê vai matar ele!
O estranho parou por um segundo. A voz do homem sem boca era como
um sussuro abafado.
Vai piorar.
Virou-se e partiu rapidamente. Os vizinhos voltaram para suas
vidas. O espetáculo acabou. Consuela, com Miguel nos braços,
arrastou-se de volta para o cubículo, agradecendo aos céus
por ter poupado seu homem do demônio sem rosto.
Dois meses depois,
o detetive Sorensen foi chamado para atender a um caso de homicídio.
Um corpo de mulher, num cubículo no Centro. Os vizinhos
sentiram um cheiro forte e chamaram o senhorio, que encontrou
o cadáver. Era Consuela. Tinha sido estrangulada. Sorensen
não se deu ao trabalho de perguntar se alguém tinha
visto ou ouvido alguma coisa. É evidente que ninguém
diria nada. Checou o cadáver, deu uma geral pelo minúsculo
apartamento e mandou lacrar tudo. No distrito, puxou oito queixas
por distúrbios no mesmo endereço nos últimos
dois meses. Briga de marido e mulher. A esta altura, o sujeito
devia estar longe. Não havia nada a fazer, e Sorensen não
se importava muito com isso. Era só mais um entre as dezenas
de casos do gênero que via todos os dias. Um tumulto na
porta do distrito chamou sua atenção. Foi dar uma
olhada.
No beco ao lado do distrito, um homem algemado olhava para o vazio
e falava sem parar, alternando inglês e espanhol. Tinha
sinais de espancamento e um bilhete preso às costas. Sorensen
não entendeu quando o papel veio parar em suas mãos.
"Este é o assassino de Consuela Rodriguez", dizia
a mensagem. "Façam sua parte". Um ponto de interrogação
no meio do papel encerrava o texto.
Mas que diabos é isso? resmungou Sorensen.
"O corpo de
Consuela Rodriguez foi encontrado hoje em seu apartamento. Ela
foi estrangulada pelo marido. Miguel Rodriguez foi encontrado
algemado ao lado do 21º Distrito, vítima de espancamento.
Um bilhete anônimo o apontou como responsável pelo
crime. A polícia já suspeitava de Miguel, mas não
sabe explicar quem o prendeu nem como ele foi largado ao lado
do distrito sem que ninguém visse. Rodriguez repetia frases
desconexas sobre um homem sem rosto, que seria seu captor. A polícia
não quis comentar o assunto. Parece que essa é uma
questão em aberto. Vic Sage, para o noticiário das
oito".
:: Notas do Autor
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