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Por
Fernando Lopes
Justiça
Divina
Trevas. Silêncio.
O Questão flutua no negro e plácido oceano da inconsciência.
Sua mente retorna ao passado, às montanhas do Sul. As palavras
de seu mestre, Richard Dragon, dançam em sua mente como
folhas ao vento. "Não há outra forma de resistir
à dor senão aceitando-a. Abrace sua dor. Não
resista. Sinta-a fluir pelo seu corpo. Metabolize-a. Transforme-a
em força. Quem extrai sua força da dor não
pode ser derrotado".
Subitamente, um balde de água gelada se encarrega de devolver
a consciência a Vic Sage de forma abrupta. Ele instintivamente
tenta se levantar da cadeira, mas não consegue. Com suas
mãos e pés amarrados, tudo o que pode mexer é
a cabeça. Uma dor aguda do lado direito do tronco revela
ao menos uma costela quebrada. Talvez duas. À sua frente,
Stewart Moore observa-o com mórbida curiosidade. Atrás
dele, os outros membros da Supremacia Ariana também permanecem
com o olhar fixo em sua direção.
Um disfarce realmente engenhoso. Ou isso ou você é
a aberração mais escrota que já conheci,
homem sem rosto.
É parte do meu charme.
A ironia sai numa voz rouca e abafada através da máscara
de pele sintética. Sage se lembra rapidamente do amigo
Aristotle Rodor se gabando do quão eficiente é o
gás binário que fixa o disfarce em seu rosto, ambos
criados pelo próprio cientista. "Não sairá
a menos que você queira", costuma destacar enfaticamente
o professor. "Ou que arranquem sua cara junto. Uma perspectiva
não muito animadora, diga-se de passagem."
Vejo que nossa pequena... discussão não abalou
seu senso de humor. prossegue Moore com um sorriso cínico
Gosto disso.
Me desamarre que eu canto e sapateio também. Na sua cara,
se possível.
Acho que não será desta vez... o líder
da Supremacia Ariana se levanta e começa a caminhar ao
redor da cadeira Você sabe que vai morrer, não?
Todo mundo morre. Uns mais cedo, outros mais tarde, mas ninguém
escapa.
É um fato. No seu caso, a ser brevemente consumado.
Talvez.
Certamente. Por isso, permita-me matar minha curiosidade. Quem
é você?
Questão interessante.
O soco atinge violentamente o queixo de Sage, que absorve o golpe.
Para um homem morto, você é realmente muito engraçadinho...
Como nos encontrou?
Páginas amarelas?
Um novo golpe, desta vez um chute no estômago, faz o vigilante
sem rosto pensar que suas ironias talvez fossem melhor apreciadas
por outra platéia, em outra ocasião.
O que quer conosco?
No momento, a única coisa que gostaria de fazer era limpar
o chão com sua cara.
O Questão espera pelo novo golpe, que não vem. Em
vez disso, Moore dá um sorriso e começa a falar.
Conheço o seu tipo. Você se acha um herói.
Pelo seu arroubo intempestivo e pouco inteligente, se me permite
dizer você está a par de nossa... cruzada moral.
E aparentemente não a aprova.
Se você chama massacrar famílias inteiras de cruzada
moral, não quero nem saber o que você chama de um
barbárie...
Pois eu vou lhe dizer o que considero barbárie. Moore
pára bem diante de seu prisioneiro, olhando fixamente para
o lugar onde deveriam estar os olhos do Questão Barbárie
é entregar nosso país à escória que
hoje infesta nossas ruas. Negros. Latinos. Mutantes. Escória!
Um bando de chacais sem pátria, que invadem nossa sociedade
buscando usufruir da prosperidade que nós, legítimos
americanos, construímos. o líder racista parece
ser aos poucos possuído por um demônio. Sua voz se
eleva e seus olhos parecem faiscar Eles vêm com suas doenças,
sua pobreza, sua lascívia, suas drogas, seu idioma e cultura
abjetos, tentando se infiltrar em nossas famílias, nossas
igrejas, na escola de nossos filhos. Trazem o crime e a miséria
para dentro de nossas casas. Tomam bairros inteiros e exigem do
governo mais e mais benefícios, sobrecarregando quem verdadeiramente
trabalha com impostos abusivos. E fazem isso esbraveja Moore,
apontando o dedo acusatoriamente na direção de Sage
com a conivência de liberais de merda como você!
O ódio nas palavras do fanático não deixam
dúvidas: o homem é louco. E perigoso. Do tipo capaz
provocar um holocausto apenas para provar suas teorias doentias.
E você acha que vai purificar o mundo com sua cruzada
sangrenta?
Sou um precursor da revolução que está
por vir. A cada dia, mais pessoas se unem à nossa causa.
Em breve, os verdadeiros americanos vão se levantar para
devolver este país aos seus legítimos donos.
Você não passa de um louco. a voz do Questão
soou ainda mais rouca do que o habitual.
É o que dizem de todos os visionários. O tempo
provará que tenho razão. Infelizmente, você
não estará vivo para assistir.
Um golpe na cabeça deixa o vigilante sem rosto novamente
desacordado. George Bannon, um dos membros do grupo racista, aproxima-se
de Moore.
O que faremos com ele?
Já que ele se mostra tão solidário com
as "minorias", receberá o mesmo tratamento que
elas. Afinal, se você não faz parte da solução...

Os solavancos do
veículo lentamente trazem o Questão de volta ao
mundo dos vivos. A escuridão, porém, permanece.
Com as mãos amarradas para trás, ele é levado
no porta-malas de um carro para um destino desconhecido, mas certamente
nada agradável. O impacto de seu corpo contra o fundo do
carro a cada tranco o faz lembrar da costela quebrada. "Essa
história de abraçar a dor é bem mais fácil
quando não é com a gente", pensa, irritado.
Seus pés agora estão desamarrados. Sinal de que
pretendem fazê-lo andar. Valendo-se de sua elasticidade,
ele passa as mãos por baixo do corpo, trazendo-as para
frente. Minutos depois, o carro pára. Sage ouve o som de
outros dois veículos estacionando. "Parece que vieram
todos", deduz. "Vai ser mais complicado do que pensei."
O porta-malas é aberto por Bannon e Billy Ransom, que não
têm tempo de se defender do chutes do Questão. O
vigilante se aproveita do momento de confusão para tentar
escapar, as mãos ainda atadas. Os carros estão numa
clareira fora da cidade, às margens do Rio Hub. Sage corre
para a mata, sendo perseguido pelos membros da Supremacia Ariana.
O longo tempo amarrado e a dor nas costelas retardam seus movimentos
até que ele é finalmente alcançado. Quatro
homens se encarregam de prendê-lo até que Moore chegue.
Seus pés são novamente amarrados
Este foi um gesto desesperado, meu amigo sem rosto. Medo repentino
da morte?
Súbita vontade de ir ao banheiro.
Moore dá uma gargalhada.
Espirituoso até o fim! Gosto disso! Vamos ver se consegue
fazer piadas com isso aqui ao redor do pescoço.
O fanático balança a corda com o nó de forca
diante do rosto do vigilante. Os demais membros riem e se preparam
para o enforcamento. Um deles traz uma cadeira, enquanto outro
se encarrega de prender a corda no galho de uma árvore,
passando o laço ao redor do pescoço de Sage. Stewart
Moore aproxima-se de sua vítima com um sorriso jocoso.
Mais alguma frase de efeito? Um último pedido, talvez?
Sim. a voz do Questão soou grave e feroz Queime!
Você primeiro. Moore abre um novo sorriso e chuta a
cadeira.
O corpo de Sage precipita-se no vazio, parando abruptamente na
ponta da corda. Ele sente o impacto, seguido da pressão
em seu pescoço, impedindo-o de respirar. "Então,
é assim que tudo termina", pensa o justiceiro, sentindo
sua consciência se esvair.
A partir desse momento, as coisas passam a acontecer como um filme
em câmera lenta para o Questão. No limiar da morte
mais uma vez, como já estivera anteriormente, ele ouve
uma voz poderosa e gutural, vinda de todos os lugares e de lugar
nenhum. Os membros da Supremacia Ariana entreolham-se, surpresos.
Monstros! Assassinos! Teus atos envergonham o Criador!
Incapaz de distinguir delírio de realidade, Vic Sage vê
uma enorme figura pálida envolta num manto verde escuro
materializar-se na clareira. Os fanáticos, atônitos,
assistem à chegada do Espectro sem esboçar reação.
A apavorante visão estende sua mão acusadora contra
eles e prossegue sua sentença.
Teu ódio queima com intensidade capaz de ofuscar o
próprio inferno, afrontando toda a Criação.
Teus atos estão além de qualquer redenção.
Tuas infâmias despertaram a ira do Todo-Poderoso. Que a
chama de teu ódio seja o símbolo de tua danação
eterna!
Stewart Moore sente como se o próprio sol ardesse dentro
de si. O calor aumenta rapidamente até que seu corpo e
os dos demais membros da Supremacia Ariana explodem em chamas,
transformando-os em piras incandescentes iluminando a noite. Sage
ouve os gritos e sente o cheiro da carne queimada segundos antes
de perder a consciência.

Horas mais tarde,
o Questão emerge uma vez mais das trevas da inconsciência,
mas não abre os olhos imediatamente. Ele ouve os ruídos
da noite e sente o orvalho na grama sem abrir os olhos. Quando
finalmente se levanta, vê o galho onde estava pendurado
no chão, provavelmente partido por seu peso. Em sua mente
confusa, atribui suas visões à proximidade da morte,
que obviamente não veio. Provavelmente seus captores não
ficaram esperando para vê-lo morrer e o acaso, uma vez mais,
interveio em seu favor.
Só então Vic Sage olha para o lado e vê, estupefato,
20 corpos carbonizados espalhados pela clareira. Sua mente recusa-se
a entender. "Então... foi real! Mas como? Quem?"
As perguntas soam mais e mais absurdas à medida que ele
pensa no assunto. Só então ele sente o peso dos
ferimentos por todo o corpo. O cansaço e as dores suplantam
a curiosidade, tornando as dúvidas irrelevantes. A justiça
foi feita, aparentemente por um poder maior que o de qualquer
tribunal mortal. Às vezes, nenhuma explicação
é boa o suficiente para esclarecer os fatos. Talvez porque
certos fatos só sejam compreensíveis para uma lógica
superior.

Em sua cama de casal,
Liz Bannon espera pacientemente pela volta de seu marido George.
"Curioso", pensa, intrigada, "ele não costuma
demorar tanto. Será que aconteceu alguma coisa?"
:: Notas do Autor
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