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Jornada nas Estrelas - Primeira Diretriz #04

Por Carlos Orsi Martinho

Primeira Diretriz
Parte IV

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Diário de bordo, data estelar 6001.7 — Finalmente, o sr. Spock conseguiu curar a doutora Kowalsky, assim como o alferes Sardat, o doutor McCoy e todas as outras pessoas que tiveram contato com ela. Segundo Spock, Kowalsky e os outros foram atingidos por uma versão mutante, extremamente virulenta, da praga de Bernal IV. Felizmente, a fisiologia meio-vulcana de nosso oficial de ciências revelou-se um fator sólido de imunidade.

— Eu... não sei explicar. — diz Paula Kowalsy, deitada num dos catres da enfermaria da Enterprise. Ela está de perfil, e apóia o peso do corpo no cotovelo esquerdo. Olhando com atenção, Kirk nota os pontos, ao redor dos olhos e da boca, onde a pele é mais brilhante: as cicatrizes da peste — Achei que tinha programado o transporte direito, mas quando me materializei... bem... o chão estava... mais para baixo. Entendem?

— O senhor Scott, nosso engenheiro-chefe, estava fazendo algumas experiências de calibragem. — diz Spock — Além disso, erros milimétricos no ajuste de altitude são comuns com operadores inexperientes.

— Eu caí — continua Kowalsky — e... o vidro se partiu. Depois... acordei aqui.

— Virulência extrema, Jim. Extremamente perigosa. — afirma Spock.

Kowalsky arregala os olhos:

— Eu me pergunto... o que pode ter causado isso?

— Você causou isso, doutora. — diz Kirk, silenciando o protesto de McCoy com um gesto impaciente da mão — O vidro da sua "cura" se quebrou na queda, e o "organismo mitigado" presente no soro foi o causador...

— Não! Não pode ser! — ela respira fundo, engole em seco, reprimindo o que a parte mais centrada e lógica de si mesma reconhece como uma crise histérica em progresso — Doutor McCoy, o senhor trabalhou no soro junto comigo! Ele é a cura...

— Ele era a cura. — diz McCoy, arqueando os ombros, sem conseguir olhar diretamente nos olhos da mulher — Até entrar no teletransporte. De alguma forma, talvez devido às experiências de Scotty, talvez por algum outro motivo, o feixe do transportador teve um efeito mutagênico. Que... que...

— O que o doutor está tentando dizer, doutora, é que o efeito mutagênico do teletransporte também afetou a senhora. — diz Spock.

— A mim? Como?

— Você pode estudar os laudos por si mesma se quiser, Paula. — diz McCoy, depois de fuzilar Spock com os olhos — Mas, ao que tudo indica, você jamais poderá ter filhos.

Cinco minutos depois de Kirk, Spock e McCoy terem deixado a enfermaria, Paula Kowalsky começa a soluçar, baixinho. Quando, três minutos depois, a enfermeira Chapel a abraça, ela passa a chorar de verdade, emitindo um lamento baixo, agudo, sem palavras, mas cujo significado seria perfeitamente claro em qualquer ponto da galáxia.

Diário do oficial de ciências Spock, data estelar 6001.20 — Telemetria mostra que a peste mutante se espalha pela cidade de Quebracostas em ritmo alarmante. A civilização está a um passo de desaparecer da superfície de Bernal IV, e é impossível calcular quantos séculos, ou milênios, serão necessários para que a fantástica experiência desse povo seja retomada. Se fosse capaz de emoção, neste momento eu estaria tomado de profunda tristeza... que nossos melhores esforços para aprender e, então, ajudar os nativos, tenham redundado nisto.

Xinatraua, sua única mulher sobrevivente e as duas filhas afastam-se, o mais rápido que podem, de Quebracostas, do lugar-de-muitos-viverem, expressão que, algum dia, talvez viesse a dar origem a uma palavra equivalente a "cidade" no idioma local. O mais provável, no entanto, é que a expressão venha ser substituída por lugar-de-muitos-morrerem, e que o idioma comum deste continente ganhe, antes, uma palavra nova para "cemitério".

Deliorga, a mulher de Xinatraua, quer olhar para trás. Ele a proíbe. À força de safanões, o homem mantém sua última reprodutora olhando em frente, sempre em frente. Não é correto observar Quebracostas. Os nômades da floresta estão certos: lugar-de-muitos-viverem é lugar de doença. Quando uma praga se espalha por um clã, a parte saudável simplesmente cavalga para longe e, na maioria das vezes, sobrevive. Mas em lugar-de-muitos-morrerem, não há longe. E a doença está em toda parte.

Claro, antes havia os loucos que falavam do lugar-de-muitos-viverem como taba-dos-que-deixaram-a-floresta, que achavam que o problema de Quebracostas estava no excesso de contato com os de fora.

Quando, na visão de Xinatraua, era exatamente o contrário. Qual a utilidade de passar a noite na Clareira-de-ver-Estrelas ("Praça do Observatório", para o tradutor universal da Federação), olhando para o céu? Esperando mensagens? Que mensagens? Eles falavam da Grande Pedra Negra que veio do céu e ensinou o primeiro homem a construir sua morada, mas Xinatraua sabe que os verdadeiros deuses estão na terra. É da terra que brotam a água e o alimento; é dos ocos de rocha que vêm as vozes da Sabedoria. Tal é a fé dos pais de Xinatraua, tal é a fé que ele tentou ensinar às mulheres e filhas.

Deliorga leva mais um safanão, agora mais fraco — Xinatraua sente-se zonzo. É o calor, diz a si mesmo. A umidade. O cansaço.

Por que, ele se pergunta, a única sobrevivente tinha que ser tão rebelde? A semente do povo do deus da terra não pode acabar, e é por isso que Xinatraua insiste em trazer Deliorga consigo. Ele precisa de filhos, e só tem filhas. Mas com as meninas ele pode comprar passagem com os nômades. E cada uma delas pode ensinar a fé ao futuro marido, ou proprietário, enquanto Xinatraua busca descendência do próprio sangue.

Sangue que agora parece pesar-lhe nas veias, como se tivesse sido substituído por lama.

Deliorga se volta mais uma vez, e é com dificuldade que Xinatraua ergue a mão enfaixada, o braço coberto de peles, para voltar a golpeá-la.

O gesto não chega a se completar, no entanto; Xinatraua, profeta e filho de profetas, sente um estranho formigar na base do pescoço e, no instante seguinte, jaz sem sentidos no chão.

O homem, a mulher e as duas meninas — pré-adolescentes — não dão trabalho ao estranho, que subjuga a família sem necessidade de violência. A mata é densa, e o estranho tem uma capacidade enorme para concentrar-se na tarefa, em qualquer tarefa: se ele decide caminhar silenciosamente pela mata, é provável que nem as formigas conseguirão sentir-lhe a vibração dos passos.

O estranho retira algo de seu cinto — um tubo prateado metálico — e pressiona uma das pontas do objeto ao pescoço de Xinatraua, primeiro, e em seguida de Deliorga e de cada uma das duas meninas. Cada toque do metal é seguido por um silvo abafado.

Terminada essa tarefa, o estranho guarda o cilindro de volta no cinto e retira dali dois outros objetos, uma caixa e um pequeno bastão luminoso, com um padrão giratório, hipnótico, na base.

Esse bastão produz um ruído que não é bem um ruído; parece-se, talvez, com um fragmento de música. Quando a música do bastão termina, o estranho olha para a caixa e, embora seu rosto permaneça impassível, exceto por um pequeno tremor da têmpora esquerda, junto à ponta da sobrancelha, qualquer um que conheça bem o senhor Spock saberá, por este pequeno sinal, que ele está profundamente desapontado com a leitura do tricórder.

— Negativo, capitão. — diz o vulcano, menos de um minuto depois, em seu comunicador — O novo soro continua a se mostrar inerte.

— Droga, Jim! — na ponte de comando da Enterprise, McCoy desce correndo da estação de ciências, onde vinha monitorando as atividades de Spock, e se coloca ao lado da cadeira de comando — Eu é que devia estar lá! O soro é bom! Spock deve estar fazendo...

— Algo errado, doutor? — a voz de Spock emerge, límpida, do alto-falante no braço da cadeira — Não creio. Minhas qualificações como médico certamente não se comparam com as suas, mas sou perfeitamente capaz de aplicar injeções. E devo lembrá-lo, doutor, de que suas chances de sobrevivência por aqui seriam muito baixas.

— Eu poderia descer, estou imunizado!

— Não temos certeza de que a imunização funciona.

— Funciona! Cem por cento!

— Só a bordo da Enterprise.

— Senhores! — Kirk ergue a voz, interrompendo a discussão — Temos uma chance de salvar o povo de Quebracostas. Temos até autorização para fazê-lo, vinda diretamente do comando da Frota, e apenas porque foi nossa interferência que colocou esse povo à beira da extinção, para começo de conversa. — o olhar do capitão varre a ponte, e mesmo sabendo que a culpa no episódio cabe a Paula Kowalsky, nenhum tripulante consegue deixar de se sentir um pouco embaraçado — Preciso que os senhores me dêem algo além dessas discussões inúteis!

— Spock está certo. — diz McCoy — O velho soro é inútil contra a praga mutante, e o novo soro só funciona a bordo.

— Será culpa dos transportes, outra vez?

— Nós nem temos certeza se a culpa foi dos transportes da primeira vez. — responde McCoy — Scotty jura que suas experiências, sozinhas, jamais causariam mutações desse tipo. Eu revi as tabelas de recomposição genética, e me sinto inclinado a concordar com ele.

— Além disso, capitão — diz Spock -, eu desci pelo teletransportador da Estação Villas-Bôas, onde o senhor Scott não mexeu em nada.

— Bem, e o que há entre nós e Bernal IV, além da atmosfera do planeta e o maldito transportador?

— Boa pergunta, capitão. — diz Spock, um quê de admiração genuína na voz — Excelente, eu diria.

— Desligar o campo de camuflagem? O senhor está louco, capitão?

— E por que, exatamente, eu estaria, doutora Hakiko?

— Eu aprendi minha lição, capitão. Brincar com a Primeira Diretriz é perigoso.

— Sem dúvida.

"Talvez o canal de comunicação entre a Enterprise e a Villas-Bôas esteja filtrando o meu sarcasmo" — pensa Kirk — "ou a velha doutora é mesmo dura na queda."

— O senhor — continua Hakiko — está bem ciente de que a cultura urbana de Bernal IV é uma cultura de adoradores das estrelas. Toda a cidade foi construída ao redor de um observatório...

— Eu sei, doutora. Eu estive lá.

— Então, o senhor imagina o impacto que o surgimento de uma, não, duas novas estrelas no céu teria sobre a psiquê da coletividade...

— Se não fizermos algo logo, doutora, não haverá mais nenhuma "coletividade" para sustentar essa sua "psiquê".

— O campo de camuflagem? O senhor está certo disso?

— Melhor ainda: meu oficial de ciências está.

— O campo é polarizado, doutora. — diz Spock, erguendo-se respeitosamente de sua estação — Essa polarização afeta o feixe transportador. O efeito é estatisticamente irrelevante em organismos complexos, mas pode causar perturbações em seres unicelulares, ou procariontes.

— Foi o campo de camuflagem que desencadeou a praga mutante?

— Não só. Nesse aspecto, o campo contou com uma certa colaboração do teletransporte da Enterprise, que passava por reparos. Mas é ele que, agora, está matando as células do novo soro.

Com os dedos indicador e polegar da mão direita, a doutora Hakiko pressiona, com força, o alto do nariz, na base da testa. Pelo alto-falante da cadeira de Kirk, é possível ouví-la respirar fundo.

— Certo. Vou desligá-lo. Prossigam.

Xinatraua acorda se sentindo bem. Muito melhor do que vinha se sentindo há dias. Sua última lembrança era de medo: medo de que a nova praga finalmente o atingisse, de que a fraqueza que sentia fosse causada por algo mais que cansaço e irritação. Por isso ele mantinha os braços e as mãos sempre cobertos. Para não ver as más notícias, se más notícias houvesse.

Agora, com um misto de esperança e receio, ele desfaz a atadura primitiva: o braço está intacto! O sangue em suas veias corre livre, não mais lamacento.

Em algum lugar no fundo de seu cérebro, um lugar que Xinatraua identifica com o coração, surge o conceito: estive doente, ou quase doente, e fui curado.

O homem se ajoelha para agradecer aos deuses da terra.

É uma prece rápida: ao seu lado, dormem a mulher e as duas filhas. Ele as despe, e examina. Nenhuma pústula. Ou nunca estiveram com a praga, ou também foram ambas curadas.

Ao longe, Xinatraua ouve um trovão. Depois, outro. Olha para o céu: há nuvens se acumulando. Elas correm, parece, na direção da onde ele veio, na direção de Quebracostas.

"Mais um motivo para me afastar daqui." — pensa — "O lugar é realmente amaldiçoado."

Tomada a decisão, ele, no entanto, se sente incapaz de implementá-la. Em vez disso, acorda a mulher, as filhas e — a um só tempo, eufórico e contra a vontade — empurra-as todas, aos safanões (safanões fortes, mas mais suaves do que se lembra de jamais ter usado) de volta para o lugar-de-muitos-viverem.

Epílogo

Diário de bordo, data estelar 6002.0 — Graças à criatividade dos senhores Checov e Scott, conseguimos fazer com que o soro que, esperamos, irá curar a praga mutante de Bernal IV obtivesse dispersão máxima sobre a área afetada, a "mancha urbana" de Quebracostas, e ainda garantir, com razoável margem de segurança, que nem a Enterprise e bem a Estação Villas-Bôas passarão a ser adoradas como novos deuses do céu pelos nativos: usando os fêisers da nave para aquecer grandes massas de água do oceano, segundo cálculos meteorológicos precisos, e o teletransporte para "semear" as nuvens como várias toneladas do nosso soro, criamos uma verdadeira chuva de remédio sobre a cidade e parte da floresta circundante. Infelizmente, para evitar danos ecológicos maiores, tivemos que produzir uma chuva relativamente pequena — e cobrir uma área menor que a que seria desejável...

— Fascinante, capitão.

Kirk assente com a cabeça:

— Eles estão correndo para debaixo da chuva!

— É o que a telemetria indica, capitão. — diz Checov, extasiado, do console dos sensores — Uma massa humana considerável...

— Confirmado, senhor. — diz Uhura, nas comunicações.

— Mas, como... a Villas-Bôas não tem nada a ver com isso? Mesmo?

— De maneira nenhuma, capitão. — confirma Spock — A última transmissão vinda da Villas-Bôas foi o bon voyage que a doutora Hakiko enviou há trinta minutos, conforme já comunicado pela tenente Uhura.

— Ela deve estar doidinha para ver a Enterprise pelas costas, hein, Jim?

— Ela tem lá seus motivos, Magro. Você sabe.

Parte do bom humor desaparece do semblante do médico:

— É. Eu sei.

— No entanto...

Kirk gira rapidamente a cadeira de comando para encarar o oficial de ciências.

— "No entanto", senhor Spock?

— No entanto, há um tipo estranho de energia sendo transmitida para o planeta...

— Fonte, Spock!

— Calculando... um ponto nos anéis do gigante gasoso... Bernal VI.

— Ei, capitão, nós estivemos lá!

— Verdade, senhor Sulu. Spock, o que é essa fonte?

— Os sensores de longo alcance têm dificuldade... mas talvez se eu isolar... aqui: há algo que não reflete nenhuma sondagem. Normalmente, qualquer objeto tocado pelo feixe sensor refletiria algo de volta, mas nos anéis há algo, um espaço... que simplesmente engole tudo que enviamos para lá. Como um buraco negro, mas não detecto ondas de gravidade. As proporções... é um retângulo. Um retângulo perfeito, que não reflete nenhuma onda, nenhuma luz!

— Um monolito negro, Spock? — pergunta McCoy.

— Acho que essa seria uma definição moderadamente adequada, doutor.

— Os russos não descobriam algo assim na lua da Terra, no século XXI? — pergunta Checov.

— Isso nunca foi provado. — responde Sulu — Mas foi uma das bases da primeira teoria dos "semeadores".

— A transmissão parou, capitão. — diz Spock — O ponto negro... o "monolito", como o doutor quis chamá-lo, desapareceu. Mas antes disso, enviou um sinal para fora do sistema...

— Então, é isso. Spock, transmita sua melhor estimativa sobre as coordenadas de destino do sinal para o navegador.

— Feito, capitão.

— Senhor Sulu?

— Sim, capitão?

— Trace o curso. Dobra fator quatro, ao meu sinal.

— Curso traçado, capitão.

— Ativar.




 
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