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Por
Délio Freire
Entre
a Cruz e a Suástica
Final
Com um gesto da mão,
Blade pede que John Constantine fale mais baixo. Do lado de fora
da casa, a alguns metros de distância, eles começam
a discutir a melhor forma de invadir o local.
Deixe por minha conta. Fique aqui; é o melhor que tem
a fazer.
Se você diz... Constantine dá de ombros. Não
sou um homem de ação.
Também, com esses hábitos o negro aponta para
os cigarros do britânico.
Sim, mamãe...
Não se esqueça, dê um sinal caso algo de
estranho aconteça.
Diabos, você já me disse isso um milhão
de vezes.
Blade se levanta, retirando uma espécie de besta medieval
carregada com estacas. Por alguns segundos o mago o interrompe,
segurando-o pelo braço.
Lembre-se! A Lança do Destino é minha! Paguei
muita grana por ela pra deixá-la escapar.
Violentamente, Blade se desvencilha do outro e segue em frente.
Morto-vivo filho da puta! berra Constantine.

Em meio a um cenário
decadente, na casa abandonada que está prestes a ser invadida
por Blade, um pequeno grupo de jovens vampiros começam
a celebrar uma missa negra, reverenciando velhos deuses.
Ainda há muito que você pode oferecer pela nossa
causa, Carlyle o braço de Samael envolve seu amigo recentemente
vampirizado.
Ainda não entendo muita coisa... Por que invadimos aquele
antiquário e agredimos o velho?
É tudo uma questão de tempo. Mas posso mostrar
um segredo a você. Encare como um presente para um novo
e valoroso guerreiro da causa.
O que é?
Com um gesto, Samael pede que seu amigo caminhe adiante, no que
é atendido imediatamente. Carlyle levanta um tecido na
parede como quem retira o véu de uma mulher, revelando
uma passagem subterrânea. Os dois seguem em frente, Samael
segurando uma vela numa das mãos. A sombra ao seu lado,
projetada pela luz bruxuleante, parece ter vida própria.
Depois de descer alguns degraus, Samael estica seu dedo esquelético
em direção a uma cadeira, onde uma figura aparentemente
envelhecida está cabisbaixa.
Este é o nosso mestre, que guia os passos de todos os
caminhantes noturnos o rosto de Samael abaixa a cabeça
ao pronunciar o nome que considera sagrado. O Barão Sangue.
Deixe-me tocá-lo o jovem vampiro dá alguns passos
e toca o ser em repouso.
Não faça isso!
A advertência de Samael vem tarde demais. Com o toque do
jovem, a figura antes imponente de Barão Sangue revela
sua fragilidade, fazendo cair e rolar a cabeça sem vida
do vampiro.
Ele está morto surpreende-se Carlyle.
Sim. Está. E hoje se torna um nome respeitado graças
ao seu passado lutando em busca de sangue e pela glória
do Partido.(*)
Samael! O grito vem de cima, cheio de medo.
Dentro da casa, o homem que gritara por seu líder tem o
peito atingido por uma estaca, seu corpo sendo jogado contra a
parede pelo impacto. A pequena tropa de vampiros sofre o impiedoso
ataque de Blade.
Sentindo o seu sangue ferver com o combate, o Caçador de
Vampiros pula em direção a outro oponente, cravando
um punhal prateado no pescoço do monstro, que cai sem vida.
Por Satanás, o que está acontecendo aqui? A
voz de Samael interrompe momentaneamente o combate.

Levante-se! a
arma apontada para Constantine é convincente.
O mago finge não ouvir, levando uma seqüência
de chutes que o obrigam a se levantar, contrariado.
David, reviste o homem diz o chefe da equipe policial.
Colocando as mãos de John Constantine sobre a nuca, o policial
revista-o com cuidado.
Cuidado pra não se apaixonar, cara.
Cale a boca! Ele está limpo, senhor.
Ótimo um pequeno binóculo é direcionado
para a casa onde estão instalados o pequeno grupo de vampi-nazistas.
Antes de acabarmos com os arruaceiros, é bom pegar os
fornecedores de armas.
Eu não sou um...
Constantine é interrompido com uma coronhada no queixo.
David, leve esse homem para o camburão. Algemado.
Sim, senhor. Andando, lourinho o par de algemas prende em
um dos braços do mago e ao do policial.
Depois de caminharem por alguns minutos, Constantine começa
a falar com o guarda.
Gosta de mágica?
Cale a boca.
Acha que algemou bem a minha mão? E que tal isso? ele
balança as duas mãos livres no ar.
O que diabo...
Não o envolva nisso Constantine sorri. Não
olhe pra suas mãos agora...
O rosto do policial é tomado de surpresa quando percebe
que a outra algema que deveria prender Constantine está
em seu pulso.
Filho da puta!
Isso vai doer mais em você do que em mim!
Com um soco desajeitado, porém eficiente, o mago põe
o policial desacordado. E começa a correr. Para bem longe
dali.

O rosto de Samael
é tomado pela surpresa e pela dor. Já se acostumara
a ouvir a respeito do mito de Blade entre os seus pares mas jamais
acreditou em sua existência.
Aonde... está... a Lança do Destino! Blade pressiona
o pescoço do vampiro. Diga!
Vá pro Inferno!
Com o movimento semelhante a patada de um felino, Samael golpeia
Blade, que recua alguns passos, surpreso com a força do
golpe. Aproveitando a vantagem momentânea, Samael busca
a todo custo cravar os dentes em seu adversário. Alguns
outros vampiros tentam se dependurar nos ombros de Blade, mas
ele se movimenta incessantemente, lutando para retirar as mãos
pegajosas dele e, ao mesmo tempo, se defender do ataque de Samael.
Carlyle, atônito e assustado, recolhe-se a um canto da sala.
Subitamente, uma grande explosão tumultua ainda mais o
cenário de luta. A fumaça irrita os olhos dos monstros
e os deixa desorientados por alguns minutos. Pelo alto-falante,
uma voz cheia de autoridade começa a gritar:
Aqui é a polícia! Saiam todos com as mãos
pra cima!

Ottomar Berzig enxuga
os olhos umedecidos com um lenço bordado com as iniciais
de seus pais. Ele está arrumando as malas novamente. Para
um homem de sua idade, as mudanças de estadia e a insegurança
reinante o deixam profundamente entristecido. Ele pega um par
de camisas de seu guarda-roupa e o coloca na mala, arrumando com
cuidado. Surpreendentemente, alguém bate na porta de seu
quarto.
Mas... minha casa está vazia.
Posso entrar? a voz ligeiramente efeminada do vampiro Darius
é ouvida por trás da porta.
Quem é? com as mãos trêmulas, ele puxa
da arma no meio de suas coisas.
Um amigo. Um novo e muito solícito amigo...
Entre.
Com tanta gentileza... Darius pára por um instante
Não vamos precisar disso, não é verdade?
Apontar armas são um insulto entre membros da mesma família.
Com um gesto rápido, o vampiro desarma o velho.
Precisamos conversar. Sente-se.
Berzig obedece.
Você sabe o que eu sou?
O comerciante desvia os olhos, assustado.
Não.
Você é o suporte de que preciso, velho. Alguém
com o sangue de Drácula.
Não tenho o sangue de Drácula. Uma de suas herdeiras
me adotou.
Não importa. Ainda assim, o título e todo mal
que ele carrega são seus ele ergue o queixo do velho
com as mãos. E eu os quero pra mim. Enquanto falo com
você, meus generais estão armando uma pequena revolução
em Londres. Conflitos raciais, implicações nazistas,
tumultos... É disso que preciso para tomar o poder e conquistar
este país. Mas os vampiros são os seres mais supersticiosos
que existem. O que esperaria de seres que tremem ao ver uma cruz
ou um pouco de água benta? Para guiá-los, já
tenho dois artefatos preciosos: o cadáver do Barão
Sangue e a Lança do Destino, que outrora pertenceu a Hitler.
Só me falta uma coisa: a benção de Drácula.
Ou seja, a sua benção!
Os pensamentos de Berzig começam a ficar turvos, ligeiramente
deslocados. Ele sente um aperto no coração e põe
a mão sobre o peito. Parece um infarto.
Mary! Mary! Darius, assustado com a possibilidade de
perder seu fantoche, chama sua aliada. Rápido, mulher!
Não podemos deixá-lo morrer!

A visão do
contingente policial reforçado em uma das estações
ferroviárias de Londres, não deixa dúvida
sobre a nuvem de tensão que ainda paira sobre a cidade,
enquanto acontecem os conflitos envolvendo jovens brancos ingleses,
imigrantes asiáticos e um novo Partido Neonazista. Este
último, apontado como suspeito de fomentar a violência,
é acusado pela mídia de práticas satanistas,
embora seja, na verdade, formado por uma legião de vampiros.
Senhor, essa é uma bela cidade! o motorista de táxi
diz ao receber o dinheiro do homem louro.
Não tenha medo de uma retaliação minha,
amigo Constantine acende um cigarro. Eu sei que esta cidade
é uma merda.
Após bater a porta, o carro dá uma guinada violenta,
sendo apedrejado por alguns homens em meio ao carnaval macabro
de conflitos étnicos. Do outro lado da rua onde o mago
saltou, uma senhora paquistanesa fala ao telefone, enquanto dois
jovens começam a balançar a cabine e a gritar:
Paki! Wog! (**)
Do alto de um dos prédios, o vigilante londrino conhecido
como Union Jack surge e, em um salto, impede que a cabine seja
posta abaixo pelos jovens, arremessando um deles para bem longe
e segurando a mão do outro até virá-la completamente,
quebrando-a e obrigando o adversário a ficar de joelhos.
Suma daqui!
Assustado, o jovem começa a correr.
Union Jack... uma voz chama o nome com deboche. Nossa bandeira
viva!
Deixe-me passar.
Não sem antes me dizer que diabos está acontecendo
aqui pergunta Constantine, puxando o homem mascarado para longe
da chuva de pedras, tijolos e garrafas que começam agora.
Mas quem diabos é...
Alguém que vai tornar sua vidinha um inferno se não
começar a falar.
Muito bem... Pequenos grupos étnicos provocaram uns aos
outros; acham que tudo começou graças a uma manifestação
de um novo Partido Neonazista.
E a polícia?
Parece que estão mandando neste momento uns 900 homens
para conter os tumultos. Perdemos o controle depois que roubaram
vinte carros de uma loja da BMW e os incendiaram como forma de
protesto.
Merda! Sabe onde fica o foco mais próximo desse Partido?
Na Zona Sul da cidade, a uns poucos metros da Igreja Anglicana.

Ela está
aqui, senhor com o corpo inclinado, um dos servos de Darius
lhe oferece a Lança do Destino.
Ótimo! Samael fez muito bem em fazer com que enviasse
imediatamente a Lança.
A casa dele foi invadida informa Mary, desolada. E a polícia
já está a caminho.
Darius dá de ombros.
É apenas uma batalha. Ainda há um longo caminho
até o final da guerra -ele segura a lança, simulando
movimentos de ataque com ela. Não iremos perder dessa
vez. Só lamento que os ossos do Barão Sangue tenham
ficado na outra sede.
A porta da sede se abre e, com gestos largos, John Constantine
entra no local com a ausência de cerimônia que lhe
é característica. Darius e Mary, os amantes de um
velho inimigo seu, o Rei dos Vampiros, não deixam de se
surpreender com sua chegada.
Constantine? O banquete está completo.
Me conhece?
Com um salto de onde estava, Darius se aproxima do mago, apontando
a lança para sua garganta.
Eu pesquisei a seu respeito, Constantine. Sei bem quem você
é e o que devo fazer para destruí-lo. Só
não esperava que esse encontro acontecesse tão cedo.
Desculpe. Mas eu sou conhecido mesmo como um verdadeiro estraga-prazeres.
O que você pretendia invadindo a sede do Partido? Mary
se mostra ansiosa.
Simples. Eu comprei essa lança. Ela é minha.
O líder dos vampiros sorri, pressionando um pouco mais
a ponta da lança e deixando sair um filete de sangue.
Ela serve aos meus propósitos... Assim como quem a vendeu
ele gesticula uma ordem para que façam aproximar o prisioneiro.
A figura ainda abatida do antiquário surge, escoltada por
dois homens.
Esse senhor é praticamente da minha família afirma Darius.
Bem, ninguém é perfeito.
Você está morto.
Vamos fazer um acordo.
Nada de acordos.
Desse você vai gostar. Eu posso me juntar às fileiras
de seu partido. Como um verdadeiro vampiro. Me transforme.
Darius não consegue conter uma gargalhada.
Eu disse que o conhecia bem, mago. E não menti. Sei o
que aconteceria a mim se deixasse seu sangue de demônio
correndo em minhas veias. Isso já funcionou uma vez e não
funcionará novamente Darius afasta a Lança do
Destino da garganta de Constantine. Mas saiba que jogos me divertem.
E tenho imensa curiosidade em saber se é o mago tão
poderoso quanto afirma ser, pois para mim não passa de
um charlatão!
Também não acredito em vampiros e demônios.
Gosto de enxergá-los como resultados de alguma noite mal
dormida ou de sentimento de culpa pelas perversões que
faço... Nada que uma boa trepada não resolva.
Aceita o jogo?
Aceito.
Se ganhá-lo, terá a Lança que tanto deseja.
Ele irá comigo também Constantine se refere
ao velho.
Que seja!
Com um movimento rápido, Darius pega uma imensa pedra no
chão e a joga nas mãos de seu adversário.
Se é um filho de Deus e um mago poderoso transforma esta
pedra em pão!
Nah... Truque de criança.
Pois então me mostre.
De jeito nenhum afirma Constantine, indiferente, encarando
o outro nos olhos. Pensei que fosse realmente testar a minha
magia.
Não há melhor teste que esse! Faça!
Pois há um teste maior pelo qual você não
seria capaz de passar.
Você está me subestimando?
Cara, transformar em pão é fácil, não
tem nenhum problema, mas se você tem tanto poder, como diz
ter, transforma esta pedra que me jogou em poema!
Constantine a joga novamente para as mãos do vampiro. Darius,
desafiado, não vê alternativa a não ser fazer
uma pequena conjuração diante dos olhares desconfiados
de seus asseclas e de Mary.
Eu acendo a chama negra em honra ao Príncipe das Trevas,
pois sou o vampiro que arde em paixões na perseguição
de tudo o que deseja. E neste momento minha psique abandona as
restrições do Caminho da Mão Direita e com
Vontade eu me dedico a controlar o meu próprio destino.
Que pelo poder da minha Mão Esquerda, essa pedra se transforme
em poema!
Nada.
Suando muito, Darius repete as mesmas falas.
Nada acontece.
Como diria um amigo Rosacruz: tente outra vez Constantine
sorri.
Envolto em cólera, o vampiro repete suas palavras mágicas,
rasga a camisa provando seu descontrole. Para surpresa de todos,
a pedra começa a brilhar e a mudar de forma. A sonora gargalhada
do mago invade todo o ambiente. Tudo o que Darius faz é
transformar a pedra em pão.
Eu não te disse, velho? John Constantine pega o pão
e dá uma forte dentada, mastigando-o rapidamente. E ainda
por cima é um pão amanhecido.
Suma daqui, desgraçado suando pelo esforço que
fez, Darius enlouquece. Leve o que quiser, mas suma daqui!
Senhor! Mary segura seu braço.
Você quer que eu caia em desgraça diante dos meus
asseclas? sussurra o vampiro para sua aliada.
O mago se retira, levando finalmente a Lança do Destino,
acompanhado do velho herdeiro da fortuna do Conde Drácula.
No meio da escuridão surge Blade.
Você! O Caça-Vampiros aponta para o velho. Você não vai escapar de mim...
Deixe-o em paz, Blade Constantine fecha a passagem para o
negro Ele já sofreu demais. O que houve na outra sede?
A polícia invadiu, mas só encontrou a mim ele
abre um largo sorriso. Aqueles vampiros não pisarão
mais sobre a Terra.
Melhor assim. Ah, não sei se te interessa, mas ainda
tem um trabalhinho para você lá dentro...
Bom saber.
Enquanto Constantinte vê Blade caminhar em direção
à mais uma chacina de vampiros, os olhos de Berzeg apertam-se
várias vezes, um pouco umedecidos, querendo que aquelas
pessoas sejam apenas fruto de um sonho ruim.
No próximo número: John Constantine reencontra-se
com um velho amigo e relembra momentos de sua juventude punk.
:: Notas do Autor
* Após vários confrontos durante a 2ª Guerra
Mundial, o vampiro nazista conhecido como Barão Sangue
foi morto pelo Capitão América enquanto ameaçava
as ruas de Londres em busca de alimento.
** A primeira expressão é o diminutivo pejorativo
de Pakistani (paquistanês, em inglês). Wog é
uma ofensiva
referência a pessoas negras, recentemente introduzida no
vocabulário dos jovens ingleses.
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