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Jornada nas Estrelas - Primeira Diretriz #01

Por Carlos Orsi Martinho

Primeira Diretriz
Parte I

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Diário de bordo, data estelar 5971.5 — A Enterprise chegou há algumas horas ao Sistema Estelar de Bernal. Um dos onze planetas, Bernal IV, é de classe M; ele comporta uma população nativa, humanóide, prestes a estabelecer o que talvez seja a primeira civilização a surgir num raio de vários anos-luz. Este processo, verdadeiramente épico, é acompanhado por uma estação de pesquisas da Federação em órbita do planeta, a Villas-Bôas.

— E então, timoneiro? Que tal? — Kirk pergunta, uma insinuação de sorriso no canto da boca, ao mesmo tempo em que observa, no monitor principal, a constelação de pedras, blocos e rochedos de gelo espacial (cardume, ou quem sabe enxame, talvez fosse uma palavra mais apropriada, num certo sentido, pensa o capitão), alguns do tamanho de bolas de golfe, outros grandes como asteróides, que dança lentamente ao redor da Enterprise.

Num procedimento de aproximação normal, a nave já teria chegado a uma distância segura de teletransporte em relação à Villas-Bôas horas atrás, em vez de mergulhar nos anéis do gigante gasoso deste sistema. Mas Kirk não tem pressa. E o espetáculo é maravilhoso.

— Muito interessante, senhor. — responde Sulu, ocupado em manter a Enterprise nas proximidades da parte mais densa dos anéis sem permitir que a nave seja capturada pela gravidade do planeta gigante e, também, sem perturbar demais o movimento natural dos blocos de gelo — Não é sempre que tenho a oportunidade de participar de uma dança assim.

Kirk assente com um movimento da cabeça, o sorriso finalmente tomando conta de sua expressão.

"É bom ter um pretexto para apreciar a paisagem de vez em quando." — pensa ele.

Um som abafado às suas costas, como um suspiro, informa o capitão James T. Kirk de que alguém acaba de chegar à ponte, pelo turboelevador.

— Ora, ora, ora. — diz a voz de Leonard "Magro" McCoy, o médico de bordo e amigo pessoal do capitão — Na enfermaria, a vista não é tão boa assim!

— Se a enfermeira Chapel ouvir isso, ela vai ficar ofendida. — responde Kirk, assim que a figura de McCoy entra em seu campo de visão, à esquerda da cadeira de comando.

— Desenvolvendo uma certa apreciação pelo staff de bordo, senhor capitão? — pergunta McCoy, num sussurro, inclinando a cabeça em direção ao ouvido de Kirk.

— Você sabe que não, Magro. — responde o capitão, no mesmo tom — Você sabe que não.

De repente, os alto-falantes do sistema de segurança da nave, localizados na ponte de comando, emitem um estalo breve, como se um fio elétrico desencapado tivesse entrado em contato com um microfone sensível. McCoy sente uma vibração tênue subindo pelas solas de suas botas.

— Mas que diabo...?

— Quieto, Magro. — diz Kirk, voltando-se, no mesmo instante, para o posto de navegação e armas — Relatório, senhor Checov?

— Nada de mais, capitão. — responde o alferes — Apenas um pequeno contato no defletor de boreste. — e, depois de uma pausa — Gelo.

— Ei, Jim, quanto tempo vamos ficar por aqui? Nossa missão é em Bernal IV, um planeta classe M, e essa coisa lá embaixo, além de não ser da classe M, nem nos sonhos mais loucos de um demônio denebiano, é...

— Bernal VI. — completa o capitão, antes que o médico tenha tempo de concluir a frase — Você poderia imaginar que eu me enganei na leitura dos algarismos romanos.

— Engraçadinho.

— A bem da verdade, estamos aqui por sugestão do senhor Spock.

— Spock? Ora, e por quê? Ele quer descobrir do que o gelo é feito? Um de oxigênio para dois de hidrogênio, não é mesmo?

— Essa é a composição da água destilada, doutor. — diz o oficial de ciências da Enterprise, sem tirar os olhos do visor de dados do computador da nave, dispositivo que projeta uma luz azul, intermitente, sobre as feições quase satânicas do mestiço humano-vulcano — Gelo espacial dificilmente se reduz a apenas esses elementos básicos. E, embora eu esteja analisando a composição dos anéis de Bernal VI, o gelo em si não é, de maneira alguma, meu principal motivo de interesse.

— E qual seria, então, seu "principal motivo de interesse", senhor Spock?

— Artefatos alienígenas.

— Artefa...!

— Capitão! — antes que McCoy tenha tempo de expressar seu espanto, a tenente Uhura, oficial de comunicações, interrompe o diálogo entre médico e oficial de ciências — A estação Villas-Bôas pergunta se ainda vamos demorar.

— Senhor Spock?

— Algumas leituras a mais seriam úteis, capitão. — responde, impassível, o meio-vulcano — Inclusive, para a pesquisa conduzida pela estação. Eu não estava ciente de que a Villas-Bôas tinha pressa em receber os suprimentos que transportamos.

— Tenente Uhura...?

A oficial de comunicações estuda seu painel por alguns instantes, e em seguida se volta para Kirk. A expressão no rosto de Uhura é controlada, mas o capitão nota os olhos um pouco mais abertos que o normal, não exatamente arregalados mas, ainda assim, um sinal claro de espanto.

— Não tenho resposta, senhor. Eles deixaram apenas o computador transmitindo... É um sinal de emergência, capitão!

Diário de bordo, data estelar 5971.5 (suplemento) — Atendendo a um pedido de socorro, a Enterprise interrompeu a pesquisa científica paralela conduzida pelo sr. Spock nos anéis do planeta Bernal VI e, em poucos minutos, chegamos à distância de atracagem da estação Villas-Bôas. A tenente Uhura continua tentando estabelecer contato com os cientistas...

— Santo Deus, não há nada lá, Jim! — diz McCoy, apontando para a tela principal da ponte de comando, que mostra apenas espaço vazio, com o canto inferior esquerdo do monitor ocupado pela calota polar norte de Bernal IV.

Aparentemente ignorando o comentário do médico, Kirk se volta para Uhura.

— E então, tenente?

— Consegui contato de áudio com a doutora Hakiko!

— Nos alto-falantes, por favor.

Num instante uma voz de mulher, melodiosa, apesar de um tanto áspera — efeito menos da idade que do estresse pelo qual a doutora está passando, seja ele qual for, deduz o capitão — enche a sala de comando da Enterprise.

— Aqui é Hakiko Morogoshi, diretora do Projeto Villas-Bôas. — diz a voz — Enterprise, precisamos de ajuda! Um de meus assistentes desapareceu.

— Aqui é James T. Kirk, capitão da USS Enterprise. — diz Kirk, formalmente, esperando que o protocolo familiar da Frota ajude a mulher a se manter calma — "Desapareceu", doutora? Como assim? Certamente a Villas-Bôas não é tão grande, para alguém se perder aí dentro?

— Capitão Kirk, bem-vindo. — responde a voz de mulher — E o doutor Taylor-Kaspov não se perdeu na estação. — um instante de hesitação, em que Kirk quase pode ouvir a cientista respirando fundo, reunindo forças para o que vem a seguir — Nós o perdemos no planeta.

— No planeta?

— Capitão? — a nova voz, masculina, vem de um ponto as costas de Kirk. É Spock, que pede atenção do comando para a estação de Ciências da nave.

Kirk gira a cadeira de comando, de forma a poder encarar o vulcano. Spock se limita a arquear as sobrancelhas num gesto que, depois de quase cinco anos de convivência, o humano sabe ser altamente significativo. Ato contínuo, capitão faz um sinal brusco com a mão, e a tenente Uhura corta a transmissão de áudio para a Villas-Bôas; a Enterprise continua a receber o sinal da estação, mas passa a transmitir apenas ruído branco.

— Sim, senhor Spock? — diz Kirk.

— Nossos sensores indicam que praticamente toda a banda de comunicação da Villas-Bôas está voltada para uma área de cerca de três quilômetros quadrados na superfície do continente equatorial de Bernal IV.

— Isso explicaria o fato de não termos vídeo da doutora, mas apenas áudio, enquanto ela fala conosco?

— Afirmativo, capitão.

— Obrigado, senhor Spock. Uhura, reabrir canal de transmissão.

— Canal reaberto, senhor.

— Doutora Hakiko — diz Kirk -, a Federação nos havia informado que a missão da Villas-Bôas era observar à distância, e não interagir com os nativos. Como...

— Capitão, compreendo o que quer dizer, bem como a gravidade do que fizemos. Talvez toda a minha equipe seja expulsa da Academia de Ciências depois disso. Mas, no momento, minha preocupação é com um homem bom, um cientista jovem e competente, perdido num planeta que mal emergiu da barbárie. O senhor pode nos ajudar?

— Suponho que sim. Estou enviando uma equipe à Villas-Bôas neste instante, para avaliar a situação e agir imediatamente. Na verdade, eu estou indo com a equipe. Kirk desliga.

— Estou aguardando. Hakiko desliga. Obrigada, capitão.

— Magro, Spock, espero vocês na sala de transporte. — diz Kirk, já se levantando da cadeira de comando. Antes de se afastar de vez, no entanto, ele aperta um botão no braço direito da poltrona, aproxima a boca do painel embutido ali e diz:

— Engenheiro Scott, para a ponte. A nave é sua.

— Mas não há nada ali! — protesta McCoy, gesticulando na direção da tela principal — Jim, ser teletransportado já é horrível. Ser teletransportado para lugar nenhum é...

— Senhor Checov, polarização dos sensores visuais em quatro, oito, três, marco sete.

— Feito, capitão.

A imagem no monitor parece ondular por um instante, como o ar ao redor de uma miragem. No instante seguinte, a forma cilíndrica, familiar ao design de todas as estações espaciais da federação, enche a tela.

Já no turboelevador, Kirk encara McCoy e sorri:

— Aposto que você achou que o dispositivo de camuflagem que roubamos dos romulanos só teria aplicações militares, não é?

Diário pessoal do capitão, data estelar 5972.9 — Assim que Spock, Magro e eu nos materializamos a bordo da Estação Villas-Bôas, a doutora Hakiko correu a nos dar um breve — muito breve — resumo da situação: seu principal auxiliar na área de biologia, doutor Ievgeni Taylor-Kaspov, desaparecera enquanto envolvido em atividades "extra-oficiais" na superfície de Bernal IV. Não havendo nem um minuto a perder, o grupo avançado da Enterprise preparou-se da melhor forma possível e agora estamos prontos para partir em direção às últimas coordenadas da onde o doutor fez contato.

Nota: a doutora Hakiko parece bem consciente de que, assim que a emergência terminar, seus problemas com a Frota e a Federação estarão apenas começando.


A maioria das pessoas que sabe da natureza híbrida do oficial de Ciências da Enterprise, Sr. Spock, geralmente supõe que o lado vulcano de sua personalidade é o mais ativo, sempre alerta para conter os arroubos da metade humana. Há vezes, no entanto, em que é a faceta humana que deve se esforçar para manter a metade vulcana sob controle.

Como agora, por exemplo: o disfarce que Spock, Kirk e McCoy usam para se misturar entre os nativos de Bernal IV inclui, entre outros desconfortos, capas de couro e pêlo. Não exatamente couro, quimicamente curtido, mas apenas defumado. O cheiro e a proximidade com matéria animal morta seria mais do que a maioria dos vulcanos poderia suportar, afinal são vegetarianos há gerações e empatas por natureza — empatia essa moderada e contida pela doutrina da lógica pura, mas ainda assim, presente.

Como distração, Spock volta sua mente para questões científicas de caráter mais abstrato.

— Fascinante! — diz o oficial de Ciências, olhando ao redor.

Ele, Kirk e McCoy se materializaram em meio à sombra de uma meia-dúzia de árvores, nas proximidades da muralha da cidade que o tradutor universal chama de Quebracostas: a única cidade do planeta.

"Muralha", claro, é um termo relativo: uma construção de barro e pedras de dois metros de altura por meio metro de espessura, encimada por mais dois metros de estacas pontiagudas de madeira. Ao redor da construção há uma clareira e, para além da clareira, a floresta barulhenta. Figuras humanas, indistingüíveis de Kirk ou McCoy, mexem-se em meio à mata, entram e saem de barracas toscas estendidas por entre as árvores e gritam.

— O que há de fascinante nisso, seu orelhudo? O cheiro, por acaso? — queixa-se McCoy.

— A doutora Hakiko nos informou que o doutor Taylor-Karpov interessa-se bastante pela teoria dos Semeadores. Posso ver como este planeta deve ter representado uma... como é o termo?... tentação forte demais. Para um humano, claro.

— Semeadores... Era por isso que estávamos vasculhando os anéis de Bernal VI em busca de artefatos alienígenas! Droga, Spock, você não pode acreditar nisso: que a vida no Quadrante Alfa foi "semeada" por alguma raça antiga...

— E por que não, doutor? Humanos, klingons, vulcanos, andorianos... Isso sem falar nas outras raças que conhecemos durante nossas viagens... Não lhe parece curioso que em todo planeta Classe M habitado, exista, também, uma espécie dominante com dois braços, duas pernas, visão estereoscópica de dois olhos, cinco dedos em cada mão...

— Ora, Spock, há uma explicação muito mais simples, muito mais... — McCoy saboreia a palavra antes de pronunciá-la — ...lógica para isso. Chama-se "evolução convergente". Como baleias e golfinhos, hein?

— Mais simples, sim. — responde Spock — Mais lógica? Tenho dúvidas. Capitão? — diz Spock, voltando-se, subitamente, para Kirk — Tenho algo no tricórder que certamente teria escapado aos sensores de longo alcance da Villas-Bôas ou da Enterprise.

— Sim, senhor Spock?

— Estou captando traços de plástico no ar... material sintético, plastite protética, de uso médico. Inconsistente, é lógico, com o nível de avanço da população local.

— Jim! — McCoy consulta o tricórder médico — A ficha desse tal Ievgueni diz que ele tem um polegar protético de plastite. O esquerdo. Deve ser ele!

— Que direção, senhor Spock?

— Dali. — diz o oficial de Ciências, apontando na direção geral da muralha — De dentro da cidade.

— Certo. — diz Kirk, preparando-se para iniciar a caminhada em torno do perímetro da cidade — Vamos...

— Capitão. — diz Spock, ajustando os controles do tricórder. Uma das sobrancelhas do vulcano se eleva, algo que Kirk se acostumou a ver nos raros momentos em que o oficial de Ciências decide expressar humor ou apreensão.

No mesmo instante, o pensamento cruza a mente do capitão:

"E não há nada de engraçado por aqui."

Depois de uma pequena pausa, Spock completa:

— Estou captando um alto conteúdo de oxigênio... Carbono... Jim, a plastite está derretendo. Queimando.


Continua!



 
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