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Por
Fernando Lopes
Prenúncio
de Tempestade
Poucas coisas irritavam
tanto o professor Aristotle Rodor quanto ser interrompido no meio
de algum experimento, por mais banal que fosse. E a fina mistura
de chás que ele zelosamente preparava estava longe de ser
qualificada como banal, ao menos para ele. Além do mais,
quem quer que estivesse do outro lado da porta ou tinha uma urgência
vital em ser recebido ou era um profundo apreciador do som da
campainha.
Já vai, já vai! Que saco!
A idade está te deixando resmungão, Tot respondeu
o estranho, encostado na soleira com uma mochila às costas
e ar zombeteiro.
Charli! gritou o professor, num misto de surpresa e alegria.
Mas quando foi que você chegou? Por que não me
avisou? Eu poderia ter ido buscá-lo no aeroporto...
Na sua idade, Tot, já devia saber que não se avisa
alguém que se quer pegar de surpresa. Vai me convidar para
entrar ou está esperando que eu crie raízes aqui
na porta?
O velho professor recobrou-se e ajudou Sage a levar a bagagem
para dentro. Depois, foram à cozinha.
Então, Charli, decidiu voltar a Hub City. Vem para ficar,
desta vez?
Acho que sim. Não importa para quão longe eu vou,
sempre acabo voltando para esse buraco. A propósito, dá
pra parar de me chamar de Charli? Quantas vezes vou ter que dizer
que meu nome agora é Vic Sage?
Seu nome é Charles Victor Szasz, goste você ou
não...
Esse é o nome que as freiras me deram no orfanato. Foi
em outra vida. Hoje, só existe Vic Sage.
E o Questão? provocou Rodor.
E o Questão. respondeu Sage, pensando em sua outra
identidade. Não sei até que ponto um é
mais real do que o outro. Aliás, nem sei se algum deles
é real.
Ainda procurando respostas?
E quem não está?
Talvez fosse a hora de redefinir as perguntas. O que é
"real", afinal?
Ah, sem essa, Tot. Filosofia, não. Tô cansado,
com fome, esse seu chá não sai... Como andam as
coisas?
Depende do que você define como "as coisas"...
Sei lá... Olhando da janela do táxi, a cidade
me pareceu um pouco melhor. Ainda uma merda, mas fedendo menos.
Nem está chovendo!
Ah, ela... Myra está bem, se é o que quer saber.
E está fazendo um bom trabalho, considerando-se que é
mulher e dirige um antro como Hub City.
Sage sentiu-se ruborizar ligeiramente. Sim, ele queria saber dela,
mas não queria admitir. Myra Connely Fermin. Ex-jornalista,
ex-amante, atual prefeita de Hub City. Nunca mais a vira desde
que saíra da cidade, há dois anos. Ficou constrangido.
Tentou desconversar.
E Izzy?
Izzy O'Toole? Acredite ou não, é o comissário
de polícia há mais ou menos um ano e meio. Este
não é mesmo um mundo louco?
Sage não respondeu. Pensou rapidamente em Izzy, o tira
mais corrupto de Hub City que um dia, de uma hora para outra,
decidiu virar santo. Graças ao Questão. Mas logo
Myra voltou a ocupar seus pensamentos. Mudou novamente de assunto.
Venha ver uma coisa, Tot.
Foi até a sala e apanhou algo na mochila. Rodor espantou-se.
Um sax? Desde quando?
New Orleans. Ninguém passa nove meses naquela cidade
sem ficar fascinado por jazz. Ainda estou aprendendo, mas já
dá para tirar um sonzinho. Sente só...
E Vic Sage passou o resto da tarde tomando chá e tocando
sax com seu velho amigo Rodor.

No dia seguinte,
foi a KBEL procurar os velhos companheiros. Com sorte, ainda poderia
conseguir algum free-lance. Não podia ficar nas costas
de Rodor eternamente. Surpreendeu-se ao encontrar Richard Cameron,
um dos poucos a quem realmente pudera chamar de amigo, no cargo
de gerente da emissora.
Dick Cameron?
Sage? Vic Sage! Eu não acredito!
E aí, Dick? Como estão as coisas? Cadê o
puxa-saco do Finch?
Finch? Deixou a emissora há oito meses. Arrumou uma boquinha
na Lexcom e se arrancou para Metrópolis.
Quase chego a sentir pena do Luthor... Vai ficar com o saco
no pé. Mas quem ficou no lugar dele?
O que você acha que eu estou fazendo na sala, limpando?
Ora vejam...
E você, o que está fazendo?
Por enquanto, nada. Acabei de chegar. Ainda estou tomando pé
da situação.
Procurando alguma coisa?
Sempre. respondeu Sage, num duplo sentido que Cameron não
captou.
Bem, você já deu muita audiência para a casa.
Acho que dá para apertar o Carlyle e colocar você
cobrindo a vaga da Rhona. Ela está entrando em férias
em dois dias. Interessado?
Claro!
Bem, vamos falar com o Carlyle, então. Ele vai gostar
de te ver de volta.
Os dois homens deixaram a sala e seguiram pelo corredor ao escritório
do diretor de programação. No caminho, Sage viu
uma mulher hispânica abaixar-se com dificuldade para pegar
do chão um copinho de café. O rosto marcado deixava
claro que havia sido espancada. Cameron dirigiu-se a ela, que
aparentemente não ouviu.
Consuela? Perguntei se o café é fresco!
Desculpe, señor Cameron. É fresco, si señor.
Machucado feio disse Sage.
Foi um acidente. Caí da escada. mentiu a mulher, visivelmente
constrangida.
Sage olhou-a, o rosto sério.
Cuidado. Certos acidentes tendem a se repetir. Com freqüência.
Saíram da sala, deixando Consuela a sós com seus
problemas. Seguiram para a sala de Carlyle, que estava ocupado
com Samuel Johnson, mais conhecido como o Negociador. Cameron
explicou a Vic como o distinto exportador de alimentos e contrabandista
de armas e drogas tinha entrado para a política e dominado
o Conselho Municipal. Sage lembrou-se de Jerry Wilson e de como
sua carreira e sua vida tinham sido destruídas por Johnson.
"Essa é uma questão em aberto, senhor Johnson",
pensou Sage. "E eu pretendo fechá-la, mais cedo ou
mais tarde."

Vai sair? perguntou
Rodor.
Vou. Vi uma coisa hoje na emissora que me chamou a atenção.
Quero dar uma olhada. respondeu Sage, vestindo um sobretudo
claro.
Pela roupa, acho que o passeio de Vic Sage vai ser curto. O
que espera encontrar?
Questão interessante...
Se alguém lhe perguntasse, Sage não saberia responder
o motivo que o levou a seguir Consuela Rodriguez. Talvez racionalizasse,
alegando que tentava protegê-la. Ou reduzisse tudo à
pura necessidade de espancar alguém para descontar a frustração
de não poder fazer nada, ao menos por enquanto, contra
o homem que arruinou seu velho amigo Jerry Wilson. Em seu íntimo,
porém, sabia perfeitamente a razão.
Que motivo uma mulher pode ter para manter-se ao lado de um homem
que a espanca? O que a faz voltar? A curiosidade o corroía
e o fazia sentir-se como um vouyer enquanto observava, do alto
do telhado do prédio em frente, Miguel Rodriguez cair chorando
aos pés de Consuela, implorando por uma segunda chance.
Quando o casal foi para o quarto, Sage decidiu respeitar sua privacidade.
Entre envergonhado e curioso, voltou para casa, a questão
martelando-lhe a cabeça: "Por quê?"

Oito dias depois,
Sage voltou a encontrar Consuela, que faltara no dia anterior.
Tinha o braço engessado e mancava. O olho ainda estava
inchado e roxo. Uma fúria incontida embrulhou o estômago
do repórter.
Cuidado, disse ele, soturno esses "acidentes"
vão acabar matando você.
Naquela noite, não foi para casa. Seguiu para o Centro
e aguardou num beco próximo ao cortiço vertical
onde Consuela morava. Miguel estava na porta, bêbado, uma
garrafa de aguardente nas mãos. Começou a berrar
tão logo a esposa apontou na esquina.
Sua puta! Pensa que é grande coisa? Você não
é nada!
Pára com isso, Miguel! gritou Consuela, desesperada.
Sage sabia o que vinha a seguir. Tirou do compartimento secreto
do cinto a máscara de pele sintética e colocou-a
no rosto. Um botão na fivela liberou o gás que alterou
a cor de suas roupas, dando-lhes um tom azul-marinho, e fixou
a máscara. Naquele momento, ele não era mais o repórter
Vic Sage. Era a hora do justiceiro sem face chamado Questão.
'Cê não manda em mim! Só porque põe
dinheiro em casa acha que manda em mim? 'Cê não passa
de uma vadia!
Seu desgraçado! Vou embora, hijo de puta! Vou
embora!
Ah, vai? Vou te mostrar pra onde 'cê vai, vagabunda...
Antes que pudesse reagir, Miguel teve o punho seguro pelo Questão.
Voltou-se para seu oponente, disposto a aplicar-lhe o corretivo
que tinha preparado para a esposa.
Quem 'cê pensa que é, sem-cara? Isso é coisa
de marido e mulher!
Sage permaneceu calado, menos irritado do que curioso.
Só porque 'cê num tem boca acha que eu num te quebro
os dente? Filho da...
Miguel partiu desajeitadamente para cima do Questão. Horas
mais tarde, Vic Sage acharia que exagerou na dose. Naquele momento,
porém, a curiosidade deu lugar à fúria. Bloqueou
o golpe do oponente e quebrou seu nariz impiedosamente. O ataque
seguinte foi rechaçado com ainda mais violência,
arrancando dois dentes de Miguel e fraturando uma costela. Só
mais tarde se deu conta que iria continuar surrando um inimigo
bêbado e vencido, não fossem as súplicas de
Consuela.
Pára, pelo amor de Deus! 'Cê vai matar ele!
O que ela estava fazendo? Defendendo o homem que iria espancá-la?
E o que diabos ele estava fazendo? Defendendo uma inocente
ou descontando suas próprias frustrações?
Confuso, limitou-se a dar um aviso a Consuela. Por trás
da máscara, sua voz era como um sussurro abafado.
Vai piorar.

Sage chegou em casa
horas mais tarde. Rodor assustou-se com seu olhar perdido.
O que houve, Vic? Está ferido?
Não. Sim. Não sei. Não entendo...
O quê? O que você não entende?
Se eu estou protegendo as pessoas, quem vai protegê-las
de mim?
De repente o mundo começou a girar para Vic Sage e ele
foi ao chão. Rodor esforçou-se para colocá-lo
na cama. Alguma coisa muito errada estava acontecendo com seu
amigo e ele não sabia o que era. Mas teve, em seu íntimo,
um mau pressentimento. Do lado de fora, a chuva voltava a cair.
:: Notas do Autor
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