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Jornada nas Estrelas - Primeira Diretriz #03

Por Carlos Orsi Martinho

Primeira Diretriz
Parte III

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Diário pessoal do capitão, data estelar 5991.8 — A cura para a doença contraída pelo professor Ievgeni Taylor-Kaspov na superfície de Bernal IV foi descoberta há dois dias, e hoje o cientista recebeu alta da enfermaria. A situação já estaria totalmente sob controle, não fosse o fato de Paula Kowalsy, a oficial de ciências biológicas da Estação Villas-Bôas, continuar a realizar testes e simulações com o soro desenvolvido para curar seu colega. Temo que ela esteja procurando uma cura definitiva para a peste que atinge a população de Quebracostas. O que seria...

— Seria o quê, Jim? Você está com medo do progresso científico?

— Droga, Magro! Você não devia entrar assim nos aposentos do capitão, sem bater...

— Eu bati, mas ninguém respondeu. Parece que você realmente adora o som da própria voz! E como a porta estava destrancada...

O riso de Kirk é curto e forçado:

— "Adora o som da própria voz". Isso é um diagnóstico, doutor?

— Sem dúvida.

— E qual a receita?

— Cerveja romulana. Uma dose e meia a cada 24 horas. Ou tudo de uma vez, nos finais de semana, ao gosto do freguês.

— Magro...

— Vamos lá, Jim. O que é que está roendo você?

— Essa cura para a peste. Se ela realmente surgir. Se realmente funcionar nos alienígenas. Percebe que é muito improvável, eu diria mesmo impossível, que venhamos a poder usá-la?

— Jim! Você está dizendo que vai permitir, vai permitir deliberadamente, que milhares de formas de vida inteligentes continuem a sofrer e a morrer, mesmo que...

— Não se esqueça da Primeira Diretriz, Magro.

— Ao diabo com a Primeira Diretriz! A coisa humana a fazer...

— Magro, você sabe como o trabalho assalariado, o homem livre do povo, surgiu na Terra? Na Europa, pelo menos?

McCoy não responde; limita-se a grunhir.

— Há uma teoria que fala da peste negra. Ela matou tantas pessoas que, de repente, não havia mais servos em número suficiente para atender aos senhores feudais, para lavrar os campos. E os senhores não podiam mais mandar torturar ou matar os servos que se recusavam a trabalhar na lavoura, porque o homem, o indivíduo capaz para o trabalho, havia se transformado numa mercadoria valiosa. Muito valiosa. Então...

— Você está dizendo que se alguma espécie alienígena tivesse aparecido na Terra com a cura para a peste, nós estaríamos até hoje empurrando arados puxados por asnos, doze horas por dia, sete dias por semana, e agradecendo aos céus pela oportunidade, é isso? Deus, Jim, isso soa como algo que Spock diria!

— Já lhe ocorreu que Spock geralmente está certo?

Antes que McCoy tenha tempo de responder, a voz feminina da tenente Uhura enche o aposento:

— Capitão, a chefe da Estação Villas-Bôas quer falar com o senhor.

Kirk hesita por um mero instante antes de pressionar o botão do comunicador na cabeceira da cama. Nesse segundo, o doutor Leonard McCoy se imagina capaz de ver a depressão causada pelo peso, metafórico, do comando tomar forma entre os ombros do amigo.

"A pressão deve ser enorme." — pensa o médico — "A angústia de só saber se se está fazendo a coisa certa quando aparecerem os resultados, quando já for tarde demais e os espertalhões saírem correndo atrás de alguém para culpar. Não é muito diferente da cirurgia. Só que a Medicina é uma ciência sólida. Já o comando é o quê? Uma arte?"

A impressão de fragilidade, que talvez só exista mesmo nos olhos do doutor, dura apenas isso, um mero instante. Assim que o botão do intercomunicador é pressionado e a face familiar de Uhura surge na tela, James T. Kirk é mais uma vez o capitão, o misto de homem de ação e jogador, imbuído de uma fé inabalável nas próprias decisões.

— Pode transferir, tenente. — diz Kirk.

— Certo, capitão.

O rosto de Uhura desaparece, sendo imediatamente substituído por uma outra face feminina, mais velha, de traços orientais e expressão severa.

— Capitão Kirk?

— Estou aqui, doutora.

— Gostaria de convidá-lo para uma reunião, para discutir algumas descobertas recentes feitas por nossa equipe. Com a colaboração inestimável do pessoal da Enterprise, é claro. Principalmente seu médico-chefe...

— Olá, doutora. É bom vê-la de novo. — diz McCoy, por sobre o ombro de Kirk.

A expressão de Hakiko Morogoshi é tensa, carregada — temerosa, Kirk diria. A mulher se permite apenas o mais tênue dos sorrisos ao reconhecer a presença do médico:

— Igualmente, doutor. — responde ela.

— E quais descobertas seriam essas? — pergunta Kirk — "Como se eu já não soubesse" — emenda, mentalmente.

— Temos alguns dados antropológicos novos. Sobre o significado do ritual de amputação da mão dos doentes, por exemplo.

Kirk assente com um movimento curto da cabeça: notando que o primeiro sinal da peste é uma chaga escura na palma de uma das mãos do indivíduo contaminado, os líderes de Quebracostas criaram o ritual da amputação e da incineração.

— Interessante, doutora. Que mais?

— A cura, capitão. Temos certeza absoluta de que podemos acabar com a peste no planeta.

— Estou a caminho. Eu gostaria, claro, que o doutor McCoy e meu oficial de Ciências, o senhor Spock, revisassem os resultados.

— Sem dúvida.

— Então, nos vemos em breve. Kirk desliga.

Diário de bordo, data estelar 5991.15 — Spock e o doutor McCoy entregaram seus laudos há cerca de duas horas, e o resultado é incontestável: o soro, derivado pela doutora Paula Kowalsky a partir da cura administrada a Ievgeni Taylor-Kaspov, realmente pode não só deter o avanço da peste dos nativos de Bernal IV, como também imunizar os que ainda não foram afetados; trata-se de um poderoso estimulante do sistema imunológico. Spock anexou a seu relatório uma série de considerações sobre a Primeira Diretriz que não vejo, em sã consciência, como ignorar. Minha decisão a respeito causou compreensível revolta entre os tripulantes mais jovens da Bernal IV, e me vi constrangido a colocar a sala de transportes da estação sob guarda constante de dois oficiais de segurança da Enterprise. Uma consulta formal sobre o caso foi apresentada ao Comando da Frota, para ser submetida ao Conselho da Federação, e por enquanto só nos resta aguardar uma manifestação oficial dos políticos.

— O senhor deveria ter confiscado todo o estoque de soro, e posto guardas no laboratório de biologia.

Exceto por Kirk e Spock, a sala de reuniões da Enterprise está vazia. As luzes estão em intensidade mínima, oferecendo uma penumbra suave que mantém a expressão no rosto de James T. Kirk oculta, indefinida. Meia hora atrás, o capitão dera por encerrada mais uma reunião, a quarta desde que a consulta formal ao Conselho da Federação fora despachada pela tenente Uhura. Todas as reuniões realizadas após a primeira haviam sido requisitadas pela doutora Paula Kowalsky, e de todas elas Paula saíra ferida, indignada, à beira das lágrimas.

Paula Kowalsky é uma bela mulher, de grandes olhos castanhos e cabelos ruivos, com quadris e coxas bem marcados pelo traje cinza-prateado do cientista civil. Há algo do herói romântico no peito de Kirk, algo que o faz se sentir desconfortável ao contrariar uma bela mulher de olhos úmidos. Principalmente quando essa mulher vem lhe implorar permissão para salvar vidas.

— Spock, a Villas-Bôas é uma estação de pesquisa científica. Não me parece certo pôr o trabalho dos cientistas sob intervenção militar. Não é isso que a Frota Estelar faz.

— Sentimentos muito louváveis, capitão. Mas eu me pergunto...

— O senhor não tem nenhuma dúvida sobre o que estamos fazendo, senhor Spock? Condenando à morte milhares, talvez milhões, de indivíduos inteligentes?

— Não estamos "condenando" ninguém, capitão. A existência da peste em Bernal IV independe da presença ou ausência de pessoal da Federação neste sistema. É provável que situações similares estejam ocorrendo em milhares de outros mundos, muitos dos quais sequer constam de nossos mapas. Assumirmos a responsabilidade sobre cada ocorrência do tipo não é somente impossível, como também altamente ilógico.

— Não estamos em "milhares de outros mundos", Spock. Estamos aqui. Não é desumano, imoral, ilógico, negar ajuda aos que estão ao nosso alcance?

— O tipo de "ajuda" a que você se refere, Jim — Spock agora se dirige, impulsionado por um sentimento surgido no lado humano de sua personalidade, ao amigo Jim Kirk, e não ao oficial-comandante da Enterprise -, sempre tem um preço. Nós poderíamos salvar vidas, mas ao custo de destruir uma civilização; todo um modo de vida deixaria de existir antes de ter a oportunidade de desenvolver-se.

— Poderíamos ajudar em segredo.

— E estaríamos manipulando a história desse povo sem a autorização dele. Isso lhe parece melhor?

— Vamos esperar para ouvir o que a Federação tem a nos dizer. Isso é simplesmente grande demais...

De repente, a penumbra suave da sala de reuniões é substituída pelo vermelho forte, intermitente, do alerta da nave.

— Alerta de segurança! Sala de transporte! Alerta de segurança! Rápido! — diz a voz do engenheiro-chefe, saindo pelos alto-falantes.

Kirk ativa o comunicador da sala de reuniões e grita:

— Scotty! O que foi?

— O teletransporte foi ativado, senhor! Não poderia, não deveria ter sido. Não sem que me avisassem primeiro. Eu estou... estava... fazendo ajustes, testes, e agora é impossível prever...

— Sala de transportes! Sala de transportes!

— Nenhum contato, capitão. — diz Spock, levantando o rosto de uma das faces do monitor de três telas localizado no centro da mesa da sala de reuniões — Ninguém responde.

— Scotty, encontre-nos lá! Spock, vamos!

Ao chegarem à sala de transportes, Kirk e Spock encontram a entrada cheia de oficiais de segurança, alguns portando extintores de incêndio. O painel de controle do transportador já não está mais em chamas, mas alguns dos comandos foram derretidos.

O alferes Kyle, responsável do turno pelo teletransporte, está caído no chão. McCoy está ajoelhado a seu lado.

— Ele foi drogado, Jim. Sedativo leve. Pela mucosa bucal.

— Ele bebeu alguma coisa?

— O mais provável é, beijou. Alguém.

— Kowalsky!

— Kowalsky.

— Ela desceu ao planeta, certamente. — diz Spock, impassível.

Tentou descer é mais provável, senhor. — diz Scott — Eu estava fazendo algumas pesquisas sobre o controle de destino do teletransporte, para permitir a transferência de matéria de um ponto a outro, sem baldeação...

— Muito interessante, senhor Scott. — diz Spock, uma ponta de admiração na voz.

— Obrigado, senhor. Enfim, eu havia pedido a Kyle que me avisasse, sempre, pelo menos cinco minutos antes de enviar ou receber algo. Essa moça, se foi mesmo ela...

— Capitão, consegui as coordenadas para onde ela se transportou, ou tentou transportar-se. Na superfície de Bernal IV, sim. Há menos de dois minutos. — informa Spock, estudando o painel semidestruído do transportador.

— É possível que ainda esteja no mesmo lugar, então.

Kirk corre até um dois painéis de comunicação na parede, ativa-o e grita:

— Uhura!

— Sim, capitão?

— Transmita as seguintes coordenadas para o nosso pessoal na sala de transportes da Villas-Bôas, e peça para que eles tragam de volta o que quer que esteja lá. Entendido?

— Entendido, capitão.

— Ótimo. Kirk desliga. — e, voltando-se para McCoy — Magro...

— Sim, Jim?

— Só faria sentido ela descer se estivesse levando a cura. Isso é possível?

— Ela ter o remédio consigo? Não vejo por que não. Ela poderia estar andando com uma ampola escondida na roupa desde a primeira vez em que veio à Enterprise falar com você. Ela pode até estar com a substância no próprio sangue. Com um kit médico portátil, não seria difícil extrair uma amostra e sintetizar mais.

A voz de Uhura surge do comunicador na parede:

— Capitão, tenho contato com nosso pessoal no transportador da estação. Eles trouxeram alguém...

— Ótimo! Transfira, Uhura.

— Capitão? Aqui é o alferes Sardat. Nós... nós...

— Fale, alferes! Vocês trouxeram uma mulher a bordo?

— Sim... ela... ela...

— É a doutora Paula Kowalsky?

— Bem... parece... talvez seja, mas...

— "Parece"? "Talvez"? O que está acontecendo, alferes? Fale!

— A identificação é difícil, senhor. Elas está vestida como uma cientista, mas o rosto... as mãos...

— Prossiga, Sardat! O que há no rosto? Nas mãos?

— Estão... cobertos de manchas... tudo coberto... de pústulas, senhor.


Conclui na próxima edição!



 
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