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Por
Alice in Wonderland
Da
Escuridão e da Luz
A chuva
fina cessava. Noite fria, úmida. O clima noir pairava
na Cozinha do Inferno, e Matt Murdock até mesmo chegava
a romantizar o antro onde passara boa parte de sua vida. Ainda
que pudesse estar circulando pelas luxuosas avenidas da ilha de
Manhattan, o advogado apenas sentia sua mente liberada, relaxada,
quando voltava a um dos bairros mais violentos de Nova York.
Ele constatava, a cada esquina, como as pessoas adaptam-se às
mais difíceis situações e conseguem tirar
delas uma parcela de felicidade. Por mais piegas que o pensamento
parecesse e o próprio Matt se recriminou, ao tê-lo,
é verdade as imagens de guerras no Timor Leste ou
nos territórios palestinos não mostram o cotidiano
de mulheres e homens que trabalham, estudam e até mesmo
se divertem.
E na Cozinha do Inferno, guardadas as devidas proporções,
a vida continuava, diriam os mais velhos. Às dez da noite
até crianças ainda circulavam pelas ruas. Jogavam
futebol, andavam de skate.
"É, com a idade deles eu já tomava conta da
minha própria vida, e mal tinha tempo de brincar... "
mas antes que a lembrança virasse uma lamúria,
Matt percebeu um burburinho próximo à calçada
"Garotos numa roda, provavelmente se gabando sobre
as meninas do colégio ou algum mágico touchdown..."
mas o tom de voz dos meninos, quase rapazes, era diferente.
O timbre oscilava entre a euforia e o medo... Tantos corações
batendo em ritmos diferentes, de alerta, o mesmo que sentimos
quando ouvimos uma péssima notícia na TV ou quando
esperamos a cesta de três pontos que decide o campeonato.
O advogado decidiu tomar um café em uma banca próxima
aos meninos, apenas por curiosidade. Mas o Demolidor nunca faz
nada por mero acaso "Não sou aquele homem sem
rosto, movido pela indiscrição humana. Sem questões."
algo no demônio desafiador sabia que a situação
tinha linhas mais tênues a serem atentadas.
"Cerca de quatro rapazes, 13 a 15 anos." mas
o narrador da história era mais jovem, não devia
ter mais de onze anos. Ao seu lado, atento, um cão. Labrador,
pêlo preto brilhante, mais do que um animal de estimação,
era o novo sexto sentido de seu jovem dono.
Matt sorriu ao imaginar o cachorro. Como o animal, também
podia farejar de longe todas as formas de perigo, ainda
que não conseguisse evitar metade delas. O cachorro certamente
tem um score de acertos muito mais alto do que o do Demolidor.
Ao ouvir a conversa dos rapazes, percebeu o porquê do misto
de emoções contraditórias. O pequeno Shawn
havia recém-adquirido o cachorro, e os amigos de seu irmão
presente no grupo travavam o primeiro contato com
um cão-guia e com uma criança cega. Ou melhor, cegada
por um acidente.
Você já escolheu o nome dele? Batman seria
bacana prum cachorro preto. Se fosse daqueles Labradores creme,
eu botava o nome de Eminem.
Shawn ainda tinha dificuldade em perceber de onde o som vinha,
e por isso balançava a cabeça para os lados, lentamente,
como se quisesse captar a direção do estímulo
sonoro. Matt sentia a vibração do corpo do menino,
e também percebia muito medo. Não do escuro que
virara seu mundo, mas de algo que sua mente não poderia
apagar.
Eles já vem com o nome explicava Shawn
E é ela. Menina. É como ela se chama, né,
Menina?
Cara, e você não tem medo de atravessar uma
rua movimentada com ela? Como é que o cachorro faz para
avisar você que o semáforo está aberto?
Pode entrar com ela no metrô? Porque uma vez uma
senhora tentou levar um Husky no trem e...
Claro, sua besta! Cachorro de estimação não
pode entrar, mas cão-guia vai para tudo que é lugar!
E se for no cinema, ela fica do lado de fora?
Para comer, a ração é daquelas normais
ou cheias de vitamina? Isso é um animal caro, e...
O Demolidor sentia a agonia do menino em responder aquelas perguntas.
Mas o peso no coração não era por isso. Havia
algo mais. Um nervoso Shawn levantou-se da calçada, abrindo
espaço com o Labrador.
Quero ir para casa, Brian! o apelo ao irmão
era choroso.
OK, vamos. Vejo vocês amanhã na escola, caras.
Tchau...
A despedida dos rapazes foi em um tom uníssono desapontado.
Queriam saber mais sobre o irmão do Brian. Conheciam Shawn
desde bebê, e a história do acidente com o menino
foi um mistério para todos daquela rua, comentavam eles.
Há dez noites atrás, a mãe de Shawn e Brian
correu para a rua com o filho caçula nos braços.
Gritando histericamente, pediu aos vizinhos que discassem para
o 911. Shawn parecia em estado de choque, também berrava,
mas nenhum som saía de sua garganta. A ambulância
chegou, levando o menino, sua mãe e Brian.
Após quatro dias de internação, Shawn retornou
com sua família para a Cozinha do Inferno. Elizabeth Losh
disse em palavras secas que o menino sem querer borrifou a soda
cáustica que limpa os canos da pia no próprio rosto.
Quase ninguém acreditou.
O Demolidor resolveu conhecer Shawn um pouco melhor. Mas isso
é uma coisa que só Matt Murdock pode fazer.
Na manhã seguinte, um advogado cego bateu à porta
dos Losh.
Um homem "Muito gordo, respiração pesada",
constata Matt atendeu.
Com licença, senhor. Meu nome é Matt Murdock,
e faço parte de uma instituição que auxilia
na adaptação de crianças que adquiriram recentemente
dificuldades visuais e ...
O que vocês fazem? Limpam a merda que o cão-guia
faz no tapete?
BLAM!
O vento que a batida da porta produziu até desarrumou alguns
fios de cabelo de Matt.
DING
Senhor, sei que o momento é delicado para a família,
mas...
BLAAAM!
"O impacto dessa porta poderia tirar do lugar até
um fio de cabelo do Coisa." pensou Murdock.
História mal-contada, pai mais do que suspeito... O Demolidor
já encaixava as peças do quebra-cabeça quando
ouviu Shawn atrás dele, chegando em casa com a Menina.
Meu pai estava gritando com você. Por quê?
Acho que estava num mau dia. Tudo bem, Shawn?
Eu ouvi que você é de um lugar que ajuda cegos...
Como você sabe meu nome?
Deficientes visuais, Shawn. E vi sua ficha no hospital.
Podemos conversar sobre você?
Se é sobre o acidente, não agüento mais
explicar. O borrifador estava do lado inverso e eu espirrei a
soda cáustica no meu olho. Foi isso.
As batidas do coração denunciaram o garoto. Aliás,
com todo este panorama, não era difícil imaginar
que o pai tinha tido algo com isso.
Shawn! Para dentro! Já falei para não
dar conversa a vagabundo de rua!
O menino, com medo, puxou a cadela, que mesmo atenta a Matt, atendeu
ao puxão da guia e seguiu para dentro de casa.
Eu também não enxergo, Shawn! o advogado
falou com rapidez, com os lábios entreabertos À
noite um amigo meu vem falar com você. Fale com ele. O meu
nome é Murdock, Matt Murdock!

Mais
uma vez Humphrey Bogart e Raymond Chandler, que devem viver no
mesmo Paraíso noir, compartilharam com o blues
de Matt Murdock e conferiram à Cozinha do Inferno mais
uma noite de chuva fina, vento cortante e iluminação
refletida em poças.
Telhado. Mais
um telhado.
Escada
de emergência. Telhado.
Telhado.
Muro.
Muro de novo.
Era o Demolidor nas ruas. Ruas cinzas, que contrastavam com o
vinho metálico, fechado, de seu uniforme. Poderia ser a
cor do batom de uma deusa noir. Lauren Bacall era a preferida.
E o bom era que, se no final do filme, ela fosse presa ou rejeitasse
o detetive mal-vestido e com cheiro de uísque barato, na
volta para casa a estrela sempre voltava para o Bogart. Foram
casados por muito tempo. Maldito Bogart.
Um leve toque com o bastão na janela de Shawn já
paralisou o menino de medo, por isso o Demolidor teve de fazer
a voz mais suave possível.
Sou o amigo do Matt, de hoje cedo. Quer conversar agora?
Eu, eu... não posso. Não posso falar...
...
Não posso falar aqui... sussurra o menino.
Me dê sua mão, Shawn, confie em mim.
Eu não posso ver você...
Confie no que você tem agora, Shawn o Demolidor
foi firme, quase rude Vamos.
O menino era leve e com facilidade o Demolidor saltou até
um terraço vizinho à casa dos Losh.
O que seu pai tem a ver com o acidente, Shawn?
Nada...nada!
O Matt é cego também. O pai dele bateu tanto
nele, que ele ficou assim. O cara era lutador de boxe, então
com a força dos socos que dava no filho, danificou a visão
dele para sempre.
O detetive é sempre assim. Mente para conseguir a verdade.
Durão, com voz forte, mas o coração definitivamente
não é de pedra... E a capa, ah, a capa é
a marca registrada, junto com o isqueiro Zippo e uma típica
loira dos anos 40 ao seu lado, de olhar lânguido e culpado.
Mas neste dia a capa era justa, uma malha rubra rente ao corpo,
que delineava os músculos e facilitava cada movimento.
O meu pai, ele brigou com a mamãe porque ele disse
que eu não sou filho dele. Eles gritaram alto, bem alto,
o Brian acordou e começou a discutir com o papai também.
O Brian apanhou muito, mesmo. A próxima era a mamãe.
Eu tentei segurar o papai, mas ele pegou o borrifador e...
O óbvio estava sendo confessado. Agora, era só levar
o garoto para um abrigo e chamar uma assistente social. Pelas
contas de Matt não do Demolidor Shawn ficaria
uns seis meses sob a custódia do estado até ser
levado para uma outra família. A menos que sua mãe
também denunciasse o pai e resolvesse tocar sua vida ao
lado dos filhos.
Mas elas nunca fazem isso. Apanham, apanham e continuam ao lado
do algoz. Em Casablanca, Ingrid Bergman não fica com o
Bogart. Vai embora, com o seu marido ativista.
Mas quase sempre, elas ficam.
Se Matt ponderava a questão jurídica, para o Demolidor
um susto no pai de Shawn mais a Lei e a Justiça
fariam muito bem ao gordo bastardo.
Vamos, Shawn. Vamos para um lugar seguro. Não tenha
medo.
Precisamos pegar a Menina, lá em casa!
Eu vou para a sua casa...
Após dois saltos, o Demônio já estava novamente
no parapeito da janela de Shawn. Ele pressentiu o cachorro, e,
se isto fosse um filme...
Isto não é um filme.
Não é um filme noir? Vilão ardiloso,
vítima inocente, mentiras, chuva fina, um herói
que age nas sombras...
...se isto fosse um filme, pediríamos licença aos
mestres dos anos 40 e veríamos uma comédia, com
o Demolidor carregando no colo um cachorro de quase 25kg.
A Menina foi entregue a Shawn.
O Demolidor retornou ao lar dos Losh.
DING!
ZIIIMMMMMM!
O barulho do bastão do Demolidor no rosto do homem foi
seco. Rápido, o bastão zuniu no ar, e causou um
profundo corte.
Chuva. A chuva continuou.
Shawn foi mandado para uma instituição. Em cerca
de quatro meses deverá ser adotado por uma família.
Um casal de idosos do Maine leu a notícia do jornal sobre
um pai que feriu o rebento e imediatamente se prontificou a tomar
conta do menino. O senhor, estéril, não parava de
contar aos amigos sobre o filho e a cachorra que
iria ganhar, e que a vida parecia um filme, com final feliz e
tudo. "Como aqueles bons, do Frank Capra..."
Mas para o Demolidor, o filme era noir. Sempre. Sempre
noir.
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