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Por
Fernando Lopes
As
Cores do Ódio
Quinta-feira,
20h15
Querida, estou saindo. Quer alguma coisa da rua?
Não, George. Divirta-se.
Elizabeth Bannon Liz, para os íntimos beijou o marido
e acompanhou-o até a porta, seguindo com os olhos a trajetória
do carro rua abaixo. Voltou para dentro e trancou a porta, cuidadosa.
Não gostava muito que George saísse à noite,
mas sabia que o pôquer com os amigos às quintas-feiras
era quase sagrado para ele. Nos dois anos de casamento, essa talvez
fosse a única ressalva que pudesse fazer ao seu comportamento.
Trabalhador, caseiro e dedicado, não era dado a grandes
farras. Não bebia ou fumava, acompanhava-a todos os domingos
à igreja e nunca fora do tipo garanhão. Um verdadeiro
achado. "E pensar que mamãe não queria que
eu me casasse...", pensou Liz, com um sorriso. "Ninguém
é tão perfeito, minha filha", costumava repetir
a velha. "Quem diria que ficariam tão amigos",
perguntou a si mesma, enquanto ligava a televisão. Pegou
o noticiário pela metade.
... reprimido com rigor pela polícia. É o quinto
dia de protestos da comunidade afro-americana desde que a família
do advogado Martin Jones foi assassinada em sua casa, há
uma semana. A onda de crimes raciais começou há
cerca de um mês, quando cinco jovens afro-americanos foram
encontrados enforcados nos arredores da cidade, às margens
do Rio Hub. Os crimes são atribuídos à Supremacia
Ariana, uma organização racista ultra-radical. A
polícia ainda não tem pistas sobre... com um toque
no botão do controle remoto, a imagem de Vic Sage deu lugar
a um episódio de Plantão Médico.
"Meu Deus, onde é que nós vamos parar",
questionou-se distraidamente Liz Bannon, enquanto a imagem de
George Clooney surgia na telinha.

Quinta-feira,
20h32
E aí, Spike? disse Bannon, passando a mão no
gato angorá que se enroscava em suas pernas O que está
fazendo fora de casa a essa hora?
George pôs o animal no colo e caminhou pelo pátio
frontal da suntuosa mansão, num dos mais caros bairros
de Hub City, até chegar à entrada principal. Billy
Ransom abriu a porta, como de costume, e os dois homens começaram
uma animada discussão sobre os resultados da NBA. Seguiram
até um grande salão de jogos, onde outros 18 homens
bebiam e conversavam descontraidamente em pequenos grupos.
Finalmente! Stewart Moore recebeu o recém-chegado com
um sorriso Estávamos pensando que você não
vinha!
Até parece que eu já faltei alguma vez... retrucou
George, também sorrindo.
Bem, já que estão todos aqui Moore assumiu um
tom solene, embora ligeiramente cínico acho que podemos
começar. Senhores, está oficialmente aberta a reunião
da Supremacia Ariana.

Domingo, 7h35
As vozes poderosas do coro enchiam a igreja com o som de uma maravilhosa
interpretação de Jesus Loves Me, acompanhada
com emoção pelos fiéis. Quase escondido no
fundo do templo, Vic Sage ouvia a canção em meio
a sentimentos conflitantes. Lembranças da infância
dura no orfanato católico onde crescera, resgatadas pela
música gospel, vinham à sua mente, deixando-o com
uma desconfortável sensação de melancolia.
O sentimento se acentuava toda vez que ele prestava atenção
aos rostos contritos dos fiéis, em sua maioria afro-americanos
assalariados de baixa renda. "Que espécie de Deus
é esse, que deixa seus filhos morrerem de forma tão
cruel?" A melancolia deu momentaneamente lugar à raiva
na mente de Sage. "Que estranha maneira de demonstrar amor,
deixando-os sofrer tanta dor e humilhação! Que espécie
de pai é você, afinal?" O sentimento, porém,
arrefeceu ao som dos versos, cantados com fervor pela congregação.
"De onde vem tanta fé? O que os faz acreditar que
alguém realmente se importa?"
Sage decidiu esperar o fim do culto para conversar com o padre
Collins. Sentia-se como uma espécie de aberração
circense quando os fiéis, de saída, olhavam-no com
um misto de espanto e curiosidade. O que diabos aquele homem branco
e loiro estava fazendo ali? Alguns olhavam com desaprovação
mal disfarçada, como se a própria presença
de Vic fosse uma afronta. "Não seria isso uma espécie
de racismo também?", filosofou internamente o repórter,
fingindo não perceber os olhares atravessados. Cruzou a
igreja e foi falar com o sacerdote, um afro-americano de aproximadamente
65 anos, cabelos ligeiramente grisalhos nas têmporas e olhar
penetrante.
Padre Collins?
Sim? Ah, é você... Como vai, senhor Sage?
O senhor me conhece?
O Senhor conhece a todos, meu filho. sorriu o religioso, fazendo
um trocadilho E eu assisto televisão. Em que posso ajudá-lo?
Bem, estou investigando os massacres recentes. Vic entrou
no assunto com sua costumeira falta de tato Talvez o senhor
possa me ajudar.
O sorriso desapareceu do rosto do pároco, dando lugar a
uma expressão de profunda tristeza.
Ah, isso... Bem, vamos para a sacristia. Lá poderemos
conversar melhor.
Vic seguiu o padre por um corredor lateral, que ligava o altar
a um pequeno vestiário. O sacerdote retirou os paramentos
e passou com o repórter para a sacristia.
É uma verdadeira tragédia. a voz do reverendo
misturava indignação e dor Eu conhecia os Jones.
Costumavam freqüentar a paróquia, embora não
morassem por aqui. Batizei o pequeno Norman...
As lágrimas brotaram do rosto de Collins ao lembrar da
criança cruelmente assassinada. Sage manteve-se em silêncio.
O que quer saber, senhor Sage?
Parece que o senhor vem recebendo ameaças...
Na verdade, são rumores... Os fiéis estão
assustados. Ouviram boatos de que a igreja será atacada
e que eu sou o próximo na lista dos assassinos.
E o senhor, o que acha? Tem visto alguma movimentação
estranha?
Não, nada fora do comum...
Tomou alguma providência quanto à sua segurança?
Bem, tenho evitado sair à noite, trancado bem as portas...
Mas nada de excepcional.
E não fica preocupado?
Bem, eu tenho um bom guarda-costas... o padre apontou para
cima, sorrindo Ele nunca me decepcionou.
Não acha que está apostando meio alto?
Se eu não tiver fé, meu filho, quem terá?

Quinta-feira,
15h48
Sage decidiu checar seus e-mails antes de ir para a KBEL. Tinha
gasto boa parte das últimas semanas vasculhando informações
na Internet sobre racismo e, mais precisamente, sobre a Supremacia
Ariana. Apesar da grande variedade de páginas sobre o assunto
com um número absurdamente grande de defensores
da segregação, destilando seu ódio com as
mais absurdas teorias ele praticamente não tinha
saído do zero. Participou de chats, deixou mensagens em
grupos de discussão, mas não obteve nenhuma resposta
satisfatória, nenhuma pista. Tentou também quebrar
algumas cabeças nas ruas, mas nenhum de seus informantes
involuntários parecia saber de nada. Ou isso, ou tinham
uma forte tendência masoquista.
Havia dois e-mails em sua caixa postal, com o estranho título
"Sobre sua pesquisa". O remetente usou um webmail baseado
em outro país, provavelmente cadastrado sob um nome falso.
Praticamente impossível de rastrear, ao menos em pouco
tempo. Vencido pela curiosidade maior que o ímpeto
de simplesmente apagar as mensagens Vic foi surpreendido
por seu conteúdo. A primeira trazia um texto aparentemente
sem sentido: "Três homens em débito, um único
credor. Que Poseidon vele seu sono eterno". A segunda trazia
um texto criptografado, com um anexo, também em código.
Depois de alguns segundos, as coisas começaram a fazer
sentido.
Anos atrás, o Questão, Batman e Arqueiro Verde foram
contatados pela assassina conhecida como Lady Shiva para ajudar
um velho mestre oriental a realizar seu último desejo:
ser enterrado ao lado da mulher que amava. O velho acabou morrendo
durante uma tempestade, e seu corpo foi parar no fundo do mar,
no mesmo lugar onde, anos antes, o barco que levava os restos
mortais de sua esposa tinha naufragado. O mestre era conhecido
apenas como Sensei. Essa era a chave para o código.
Uma vez decodificada, a mensagem mostrou-se ainda mais surpreendente
que a forma como fora enviada. Um documento anexado trazia farto
material, provavelmente obtido junto ao FBI, sobre as atividades
dos principais grupos e ativistas racistas do País. Um
trecho destacado em vermelho mencionava um certo Stewart Moore,
industrial do setor de armamentos com interesses em várias
partes do mundo, particularmente na África do Sul, durante
a vigência do Apartheid, e vários outros países
do continente africano. Pelas informações, o tal
Moore fomentou meia dúzia de guerras civis no continente,
vendendo armas para ambos os lados. Havia suspeita de que ele
também estaria financiando grupos neonazistas dentro e
fora dos EUA, mas nada suficiente para enfiá-lo atrás
das grades. Ao que tudo indica, os federais estavam de olho no
sujeito há um bom tempo. O que mais chamou a atenção
de Sage foi o texto da mensagem. Dizia simplesmente: "Acho
que isso pode ajudá-lo. Um amigo me pediu que enviasse.
Faça bom proveito." Estava assinado simplesmente "O".
Sage não sabia quem era o tal "O", mas tinha
plena certeza de quem era o amigo. Mais uma vez, o Questão
estava em débito com o Cavaleiro das Trevas.

Quinta-feira,
22h17
Sage deixou o carro a pouco mais de meio quilômetro da mansão
de Stewart Moore. O motor de Porshe roncou sob o capô do
Fusca antes de se calar. Ele sorriu ao pensar em quanto dinheiro
seu amigo Tot tinha gasto para recuperar um veículo tão
peculiar. Afastou esses pensamentos e limpou sua mente para os
eventos que estavam por vir. Tocando num botão oculto sob
a fivela do cinto, Vic abriu o compartimento secreto que escondia
sua segunda face. Colocou a máscara de pele sintética
sobre o rosto e pressionou outro botão, liberando o gás
para completar sua transformação. Seu terno e o
sobretudo assumiram um forte tom azul-escuro, enquanto seus cabelos
passaram de louros para castanhos. Em segundos, Vic Sage deu lugar
ao Questão.
O vigilante sem rosto saltou o muro e evitou os seguranças
com relativa facilidade. Esta era uma missão de reconhecimento
e confrontos eram absolutamente desnecessários. Usando
uma árvore como escada, alcançou o segundo andar
da casa e infiltrou-se por uma janela aberta. Andou pelos corredores
desertos e escuros até ouvir vozes no piso inferior. Desceu
rápida e silenciosamente as escadas, escondendo-se no salão
contíguo, de onde podia observar sem ser visto. O discurso
de Moore deixou-o enojado.
Este país está se desmantelando, senhores.
E cabe a nós, os verdadeiros americanos, salvá-lo.
Temos de devolver nossa nação às suas origens
mais puras, eliminando as pragas que consomem nossos recursos
e infestam nossas ruas. Negros, latinos, asiáticos... mutantes!
Estamos vendo nossa terra natal ser aniquilada por seres inferiores,
que abusam de nossa benevolência e avançam cada vez
mais vorazmente sobre nós. É hora de reagir! Não
se intimidem com nosso pequeno número, pois isso é
temporário. Por todo o país surgem adeptos à
nossa causa a cada minuto. Em breve, nossas legiões se
erguerão para restituir aos nossos filhos o direito a uma
nação branca e temente a Deus.
O som das palavras repletas de ódio tolheu completamente
a razão de Vic Sage, fazendo-o esquecer por completo as
lições de seu mestre, Richard Dragon. A torrente
de fúria nublou seu raciocínio, levando-o agir da
mesma forma impensada que várias vezes o levou às
portas da morte.
Porcos nazistas! Assassinos imundos! Vocês não
merecem respirar o mesmo ar que aqueles que odeiam. Chegou a hora
de vocês sentirem um pouco da dor que causaram às
suas vítimas!
A repentina aparição do Questão sobressaltou
os membros do grupo como uma visão do inferno. Vinte pares
de olhos fitaram aquele homem sem rosto como se fosse a própria
encarnação do diabo. O momento de hesitação
foi suficiente para que o vigilante vencesse os 10 metros que
os separavam. Mais uma vez, as palavras deram lugar à violência.
Os movimentos do Questão eram rápidos e furiosos,
neutralizando rapidamente sete adversários. Os fanáticos
caiam como gravetos partidos, gemendo de dor pelos ossos quebrados.
Moore acionou os seguranças, que rapidamente invadiram
a sala. Com a perda do elemento-surpresa, o grande número
de adversários cobrou seu preço. A descarga elétrica
do equipamento de um dos guardas paralisou o corpo do Questão,
que em segundos caiu inconsciente, vítima de inúmeros
golpes. Abatido, o herói foi jogado num canto da sala como
saco de batatas.
E agora, senhor Moore? Chamamos a polícia?
Não, ainda não. Quero conversar com nosso...
convidado quando ele acordar. Podem ir.
Os seguranças amarraram Sage a uma cadeira e deixaram o
recinto. Os membros da Supremacia estavam inquietos. Um dos membros
do grupo, que era médico, cuidava dos feridos.
Ficou louco, Stewart? George Bannon estava transtornado
Este homem pode nos mandar para a cadeira elétrica!
Um lunático sem rosto que invade uma residência
durante uma reunião informal de amigos? Duvido muito...
Agora acalme-se e tenha compostura, homem!
Bannon e os demais se acalmaram. Moore retomou a palavra.
Além disso, quem disse que nosso amigo sem rosto
deixará esta sala?
:: Notas do Autor
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