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Por
Fernando Lopes
Escolhas
Hmm... Isso parece doloroso.
De onde você tirou essa idéia?
Rodor torceu a boca num arremedo de sorriso. Os anos de convivência
fizeram com que ele se acostumasse ao humor cínico do homem
que, sentado no chão, colocava os pés na parte de
trás do pescoço. De toda a extenuante rotina de
exercícios de seu amigo Vic Sage, os de flexibilidade eram
os mais difíceis de observar. Sempre lhe davam a impressão
de que algum osso ou tendão se partiria irremediavelmente.
Tentou atenuar o mal-estar puxando assunto.
Vi que andou "se exercitando" ontem à noite
também. Quer falar sobre isso?
Não há o que dizer... Um pobre diabo desesperado
e bêbado estrangulou a mulher. Eu o prendi. Eu o espanquei,
também. Não necessariamente nessa ordem.
Sentiu-se melhor?
Sim. Não. Talvez. Quem se importa? Os mortos permanecem
mortos, não importa o que se faça.
E você acha que poderia ter evitado isso.
Eu não "acho". Eu poderia. Os sinais eram evidentes.
Acontece todos os dias. Eu sabia como ia acabar e, mesmo assim,
deixei acontecer. Estava ocupado demais na minha guerrinha pessoal
com Sam Johnson
Sage deitou-se de bruços e torceu o corpo até
que seus pés tocassem o chão ao lado de sua cabeça.
Rodor desviou os olhos e passou a olhar uma revista ao acaso.
Não acha que ela mesma poderia ter chegado a essa conclusão?
Até que ponto não foi vítima de si mesma?
Pelo que você me contou, ela apanhava do marido há
um bom tempo. Você a avisou.
Não foi o bastante. Provavelmente ela acreditava que
as coisas iriam melhorar.
E não é o que fazemos sempre?
Algumas pessoas -Sage levantou-se, amargo precisam ser salvas
da própria fé.
Você não pode salvar a todos, Vic. Ninguém
pode. Além do mais, como salvar quem não quer ser
salvo?
Eis uma boa questão, Tot.

Duas horas mais tarde, nos estúdios
da KBEL, Sage trabalhava numa das matérias da edição
da noite. Seu amigo e gerente da emissora, Richard Cameron, entrou
na sala de edição.
Olá, Vic. Soube do que aconteceu com Consuela?
Sim, eu soube Sage sentia a cabeça doer Triste, não?
Se é. Coitada... Bom, é a vida. Ocupado?
Não muito. Já estou no fim. Precisa de alguma
coisa?
A prefeita vai dar uma coletiva. Está a fim de cobrir?
Tudo bem. Vic pensou em Myra Connely, sua ex-amante e atual
chefe do Executivo de Hub City O que você não me
pede rindo que eu não faço chorando?

... e isso é tudo, senhores.
Obrigado pela presença.
Vic esperou o burburinho tradicional que marca o fim de toda entrevista
coletiva terminar para entrevistar Myra em particular. Cortesia
entre jornalistas e ex-amantes. Fez as perguntas no tom incisivo
de sempre, recebeu as respostas mais honestas que a situação
permitia. Tudo muito profissional. Terminada a gravação,
despachou o cameraman de volta para a emissora e disse que iria
em seguida.
Toma um café? perguntou Sage.
Vamos ao meu gabinete. Sei
quanto ganha um repórter. Às vezes, não dá
nem para o café... Myra sorriu. Estava linda como sempre.
Esperaram a copeira deixar a sala depois de servir o café.
Vic afastou a lembrança de Consuela Rodriguez estirada
no chão de seu apartamento.
Aconteceu alguma coisa? Myra percebeu a inquietação
no rosto de Sage.
Nada importante... Como vão as coisas?
Tão bem quanto poderiam estar... Você é
que não me parece muito bem.
Tão visível assim?
Eu te conheço... E não é de hoje.
Myra parou de falar, subitamente constrangida. Sage olhou para
a mulher à sua frente. Um dia eles dividiram a mesma cama,
até que a "morte" os separou. Viram o melhor
e o pior um do outro. Hoje, estavam sentados frente à frente.
Uma muralha intransponível chamada vida os separara.
É, não é de hoje.
Não quero falar sobre isso. Não devia ter tocado
nesse assunto.
Algum dia teremos de encarar isso. Não se pode fugir
da vida.
Quem disse? ela o encarou com olhos tristes.
Questão interessante... Tenho pensado nisso ultimamente.
Resolvi rever minhas prioridades, repensar as coisas. Andei fazendo...
escolhas das quais me arrependi. Fico pensando se não seria
a hora de mudar de rumo.
De escolhas erradas eu entendo. Às vezes não dá
para voltar atrás...
Embora ela não soubesse, Vic entendia o subtexto da frase.
Anos atrás, Myra Connely matara um homem. Talvez um dos
mais sujos e sórdidos lunáticos a passarem pela
Terra mas, ainda assim, outro ser humano. Sob a máscara
do Questão, Sage assistiu quando ela traspassou o corpo
do reverendo Hatch com uma faca, em um momento de fúria
contra o canalha que ameaçou sacrificar sua filha num ataque
de loucura. Ela fez o que ele mesmo se recusou a fazer. Escolhas.
Fáceis ou difíceis, temos de conviver com elas.
Certas decisões não têm retorno. Outras,
podem ser revistas.
Talvez. Mas não hoje. Não aqui. Não agora.
Entendo. É hora de ir.
Despediram-se com um aperto de mãos. Seus olhos não
se cruzaram. Uma questão para ser resolvida outro dia.

Naquela noite, depois do jornal,
Sage decidiu ir mais uma vez ao apartamento do comissário
Izzy O'Toole. Num beco escuro, liberou o gás que fixa a
máscara de pele sintética em seu rosto e altera
a cor de suas roupas e cabelo. Mais uma vez, Vic Sage deu lugar
ao Questão.
Estou começando a achar que você está apaixonado
por mim. O'Toole exibiu seu característico mau humor
ao ver o vigilante sem rosto entrar. Não demonstrou surpresa,
já que as visitas do Questão vinham se tornando
freqüentes. Ainda vou botar uma grade nessa janela.
E privar-se do prazer de ver meu rosto? Duvido.
Soube do seu "presentinho" para o Sorensen. Pensei
que você só se preocupasse com peixes grandes como
Johnson.
Pensou errado. Sage sentiu-se profundamente contrariado com
o comentário.
O que quer agora?
Não sei bem... Estou pensando em pendurar o casaco...
Algum motivo em especial?
Nada específico... Apenas uma sensação
de que as coisas não estão funcionando como deviam.
Se quer saber, pra mim parece viadagem...
Por quê? Pensei que gostaria da notícia. Vai poupar
o dinheiro da grade.
Você não tem graça nenhuma, se quer saber...
O caso é que chega uma hora na vida em que a gente precisa
escolher entre o que é e o que pode ser.
Sage entendia perfeitamente do que Isadore O'Toole estava falando.
O homem à sua frente já fora o policial mais corrupto
do mundo. Um dia, durante o maior tumulto da história da
cidade, decidiu mudar de vida depois de ser salvo da morte pelo
Questão. Acabou se tornando o policial mais honesto de
Hub City e alcançando o cargo de comissário.
Pensei que morreria antes de ver Izzy O'Toole filosofando.
Filosofia é coisa de viado. Que nem essa tua súbita
vontade de se aposentar. Puro charminho. Se você decidiu
sair por aí batendo em bandido é porque achou que
devia fazer isso. Mas se pensou que ia acertar sempre, só
porque está supostamente do lado dos bonzinhos, tinha mais
é que quebrar a cara mesmo. Se bem que, no seu caso...
Pode ser. O Questão parou alguns segundos e dirigiu-se
novamente para a janela. Talvez você esteja certo. Ou
não. Mas que foi divertido vê-lo filosofando, isso
foi.
"Viadagem", pensou O'Toole, enquanto fechava a janela.

O Questão preparava-se para
livrar-se da máscara quando viu, à distância,
um rosto conhecido. "Ora, vejam só quem está
por aqui...", pensou. "Acho que vou ver como ele está
passando."
Cinqüenta metros à frente, Ethan Rowlings caminhava
distraidamente. Vinha cantarolando enquanto pensava em sua nova
vida e em como as coisas tinham melhorado desde que deixara New
Orleans, há pouco mais de dois meses.
Ev'ry breath you take / Ev'ry more you make / Ev'ry bond
you break / Ev'ry step you take...
I'll be watching you.
Ethan virou-se para ver quem era o dono da voz abafada que interrompera
a canção. Sentiu o sangue fugir de seu rosto. Seu
coração disparou ao rever o homem sem rosto que
quase o espancara meses antes, em New Orleans.
Como vai, Ethan?
Peraí-cara-pelamordedeus-eu-tô-limpo...
Se está, então não tem do que ter medo.
Cara, juro por tudo que é mais sagrado. Como é
que você me achou aqui?
Eu sei de tudo, Ethan. Sage divertia-se com a situação
inusitada que o acaso lhe proporcionara.
Bom, então deve saber que eu estou do lado certo agora...
Na verdade, eu queria mesmo te achar outra vez.
Sério?
É... Rowlings parecia constrangido Estive pensando
no que você me falou naquele dia. Sobre morrer e tal...
E cheguei à conclusão de que talvez você estivesse
certo.
A resposta surpreendeu o Questão. Não esperava que
a prensa surtisse algum efeito em Rowlings. Normalmente não
resolvia nada.
Depois daquele dia, passei a prestar mais atenção
nas coisas. Millie, as crianças... Acho que passei a valorizar
mais o que tinha conseguido na vida. Peguei o que tinha e me mudei
para cá. Ouvi dizer que a cidade estava melhorando e pensei
que talvez fosse a oportunidade perfeita para recomeçar.
Arranjei uma vaga de corretor de ações num grande
escritório e tenho me virado bem. Até voltei a freqüentar
a igreja! Bom, resumindo, eu queria te agradecer.
Fico feliz que tenha feito a escolha certa, Ethan. Sage sentia-se
um pouco confuso com tudo aquilo. Espero que continue assim.
Ah, claro, pode deixar. E agradeça ao seu chefe por mim.
Chefe?
Claro! Você não é meu anjo da guarda?
Sage controlou uma súbita vontade de gargalhar.
Adeus, Ethan. Cuide-se. E lembre-se: eu estarei de olho.

Aristotle Rodor percebeu o ar menos
preocupado de Vic quando ele chegou em casa.
E então, Vic? Como foi o dia?
Interessante, Tot. Um dia muito... interessante.
O que aconteceu?
Digamos que eu resolvi uma questão em aberto.
disse Vic, pegando o sax.
Rodor não entendeu nada, mas evitou novas perguntas. Limitou-se
a ouvir o amigo tirar Every Breath You Take no saxofone,
satisfeito em vê-lo feliz.
:: Notas do Autor
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