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Por
Cesar Rocha Leal
Evoluções
Parte V Divagando Com o Inimigo
A mente começa
a clarear. É estranho quando você sai da inconsciência
profunda em um local desconhecido. A primeira coisa que volta
a funcionar em Sage é o olfato. Um cheiro forte de alecrim
impregna suas narinas e também outro mais doce, sutil e
sensual... como canela.
Depois é a audição que retorna, com um som
suave de flautas e cristais tilintando.
Posteriormente, o tato volta também, e Sage se descobre
em grandes almofadas, macias, sedosas e que emanam o cheiro de
alecrim que havia sentido.
É a vez da visão, e quando seus olhos focam a sua
frente, o repórter de Hub City é abençoado
com uma das mais belas visões que alguém pode ter
ao acordar. Uma belíssima mulher em trajes lilás,
cabelos castanhos longos e olhos profundos. Tudo nela emana a
lembrança de sexo e faz com que Vic se pergunte quanto
tempo faz que ele não desfruta de companhia feminina. Parte
da perna da moça aparece no diáfano vestido, pele
suave, lisa...
Por último, o que retorna é a memória. Sage
lembra que foi abordado nas ruas de Bombaim pelo homem que havia
roubado o ídolo tibetano no Rio de Janeiro (*). Houve uma
luta... Apesar de ter vencido, ele foi drogado e trazido até
este lugar, mas não estava sequer usando seu traje de Questão,
o que significava que estas pessoas sabiam sua identidade, ou
estavam somente atrás de Vic Sage.
Há alguns anos atrás, Sage levantaria de um salto
e procuraria fugir às cegas, mas ele se considera mais
esperto nos dias de hoje. Conhecimento... Esta é a melhor
arma contra um adversário desconhecido.
Você está melhor, senhor Sage?
A voz da mulher parece vibrar em uma seqüência estranha.
Seu corpo reage à tensão sexual que parece emanar
de todos os seus poros. Poucas vezes Sage se sentiu assim e no
fundo de sua mente um pensamento parece repetir... Você
precisa saber o que usaram para te drogar...
Acredito que tudo estará bem assim que souber onde
estou. E quem é você.
A mulher sorri. Um sorriso perfeito e sincero. Por um momento,
o sorriso dela parece ser tudo o que importa na mente do herói.
Eu sou Tália, mas isso não é importante
agora. O que realmente deve saber é que você é
hóspede de meu pai. E ele já virá conversar
contigo.
Seu pai é aquele grandão que enfrentei?
Mais uma vez o sorriso nasce na boca de lábios vermelhos
e dentes alvos.
Não, aquele era Ubu, servo de meu pai... Ra's Al
Ghul.
O mundo parece desaparecer debaixo dos pés de Sage. Poucas
pessoas, fora dos ramos de trabalho de Sage jornalismo
e vigilantismo , sabem quem é Ra's. O Cabeça
do Demônio, como diz a tradução de seu nome,
é um dos homens mais perigosos do mundo. Ficou clara a
razão pela qual o Batman estava usando agentes para vigiar
este caso; o objetivo era não chamar a atenção
de Ghul. Até mesmo o monarca da Latvéria ou o famigerado
Lex Luthor não se comparam ao perigo que este homem representa.
De repente até mesmo a presença de Tália
perdeu muito de seu encanto.

Batman chega em Bombaim.
Seu companheiro de viagem, o garoto conhecido apenas como Zack,
pareceu por várias vezes fraquejar em sua decisão
de largar seu vício no tóxico, mas atravessou os
períodos de abstinência bravamente. O que apenas
fez o homem-morcego redobrar sua vontade em localizar a pessoa
que inspirou o rapaz a mudar de vida.
Descobrindo o hotel em que Sage estava hospedado, o homem-morcego
utiliza seu disfarce de Fósforos Malone para alugar um
quarto em que o garoto possa descansar, enquanto o cavaleiro das
trevas inicia a busca pelo Questão nas ruas da cidade.

O homem entra no
quarto de Sage. Seu tamanho e presença intimidam e deixam
o Questão alerta. Juntamente com ele entram alguns servos
que colocam uma lauta refeição à disposição
dos dois. Comida libanesa em sua maioria. Com um gesto, ele dispensa
os empregados e até Tália sai do quarto, deixando
a impressão de perigo ainda mais forte na espinha do aventureiro.
Finalmente encontro o homem que me causou problemas nos
últimos dias. Você é alguém muito tenaz,
senhor Victor Sage, ou prefere ser chamado de... Questão?
Percebendo que seria inútil desmentir o fato, Sage responde:
Não faz diferença como você venha a
me chamar. Eu já tive muitos nomes nesta vida.
Sim. Que seja Sage, então. Sem pais, criado no orfanato
de Hub City e que venceu na vida pelos próprios méritos.
Muito educativa sua história. Eu procuro me manter informado
sobre os componentes da chamada "comunidade super-heroística",
mas nunca esperei que logo você viesse a me causar problemas.
Não sei se devo ficar lisonjeado ou ofendido.
De modo algum minha intenção foi ofendê-lo.
Ocorre que você tem um dos disfarces mais eficientes que
já vi. Sua máscara que o faz aparentar não
ter qualquer rosto causa mais medo à ralé que normalmente
enfrenta do que uniformes grotescos ou mesmo superpoderes. A engenhosidade
de seu traje é admirável, simples e direto, mas
que compensa largamente sua falta de "apetrechos" e
aparatos, bem como a sua carência de poder. É perfeitamente
louvável sua iniciativa, Sage. Eu pessoalmente sempre acreditei
que os melhores dentre nós, seres humanos, devem ser os
responsáveis naturais pela garantia das condições
de vida do resto... E você sempre se pautou por esta regra:
um órfão, condenado ao ostracismo e indiferença
das freiras que o criaram, do mundo que o rejeitou e da sociedade
que nunca o aceitou. Mas mesmo assim se tornou o arauto das notícias
de corrupção que a infestam. E o defensor das noções
morais através dos próprios punhos. Muito inspirador...
E, por que não dizer, há muito de Mussolini em seus
atos.
Se foi apenas isso que pôde constatar de minhas ações,
eu só posso lamentar.
Não seja modesto, Sage. Isso pouco faz bem à
sua imagem. Você anda pelas ruas como o defensor sem rosto
e aparece nas TVs dos lares dos hubianos não porque sente
que deve algo ao mundo, mas apenas por saber que PODE. E que,
se não o fizer, provavelmente ninguém o fará,
nem o governo, nem a polícia, nem a sociedade e nem os
chamados "super-heróis".
Sage não responde, sua mente apenas imagina o que fazer
para fugir dali. A porta está vigiada com certeza, a janela
é alta, mas possivelmente o levaria apenas a se deparar
com muros ou grades. Além disso, o que Ra's parece querer
dizer não encontra muita resistência na mente do
Questão.
Pense, Sage. Como o mundo seria melhor, se houvesse uma
sociedade mais justa e igualitária. Onde os recursos naturais
não fossem mais desperdiçados entre as turbas ignóbeis
que clamam por comida a um governo surdo e inepto. Onde cada um
soubesse sua responsabilidade e contribuísse para o funcionamento
do todo. Onde a fome, a guerra, a dor, seriam para sempre abolidas
dos dicionários.
Junto com o livre arbítrio, certo?
Não me decepcione, Sage. Você, como alguns
homens que conheço, fala em livre arbítrio como
se fosse o maior tesouro da humanidade. Mas acredito que as massas
famintas que moram embaixo das pontes das grandes metrópoles,
sem dinheiro, sem emprego ou perspectiva, trocariam alegremente
seu arbítrio por um prato de feijão e um objetivo
na vida.
Mais uma vez o Questão se encontra analisando o que Ra's
lhe diz, e se descobre incapaz de discordar totalmente das palavras
e visões do enigmático homem. Novamente seus lábios
se encontram mudos.
Seu silêncio me diz muito mais do que sua eloqüência
demonstraria. Você sabe que tenho razão. Pessoas
como aquele que o mandou aqui, o detetive de Gotham, fazem o que
podem, mas são incapazes de dar alento aos milhões
de miseráveis do mundo. Ainda assim, acreditam que podem
remediar o planeta. Esse tipo de pensamento mesquinho é
que o moveu até a mim, pensando em recuperar isto...
Ra's tira de seu cinturão o ídolo tibetano que Sage
procurava tão deseperadamente. O objeto com apenas 20 centímetros
parecia brilhar nas mãos de Ra's com um poder latente.
Como lhe havia sido explicado pelo ocultista Hellboy (**), aquela
energia era resultado da mentalização dos monges
e poderia ser uma fonte inesgotável de poder.
Talvez você não tenha idéia do que
pode ser seu, Sage. Com esse objeto, eu poderei remodelar o mundo,
Sage.
Ra's bate com o ídolo na mesa, destruindo o móvel
e demonstrando as propriedades indestrutíveis do amuleto,
que sequer ficou arranhado.
Seja parte de meu sonho, Sage. Venha reinar a meu lado,
você seria de valiosa ajuda no processo de purificação
pela qual o mundo passará. Mais de oitenta por cento da
população virá a perecer, Sage. Mas os sobreviventes
viverão em uma utopia, sob minha tutela. E da sua, Sage,
ao se tornar meu herdeiro desposando minha filha, Tália.
O Questão sente a garganta secar. No momento, tudo o que
rege seus pensamentos são idéias sexuais com a atraente
Tália. Sage já se sente parte de uma família,
coisa que ele nunca desfrutou. Mas algo parece errado. O cheiro
no ar, que parece ser canela, está cada vez mais forte.
E sempre que pensa em Tália ele parece aumentar ainda mais,
enfatizando o desejo do herói por ela. Além disso,
Ra's parece repetir várias vezes o nome de Sage desnecessariamente.
Para enfatizar algo... Drogas, hipnotismo e manipulação.
Neste momento Vic percebe a intenção de Ghul. Ra's
quer manipular seus desejos e sua mente. Afinal, como poderia
ele de outra forma concordar com a idéia da morte de bilhões
de pessoas em todo o mundo? Seus amigos, Tot, Myra... Focando
sua mente por um instante, Sage toma a palavra.
Sim, eu entendo, mas será que poderia usar o banheiro,
por favor... Me refrescar, eu estou sentindo um calor muito forte.
É claro, Sage, atrás daquela cortina.
Ra's aponta para o aposento com um sorriso de vitória no
rosto, ele desfruta da certeza de ter dobrado Vic de acordo com
seus desejos.
Vic molha um pouco o rosto e resolve agir de forma instintiva.
Mesmo depois de descobrir a intenção do adversário
em manipulá-lo, era difícil resistir. A idéia
de possuir Tália fazia seu sangue ferver. Somente agindo
de impulso ele poderia resistir.
Mecanicamente ele tira sua máscara do compartimento secreto
de seu cinto, colocando-a em seu rosto e liberando o composto
gasoso que a faz fixar-se, se tornando o Questão.
Os acontecimentos seguintes se desenrolam de forma muito rápida.
Ele sai do aposento e se lança sobre Ra's. A surpresa faz
com o vilão esteja despreparado. Sage consegue pegar o
ídolo e dirige-se para a janela.
Ao pular através do vidro, ele acaba se cortando, mas a
adrenalina faz a dor ficar em segundo plano em comparação
à urgência de fugir. Questão cai de uma altura
de seis metros, mas tenta se manter em movimento. Qualquer vacilo
faria com que seus músculos se recusassem a continuar funcionando.
Mais uma vez, a sorte acaba ficando a seu favor. A maioria dos
vigias da casa de Ghul são treinados para protegê-la
contra visitantes indesejados que venham de fora, mas não
estão acostumados a impedir pessoas de saírem. Com
um giro rápido de pernas, um dos guardas é desarmado
e, antes que o outro perceba o que está ocorrendo, acaba
sem seu rifle também.
É com um grande alívio que Sage percebe que não
há muros ou grades impedindo sua saída. Em uma desabalada
corrida, o herói consegue deixar para trás Ghul
e seus asseclas, mas a dor em sua perna começa a se tornar
muito forte para ser ignorada. A conseqüente perseguição
a ele não deve demorar a ser organizada.
CONTINUA
:: Notas do Autor
(*) Última edição.
(**) Também na última edição.

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