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Por
Fernando Lopes
Sonhos
Desfeitos
Quando tinha cinco
anos, durante o jantar, Martin Jones perguntou a seu pai por que
lhe dera esse nome.
É uma homenagem. respondeu o motorista Norman Jones,
feliz com a curiosidade do filho Um tributo a um grande homem.
Quem, papai?
Um pastor chamado Martin Luther King Jr.
E ele era muito grande?
Era, mas não do jeito que você está pensando.
a ingenuidade da pergunta trouxe um sorriso ao rosto de Norman
Ele era grande porque era um sonhador.
Um sonhador? E ele sonhava com o quê?
Com igualdade, filho. Sonhava com um mundo melhor. Um mundo
onde as pessoas fossem julgadas pelo que fazem e não pela
cor de sua pele. Ele sonhava com a paz.
E onde ele está agora?
Ele... ele morreu, filho. uma expressão melancólica
substituiu o sorriso na face de Norman Jones Foi assassinado
no dia em que você nasceu.
E quem o matou?
A intolerância, meu querido... a intolerância.
Uma profunda tristeza se abateu sobre Norman ao lembrar daquele
4 de abril. Toda a felicidade pelo nascimento de seu terceiro
filho o primeiro varão, para enfim dar continuidade à
linhagem dos Jones foi maculada pela notícia do assassinato
de seu ídolo. Um homem que ousou lutar contra o preconceito
e a injustiça tendo como arma a razão e a não-violência.
Anos antes, em agosto de 1963, Norman assistira ao discurso de
Martin Luther King em Washington. Ficou maravilhado com a força
das palavras daquele homem que ousava desafiar séculos
de preconceito e segregação.
Ô, pai! o chamado impaciente do pequeno Martin trouxe-o
de volta à realidade Tô falando com você!
Desculpe, filho, papai estava distraído. O que você
perguntou?
Do sonho, pai. Ele se realizou?
Norman olhou para o apartamento pequeno e espartanamente mobiliado
onde vivia com a esposa e os filhos, no bairro do Bronx, em Nova
Iorque, antes de responder. Pensou nos sete anos de trabalho sem
uma única promoção e no olhar desdenhoso
dos brancos quando ele passava com a família pela porta
dos locais freqüentados pelos ricos. Por fim, procurou palavras
que não trouxessem amargura ao garoto de cinco anos.
O sonho vive para sempre, Martin, enquanto alguém acreditar
nele.

Aos 12 anos, Martin
Jones descobriu o lado sombrio do sonho americano. Voltava da
escola com alguns amigos quando o grupo foi parado por um carro
policial. Os guardas desceram da viatura com as armas em punho,
gritando:
No chão, moleques!
Desculpe, eu não...
No chão! Tá surdo?
Constrangidos, os garotos foram submetidos a uma rigorosa revista.
Os policiais abriram suas mochilas e jogaram os materiais no chão.
Deixaram-nos naquela posição humilhante, sobre a
calçada imunda, por 10 minutos. Por fim, mandaram-nos juntar
as coisas e sumir. Martin estava indignado.
Isso não
está certo... disse, em voz baixa.
O que você falou, moleque? um dos policiais voltou-se
em sua direção, o rosto crispado de ódio
Tá achando ruim, é?
Eu só disse...
A frase foi interrompida por uma bofetada.
E quem mandou você dizer alguma coisa, negro? o policial
estava com o rosto vermelho Quem disse que você tem o
direito de dizer alguma coisa?
Vamos embora, Ed. Deixa o garoto.
Não, ele precisa aprender desde cedo. o homem estava
transtornado Escuta aqui, pirralho, e escuta com atenção:
quando um branco lhe disser "pule", a única coisa
que você pode responder é "a que altura, senhor?"
Tá me entendendo?
Martin permaneceu em silêncio. Sim, a mensagem tinha sido
bem clara. Naquele dia, Martin Jones percebeu que o sonho de igualdade
em que seu pai acreditava estava muito longe da realidade. Chegou
em casa chorando, mais de ódio que de dor. Seu rosto estava
inchado. O pai o viu entrar transtornado e procurou saber o que
tinha acontecido. O relato deixou Norman furioso.
Isso não vai ficar assim. Venha comigo.
Pai e filho foram ao distrito policial, prestar queixa da agressão.
Esperaram cinco horas para serem atendidos. Foram dispensados
em dois minutos e meio, com a promessa de serem chamados para
prestar novo depoimento. Nunca foram. Martin jamais esqueceu aquele
dia.

Diferente de muitos
de seus amigos, que optaram pela saída fácil do
crime, Martin Jones decidiu lutar pelo sonho de seu pai na arena
dos brancos. Com o apoio de uma fundação privada,
obteve uma bolsa de estudos para estudar em Harvard. Formou-se
em Direito, com distinção. Começou a atuar
na Defensoria Pública, auxiliando pessoas carentes, principalmente
negros, em ações de violação de direitos
civis. Ganhou prestígio junto à comunidade afro-americana
de Nova Iorque, e passou a escrever uma coluna semanal para o
Clarim Diário, denunciando abusos e pregando a igualdade.
Norman Jones tinha orgulho de seu filho.
Por uma ironia do destino, Martin foi chamado a defender um homem
numa ação de racismo e agressão contra um
policial. Preso a uma cadeira de rodas, ele alegava ter sido violentamente
espancado pelo oficial, a ponto de perder o movimento das pernas.
Para surpresa do advogado, o acusado era ninguém menos
do que Edward Morris, o mesmo policial que, anos antes, o esbofeteara.
Com satisfação, Martin viu seu agressor ser condenado
à prisão. A justiça tinha sido feita, afinal.
Três meses depois, Morris escapou da cadeia. Norman Jones
foi atropelado e morto na semana seguinte, perto de sua casa.
Segundo testemunhas, um homem branco dirigindo um automóvel
sem placas acelerou no momento em que o velho Norman atravessava
a rua. O assassino nunca foi pego.
Após a morte de seu pai, Martin Jones decidiu recomeçar
a vida em Hub City, Illinois. Casou-se e passou a morar com a
esposa e o filho em um bairro de classe média. Sua carreira
progrediu e ele novamente ganhou destaque na comunidade. Pretendia
se candidatar a um cargo público. Com o tempo, talvez chegasse
ao Governo do Estado, ou mesmo ao Senado, ou até... Bem,
quem poderia saber?
Norman Martin Jones nunca teve oportunidade de perguntar a seu
pai o porque dele ter aquele nome. Nunca pôde soube nada
sobre Martin Luther King ou sobre a admiração que
seu avô tinha por ele. O garoto pouco viu do mundo. Aos
dois anos, foi assassinado com um tiro de espingarda calibre 12.
Sua mãe, Irene, foi violentada por 15 homens antes de ser
espancada até a morte. Martin Jones assistiu a tudo isso
antes de ser enforcado no grande carvalho diante de sua própria
casa. Vic Sage observava o corpo pendurado pelo pescoço,
o horror estampado no rosto enrijecido. O brilho da enorme cruz
de madeira em chamas conferia ao cadáver aparência
ainda mais dantesca. A polícia tentava afastar os curiosos,
ao mesmo tempo fascinados e nauseados com o terrível espetáculo.
Esta é a terceira chacina, comissário.
Vic quase enfiou o microfone no nariz de Izzy O'Toole O
que a polícia está fazendo para deter esses maníacos?
Tudo ao nosso alcance, senhor Sage. Agora, tire esta merda
da minha frente antes que eu enfie ele no seu...
É verdade que vocês ainda não têm
nenhuma pista de quem são os integrantes da Supremacia
Ariana?
Será que dá para alguém tirar esse
puto daqui? O'Toole estava a ponto de explodir Quero
todo mundo atrás da linha, porra!
Dois policiais levaram Sage e o cameraman para trás do
cordão de isolamento. O repórter não conseguia
tirar o olho do cadáver que balançava ao vento.
As perguntas martelavam em sua cabeça. "Quem são
eles? Como podem fazer isso?" Sentia um nó formar-se
em seu estômago. "Quem quer que seja o responsável,
já foi longe demais. E não vai sair impune."
:: Notas do Autor
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