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Jornada nas Estrelas - Primeira Diretriz #02

Por Carlos Orsi Martinho

Primeira Diretriz
Parte II

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Diário de bordo, data estelar 5974.3, engenheiro-chefe Montgomery Scott registrando — O capitão, o sr. Spock e o doutor McCoy estão na superfície do planeta Bernal IV há pouco mais de uma hora, em busca de um cientista desaparecido da estação Villas-Bôas. Segundo a diretora da Villas-Bôas, doutora Hakiko, o homem havia deixado de fazer contato cerca de duas horas antes da chegada da Enterprise. A pedido da doutora, movemos a Enterprise para dentro do campo de camuflagem que envolve a estação. Agora, assim como a Villas-Bôas, também estamos invisíveis.

Os portões de Quebracostas estão abertos, e não há guardas. Os únicos vigias da entrada da cidade estão presos por cordas às pilastras de madeira que ladeiam a entrada: turíbulos de bronze, queimando uma mistura de palha e alguma substância pastosa. A combustão produz uma fumaça picante, fétida.

— Incenso. — diz Spock, analisando a leitura do tricórder. A tarefa de rastrear a fonte do traço de plastite no ar havia sido assumida por McCoy — A despeito do cheiro, inofensivo. Decoração interessante...

— Santo Deus, Spock, não temos tempo...

— Calma, Magro. — Kirk intervém — Estamos indo em busca do cientista. Mas podemos falar enquanto andamos, não? E agora, Spock, você poderia nos dizer o que há de "interessante" naqueles rabiscos feitos no bronze?

— Parecem ser sinais astronômicos, capitão. — responde Spock — Ou, melhor dizendo, astrológicos. Esta é uma cultura, ao que tudo indica, bastante ligada às estrelas. Não ficaria surpreso se aquela torre — Spock aponta para a estrutura que desponta, no centro da cidade, por sobre as casas e a própria muralha — fosse um tipo de observatório. É por isso, acredito, que a estação usa um dispositivo de camuflagem?

Kirk assente:

— Os antropólogos não querem que a aparição súbita de uma "nova estrela" no céu vire sinal de mau agouro. Ou bom. Ou o que quer que seja. Mas não se trata do equipamento romulano padrão. É perfeitamente permeável ao teletransporte, por exemplo.

Enquanto caminham pelas ruelas da cidade, que parece organizada num sistema de minúsculos "bairros" de casas de barro e madeira dispostos em círculos concêntricos — "tabas ao redor de tabas", Kirk pensa — o grupo avançado da Enterprise encontra diversos outros "turíbulos", cestos, ou grades, de forma quase esférica, feitos de bronze batido, queimando seu estranho incenso e decorados com signos estelares.

As casas que têm turíbulos diante de suas portas se mantêm fechadas. A cidade em si parece morta: há pouca gente nas ruas, e a maioria se mantém em silêncio. McCoy, com o tricórder travado na busca por plastite e DNA terrestre, resiste à tentação de fazer uma varredura ampla na saúde da população, mas seu instinto profissional lhe diz que há algo muito, muito errado acontecendo por ali.

Ao se aproximarem do centro de Quebracostas, os três oficiais da Frota Estelar ouvem gritos — uma voz que o tradutor universal que cada um carrega logo traduz para linguacódigo, o idioma artificial hiper-simplificado que dá conta dos conceitos comuns a todas as espécies inteligentes conhecidas: morte, vida, amizade, sexo, fome, medo e uma dúzia de outros.

— É um castigo! — brada a voz, emitida por um homem alto, posicionado sobre um palanque diante da grande torre do centro da cidade — Quebracostas era o lugar dos puros... a taba dos que deixaram a floresta... dos primeiros entre os celestiais...

— Fascinante. — diz Spock — "Taba-dos-que-deixaram-a-floresta". Eles parecem não ter uma palavra para "cidade".

Com um gesto, Kirk pede silêncio.

— Mas nós nos misturamos... não nos contentamos em viver na taba dos deuses, e abrimos nossos portões. As estrelas, então, enviaram seu castigo...

Há algumas dezenas de pessoas reunidas ali, ouvindo o discurso. A maioria parece ter lá suas dúvidas, mas uma boa parte dá sinal de concordar com a tese do orador.

— Jim! — McCoy sussurra — O traço de plastite vem de uma dessas cestas de bronze com incenso. E... — os olhos de McCoy se arregalam em sinal de negação e descrença. A palavra seguinte deixa os lábios do médico sem que a boca se mova de forma perceptível — Droga!

— Que foi, Magro?

— Bem, eu ampliei o espectro de análise, e... em pelo menos um terço dos cestos, de todos os cestos, há, segundo a leitura de meu tricórder, traço de tecido humano... ou, para não ofender as suscetibilidades de Spock, tecido da espécie dominante aqui. O que é isso? Uma cidade de canibais, em dia de churrasco?

— Elementar, doutor. — diz Spock — Eles estão enfrentando uma praga. A peste.

Diário de bordo, data estelar 5974.7, engenheiro-chefe Montgomery Scott registrando — Recebemos do capitão um conjunto de coordenadas para teletransporte na superfície de Bernal IV. Na verdade, a poucos metros de onde nosso grupo avançado estava. O capitão Kirk, o sr. Spock e o doutor voltaram à nave por alguns instantes, apenas o suficiente para podermos retransmiti-los para lá. Mal chegaram a se materializar na plataforma do transportador, e lá se foram.

Diário pessoal do engenheiro-chefe Montgomery Scott, data estelar 5974.8 — Fico imaginando se um dia poderemos tirar alguém de um lugar e colocar essa mesma pessoa em outro, sem o estágio intermediário de passagem pela sala de transporte. Será que basta aumentar a capacidade de memória do transportador?

O cesto onde queima a plastite marca, como Spock havia deduzido, a porta do casebre onde está o doutor Ievgeni Taylor-Kaspov. Os três membros do grupo avançado materializam-se do lado de dentro da construção precária, depois de haverem desaparecido por detrás de uma ruína de barro queimado, os restos de uma habitação, aparentemente, abandonada.

Kirk optou pelo teletransporte, em vez de correr o risco de atrair a ira das pessoas que ouviam o orador na Praça do Observatório — como o tradutor universal batizara o local onde o estranho fazia seu discurso — por violar o tabu que parecia envolver as casas marcadas pelo queimador de incenso: nenhuma daquelas portas havia sido aberta durante a permanência da equipe da Enterprise em Quebracostas, e a casa onde queima a plastite fica bem de frente para a praça.

McCoy encontra o cientista deitado sobre um monte de palha, febril, delirante, com minúsculas chagas negras nas axilas e um toco hediondo, uma massa de sangue em vias de coagulação e traços de pus, coberta de moscas, no lugar da mão esquerda. Ao lado do catre de palha há duas peças de cerâmica: uma moringa cheia de água morna e um prato fundo contendo cereais e um tipo qualquer de farinha.

— É uma variedade de peste, sem dúvida. — diz McCoy, depois de manipular o pequeno tricórder de diagnóstico por sobre o corpo quase inerte — Além disso, há choque, induzido pela amputação da mão... ocorreu há menos de quatro horas, eu diria. E já começa a infeccionar. Desidratação. Um princípio de desnutrição.

— Capitão. — diz Spock, que ignorara o paciente e se pusera a vasculhar os cantos escuros do casebre. O oficial de Ciências está agachado junto a uma das paredes de argila — Encontrei o comunicador do doutor Ievgeni.

— Muito bom, Spock.

O cheiro dentro do casebre é quase insuportável. Ievgeni está praticamente nu, coberto de suor e imundo nos genitais e na parte de trás das coxas, entre as pernas.

Ato contínuo, o doutor injeta duas ampolas no braço do paciente: uma de analgésico-antitérmico-sedativo, uma de antibiótico. Depois de pensar um pouco, o médico decide usar uma terceira seringa, carregada com uma solução reidratante e nutritiva. Ievgeni Taylor-Kaspov pára de delirar, e cai no que parece ser um sono profundo. Usando um pequeno spray e um par de luvas especiais, McCoy começa a limpá-lo, esfregando-o de forma vigorosa e, pelo que Kirk consegue depreender, bastante científica. O tecido das luvas, que pareciam pouco maiores que quadradinhos de gaze quando guardadas no kit médico — uma caixinha, por sua vez, pouco menor que a palma da mão de McCoy — se expande em contato com ar.

— É seguro movê-lo, Magro?

O sorriso de McCoy é forçado. O médico não pára de trabalhar, esfregando a sujeira, tomando cuidado especial com o toco do braço, enquanto responde:

— Pestes costumam ser transmitidas por parasitas externos, Jim. Pulgas, no caso da peste bubônica da Terra, ou certos aracnídeos microscópicos, parecidos com ácaros, no caso da Grande Praga Andoriana. Ou piolhos, como no Flagelo de Klingon. Esse é o tipo de bicho que o descontaminador automático do teletransporte elimina com uma mão nas costas.

— Obrigado por pensar na segurança da nave, doutor. Mas, no momento, eu estou mais preocupado com o nosso colega aí. — diz Kirk, apontando para o cientista adormecido.

McCoy dá de ombros: — O teletransporte não pode limpar o que já está no sangue. Senão, teríamos a cura para a gripe comum. Seria melhor deixá-lo descansar um pouco. Recuperar as forças. Voltar do choque. A mudança brusca de cenário...

— Magro, ele pode descansar o quanto for preciso na enfermaria. E vamos ter uma equipe com macas esperando, assim que voltarmos à nave. Mas é melhor sairmos daqui. Não acha?

McCoy se prepara para protestar: o paciente precisa de tempo para reconstituir suas forças. Os remédios precisam de tempo para fazer efeito. E, no fundo de seu coração, Leonard McCoy não confia em teletransportes. Muito menos, quando se trata de uma situação de vida ou morte.

Mas o médico se contém: eles estão num barraco infecto, num planeta estranho, sob condições sanitárias pré-históricas, e correm o risco de serem descobertos a qualquer momento. O capitão tem razão, reconhece. É preciso partir o quanto antes:

— Certo, Jim. Vamos levá-lo.

James Kirk retira o comunicador, preso ao cinto de velcro que usa por debaixo do disfarce de "nativo" e, com um golpe experiente do pulso, faz saltar a tampa. Uma fração de segundo depois um ruído familiar, mistura de estalido mecânico com blip de computador, informa-o de que o canal com a Enterprise está aberto.

— Scotty. — diz o capitão — Quero uma equipe médica, com macas, de prontidão na sala de transporte.

— Todos estão bem, capitão? O senhor, o doutor, o senhor Spock?

— Sim, Scotty, tudo bem com o grupo avançado. — a preocupação do engenheiro-chefe, expressa num tom que se pretende paternal, mas que na verdade é quase infantil, como um menino que tem medo de que o pai não volte para casa, nunca deixa de tocar Kirk — Mas teremos um hóspede em não muito boas condições. Avise a doutora Hakiko que seu colega foi resgatado, embora não são e salvo. E agora... assim que o pessoal das macas estiver posicionado... quatro para subir.

Diário de bordo, data estelar 5977.1 — Há uma hora, o doutor McCoy realizou a transferência do paciente para a estação Villas-Bôas. Nosso médico acredita que seria melhor para o doutor Ievgeni se ver em um ambiente familiar quando recuperar a consciência. O implante da mão protética provisória foi bem-sucedido, assim como a descontaminação do corte resultante da amputação. Já a cura da peste parece mais difícil, embora McCoy, que conta com a ajuda da oficial de ciências biológicas da Villas-Bôas, senhorita Paula Kowalsky, se mostre otimista.



— Um problema interessante, capitão. — diz Spock, assim que Kirk termina de ditar o registro do diário.

— O quê, senhor Spock? A cura da peste?

— Dificilmente, capitão. Minha... fé nos talentos do doutor McCoy — a sobrancelha esquerda de Spock sobe significativamente quando o vulcano pronuncia a palavra "fé" — segue inabalável.

— Ora, Spock! Você mesmo já havia definido "fé" como sendo uma crença insustentável no irracional.

— Definição que mantenho.

— Certo, Spock. — Kirk ri — Pode parar. Magro não está aqui agora para esgrimir com você. Mas, se a cura não é o "problema interessante", então o que é?

— O que fazer com ela.

— Vamos tratar o doutor Ievgeni. Qual o problema aí?

— Veja, capitão: se um terráqueo pode pegar a doença, então uma cura que funcione em um humano provavelmente também funcionará num homem, mulher ou criança de Bernal IV. Nós teremos a chave para a salvação do planeta em nossas mãos.

— E a Primeira Diretriz nos impedirá de usá-la. — completa Kirk, a voz desprovida de qualquer traço do humor e do entusiasmo que a animara até então.

— Precisamente.


Continua!



 
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