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Por
Fernando Lopes
O
Preço da Resposta
Carl Morton entrou
pensativo no banheiro do hotel. A noite com Sophia tinha sido
péssima, mas a satisfação sexual da amante
estava longe de ser sua maior preocupação. Entrou
no banho pensando nos eventos das últimas semanas. Desde
que se tornara o braço direito do chefão Sam Johnson,
há 17 anos, nunca tinha visto a situação
tão fora de controle. O velho sempre soubera jogar suas
cartas, tirar proveito de situações adversas. Não
era chamado de Negociador à toa. Os anos de atuação
no submundo lhe renderam o controle sobre a maioria das autoridades
de Hub City. Um forte esquema de corrupção, sustentado
principalmente por suborno e chantagem de membros das mais variadas
esferas de poder, haviam transformado Johnson em um intocável.
Até hoje. Até uma ameaça sem rosto ameaçar
o império do velho chefe.
Morton jamais tinha ouvido falar no tal Questão, mas Johnson
atribuía ao vigilante a responsabilidade pela seqüência
de perdas sofridas por sua organização nos dias
anteriores. O enfraquecimento na estrutura de poder levou as máfias
chinesa e italiana a ganhar terreno. Fornecedores suspenderam
a remessa de drogas e armas e focos internos de insurreição
começam a ganhar corpo. Mas afinal, quem é o tal
Questão? Onde ele consegue informações? Como
um único homem conseguiu fazer tanto estrago? E a pergunta
principal: seria a hora de saltar do navio e salvar a própria
pele?
Tais pensamentos ocupavam a cabeça de Morton quando a porta
acrílica do box abriu-se violentamente. Uma mão
enluvada agarrou seu pescoço, lançando-o com força
contra a parede fria. Sua cabeça girou com a dor provocada
pelo impacto. Seus pés escorregavam no chão molhado.
Manteve a consciência por tempo suficiente para ver a mão
do sujeito de sobretudo azul vindo em direção ao
seu nariz. E para perceber que seu agressor era um homem sem rosto.

Acordou sentindo
um frio intenso. Tentou inutilmente levantar-se. Estava amarrado
com as mãos e pés para trás, ainda nu, na
varanda do quarto. Pelas grades, viu a cidade 18 andares abaixo.
Sentiu medo. Olhou para dentro e viu o Questão sentado
em uma cadeira, aparentemente olhando em sua direção.
O nariz, inchado, doía terrivelmente. Tentou entender o
que acontecia:
Quem é você? O que quer?
Quem eu sou não importa. Quanto ao que quero... bem,
digamos que quero propor um negócio.
Você é louco, seu filho da puta? Você invade
meu quarto, me agride e diz que quer propor um negócio?
Quando eu sair daqui eu vou arrancar sua língua pelo rabo!
E de onde você tirou a idéia de que vai sair daqui?
Morton sentiu-se subitamente mais gelado do que já estava.
Deixa de palhaçada, cara, e me tira daqui. Você
não sabe com quem tá se metendo!
Sim, eu sei respondeu o estranho Com o capacho de Sam Johnson.
Aliás, é por isso que estou aqui.
Um súbito lampejo de inspiração lhe forneceu
a resposta.
Você é o sujeito que anda bagunçando as
nossas operações! O tal Questão!
Como eu disse, isso não importa. A pergunta é:
está disposto a negociar?
Negociar o quê, seu escroto? Quando eu te pegar, não
vai sobrar nada para negociar!
Resposta errada.
O Questão levantou-se da cadeira e caminhou na direção
de Morton, que se debatia como um porco. Agarrou-o pelos pés
e caminhou para a borda da varanda.
Peraí, cara, o que você vai fazer? O que você
vai fazer? Pára com isso, pelamordedeus!
Como se não ouvisse, o vigilante ergueu os 83 quilos do
corpo de Morton acima da cabeça. O criminoso sentiu como
se o vento fosse o próprio sopro gelado da morte.
Pára, pára, eu faço o que você quiser!
gritou Morton, apavorado.
Por baixo da máscara, Vic Sage sorriu. Virou-se na direção
do quarto e arremessou seu refém no chão.
Agora você está agindo como um homem sensato. Eis
o que você vai fazer...

... deixou surpresa
a opinião pública. Carl Morton era secretário
do chefe do Conselho Municipal, Sam Johnson, há 17 anos.
Suas denúncias ao promotor Robert Gallagher podem não
só acabar com a carreira política de Johnson, mas
mandá-lo para a cadeia pelo resto da vida. Morton, que
entrou para o Programa de Proteção para Testemunhas,
afirma ter provas ligando o chefe do Conselho ao tráfico
de armas e de drogas, contrabando, extorsão e homicídios.
Entre os acusados estão também...
Sage lia o texto com sóbria satisfação. Era
chegada a hora de conversar com o senhor Johnson pessoalmente.
Naquela noite, Sam Johnson analisava alguns documentos em seu
escritório. Parou quando o homem alto, usando sobretudo
azul e chapéu, entrou no aposento.
Ah, então é você... Sam não parecia
surpreso ao ver o Questão surgir das sombras Imaginei
que viria.
Chegou a hora de encarar a Justiça, Johnson.
Ouvi dizer que ela era cega, não sem rosto.
A Justiça tem muitas faces...
Se você me disser que ela pode enxergar no escuro, vou
vomitar...
Havia alguma coisa muito errada. O velho estava calmo demais para
alguém encurralado. Por baixo da máscara, Sage tentava
entender que espécie de jogo ele estaria fazendo, que carta
escondia na manga.
Numa coisa você está certo: chegou a hora de encararmos
nossos destinos, senhor... Questão, não é?
Ou posso chamá-lo de... Vic?
Um calafrio percorreu a espinha do vigilante. Talvez a partida
não estivesse ganha, afinal. Permaneceu em silêncio,
esperando o próximo movimento do adversário.
Deve estar se perguntando como descobri seu pequeno segredinho.
Não foi tão difícil. Vocês, mascarados,
têm a tola pretensão de manter suas vidinhas medíocres
fora do alcance das conseqüências de suas escapulidas
noturnas. Como se isso fosse possível... Fiquei sabendo
de sua existência há alguns anos, por intermédio
de um... "amigo" comum. Lembra-se do reverendo Hatch?
"O filho da puta deve estar rindo no inferno, a essa altura",
pensa Sage.
Ele me disse que tinha se livrado de um certo "empecilho
sem rosto" anos atrás. Na mesma época, Vic
Sage sumiu sem deixar rastro por um ano. Quando voltou, o Questão
reapareceu, apenas para desaparecer novamente pouco tempo depois,
quando o mesmo senhor Sage deixou a cidade. Nos dois anos seguintes,
alguns amigos ouviram rumores de aparições esporádicas
de um vigilante sem rosto em várias cidades do país,
por onde o senhor, coincidentemente, passou. Então o Questão
ressurge em Hub City na mesma época que você. Não
é preciso ser um grande gênio para fazer a conexão.
Sage permaneceu em silêncio.
Nem um elogio? Ou uma piadinha? Um comentário espirituoso,
talvez? Pensei que todos vocês, heróis, fizessem
dessas coisas...
Está acabado, Johnson. Nada do que faça ou diga
vai livrá-lo da cadeia. Onde espera chegar com esta palhaçada?
Sim, senhor Sage, está acabado. Mas não da maneira
que imagina.
O que quer dizer?
Antes de lhe explicar, uma dúvida: por que eu? O que
o levou a se voltar contra mim?
Vic pensou em seu amigo Jerry Wilson, mas conteve-se.
Você é um câncer para esta cidade, Johnson.
Corrompe tudo o que toca. Já era hora de alguém
enfrentá-lo.
Curiosa escolha de palavras... Sabe, senhor Sage, há
algum tempo descobri que tenho um tumor no cérebro. Inoperável.
Deve me mandar para o inferno em menos de um mês, se os
médicos estiverem certos. E não há nada que
eu possa fazer. Não posso subornar, chantagear ou matar
ninguém. O mal que me consome vem de dentro de meu próprio
corpo. Há dois anos meu filho e a esposa morreram em um
acidente de automóvel. Pista escorregadia. Mais uma vez,
ninguém para culpar, para espancar, para ferir. O único
a sobreviver foi o pequeno Timothy, meu neto.
O Questão acompanhava com curiosidade a narrativa, procurando
entender onde Johnson queria chegar.
Quando eu morrer, este garoto estará só no mundo.
Ele está começando, enquanto eu estou no fim. Decidi
então que ele deveria ter um começo melhor do que
o meu. Transferi todos os meus imóveis e negócios
legais para ele quando seus pais morreram, e empenhei-me para
aumentar meu patrimônio.
Por isso a insistência na nova lei de zoneamento?
Isso mesmo. Quando for aprovado, ele vai triplicar o valor dos
imóveis de meu neto. E ainda vai ajudar a cidade, acredite
ou não. É um bom projeto.
Por que está me contando tudo isso?
Ora, pensei que fosse óbvio, senhor Sage Johnson levantou
a pistola que mantinha apontada para o Questão desde o
início da conversa Não é isso o que todo
vilão faz ante de matar o herói?
Sage calculou a distância e o que teria de fazer para desarmar
Johnson sem ganhar um buraco em sua máscara. Tinha neutralizado
os guarda-costas e achou que o velho estaria desarmado. Errou.
Se cometesse um novo erro, seria o último. Nesse momento,
o acaso interveio em seu favor, trazendo o pequeno Timmy até
o escritório.
Vovô, o que você está fazendo?
Timmy, saia já daqui! gritou Johnson, esquecendo o
Questão momentaneamente.
Aproveitando a distração, Sage saltou na direção
do oponente, desarmando-o com um chute. A pistola descreveu uma
curva no ar e bateu no solo, disparando acidentalmente. Tanto
Sage quanto Johnson ficaram estáticos ao ver o sangue brotar
do peito do garoto.
Não!
Timmy!
Os dois homens correram na direção do menino, que
respirava com dificuldade.
Seu maldito! Você matou meu neto!
Não me culpe por seus erros, Johnson. Chame uma ambulância,
agora!
Eu vou matar você, vou matar você!
Johnson correu para a pistola e apontou-a para o Questão,
que carregava o garoto em seus braços.
Vamos, termine o serviço! O que é a vida de seu
neto além de mais uma entre as incontáveis que você
arruinou?
A pistola tremia nas mãos de Johnson. Lentamente, ele abaixou
a arma. Os anos e a culpa pareciam pesar toneladas sobre seus
ombros.
Por favor, salve meu neto.
Sage saiu correndo com a criança nos braços, em
busca de um carro na garagem. Sozinho, Johnson sentiu uma crescente
angústia corroer suas entranhas. A imagem da criança
ensangüentada não saía de sua mente. A arma
pesava em suas mãos. Ajoelhou-se junto à poça
de sangue, com ar distante. Molhou o dedo no líquido viscoso
e escreveu algo no assoalho. Em seguida, colocou a pistola na
boca e puxou o gatilho.
Quando os policiais chegaram na casa, encontraram o corpo de Johnson
estirado no chão. Ao seu lado, no piso, as palavras "perdoe-me".

O corpo do
chefe do Conselho Municipal, Samuel Johnson, foi encontrado na
noite de ontem no escritório de sua casa. Aparentemente,
Johnson suicidou-se com um tiro na boca. Cerca de meia hora antes
da chegada da polícia, o neto do empresário, Timothy
Johnson, deu entrada no Hospital Geral de Hub City com um ferimento
a bala no peito. O menino foi levado ao hospital por um desconhecido,
que sumiu em seguida. Após uma operação de
emergência que durou seis horas, os médicos conseguiram
salvar a vida do menino, que passa bem. Sam Johnson vinha sendo
investigado por...
Sage lia as palavras mecanicamente, como se estivesse fora do
próprio corpo. Deixou a emissora após o jornal e
foi ao cemitério. A lápide de Jerry Wilson permanecia
exatamente no mesmo lugar, sob a chuva, tão abandonada
quanto em sua visita anterior. Se Vic esperava algum contentamento
ao vingar a morte do amigo, não conseguiu. Em vez disso,
tinha um pedra de gelo no peito.
Encontrou o que procurava? perguntou o estranho
de preto, que mais uma vez pareceu surgir do nada ao seu lado.
Sim.
E valeu a pena?
Não.
Você é um homem valoroso, Vic Sage, mas luta
pelos motivos errados.
E existem motivos certos?
Essa, meu caro, é uma questão que só
você pode responder.
Sage olhou novamente para a lápide. Quando se voltou, o
estranho tinha desaparecido. Desta vez, porém, o repórter
não deu importância ao desaparecimento do Vingador
Fantasma. Apenas ergueu a gola do sobretudo e partiu, ciente de
que sua busca por respostas está longe de acabar.
:: Notas do Autor
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