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Por
Matheus Pacheco de Andrade
This
One Goes Out To The One I Loved
É
fim de tarde no estado de Washington, noroeste dos Estados Unidos
da América. O verde das vastas florestas de coníferas
funde-se no horizonte com o crepúsculo alaranjado, formando
um contraste digno de um quadro renascentista. Andando no acostamento
vai um sujeito cabisbaixo, uma expressão no olhar de quem
carrega o mundo em seus ombros. É um sujeito novo, nos
seus 35 anos de idade, mas ao olhar seu rosto pode-se calcular
50 ou mais. Nitidamente, Destino não simpatizou com este
sujeito já de primeira.
Nas costas, uma mochila de alpinista leva todos os pertences da
vida deste homem. É um nômade, eternamente perseguido
por ser algo que não é. Eternamente pagando pelos
pecados de outro.
É um fugitivo, a tentar encontrar alguém que acredite
em algo que até mesmo ele duvida sua inocência.
Mas nem sempre teve sua vida tomada pela dor e desespero. Não!
Há poucos anos atrás era um jovem cientista, PhD
em física nuclear aos 30 anos, e tinha todos os caminhos
de uma vida brilhante abertos para si. Mas um atalho postou-se
à sua frente e, em um ato de extremo altruísmo ("ou
estupidez", ele pensaria depois), acabou por sofrer um acidente
que mudaria sua vida.
Doutor Bruce Banner... Médico, cientista. Em busca da força
que todos possuem, acaba recebendo uma dose maciça de raios
gama e agora, quando se enfurece ou se sente ultrajado, se transforma
e tem de enfrentar a sua maldição: o incrível
Hulk!
Uma caminhonete pára à sua frente no acostamento,
um sujeito sorridente põe a cabeça para fora da
janela e desata a falar...
Olha, moço. Eu não sei como o senhor chegou
aqui, aliás é incrível só de imaginar
que a cidade mais perto daqui deve estar a uns 30 quilômetros,
mais ou menos, mas tenho certeza que o senhor deve estar cansado
e com fome. Sabe, uma vez, quando eu era moço, me perdi
na beira da estrada e tive a noite mais desesperante da minha
vida sozinho no meio do mato, então eu queria saber se
o senhor q...
Quero sim, senhor. Se não for incômodo eu
vou aceitar sua oferta de carona.
??? Muito bem, sobe aí então!
Jogando seus pertences no porta-malas do carro, Bruce sobe imediatamente,
dando graças aos céus pela grande idéia de
lhe arranjar uma carona.
Eu me chamo John Helsing, minha família era holandesa,
sabe? Qual o seu nome, amigo?
Bruce. Bruce... Jekyll.
Jekyll, é? De onde conheço este nome?
Não sei, não tenho ninguém conhecido
na família, na verdade.
Uhm... Certo. Para onde você estava indo?
Eu... Pra onde estamos indo agora?
Seattle. O lugar que nunca faz sol.
Seattle? É bem pra lá que eu estava indo
mesmo. Sorte a minha.
Conhece alguém lá?
Bruce semicerra os olhos. Sim, ele conhece alguém lá.
Um garoto inconseqüente que, em nome de uma balada em seu
violão, acabou por meter-se e metê-lo em uma enrascada
sem tamanho. Sim, ele conhece Rick Jones, que mora lá.
Hã... Sim, tenho um... Um amigo que é músico
lá.
Músico, é? Tome cuidado com este povo. Ficam
cheirando esta tal de maconha e fazendo seus sons do diabo. Eles
estão tomando conta da nossa boa e antigamente pacata cidade.
Hã... É, eu sei. São sempre inconseqüentes.
Isso! É bem isso que eu ia falando. Aliás
já falei do dia em que...
Uma hora depois (incluindo aí uma parada em um posto de
gasolina para banheiro e refeição) os dois recém-amigos
chegam à entrada principal da cidade de Seattle. Bruce
pede a Helsing que o deixe em algum hotel barato e é prontamente
atendido, sendo deixado em um lugar situado entre dois clubes
de rock'n'roll e um de striptease.
Obrigado, John. Quanto lhe devo?
Nada, amigo! Foi um prazer conversar com alguém
tão... ponderado. Qualquer coisa pinta lá no centro,
no bar da Beth, pra gente bater um papo e entornar umas cervejas.
Hã... Certo, claro! Até mais.
Até!
Às portas do hotel, Bruce não deixa de notar entrando
no clube ao lado três sujeitos por demais estranhos. Um
é loiro e está visivelmente triste Bruce
lembra de si mesmo -, outro é moreno, tem o cabelo comprido
e não pára de falar, rir e mascar chiclete, e o
terceiro é um sujeito de uns 2 metros de altura, desajeitado
e de riso fácil e bronco. "Mais do mesmo, todos Ricks
buscando confusão por aí", pensa o cientista.

À
noite...
I need an easy friend
I do
With an ear to lend
I do
Think you fit these shoes
I do
Hope you have a clue
"No palco os três guris da tarde fazem seu barulho
distorcido, à minha frente dezenas de garotos jogam as
cabeças e os corpos de um lado para o outro e em algum
canto escuro alguns casais trocam línguas e mãos
em nome de um prazer descompromissado."
"Está meio frio e todos, quase sem exceção,
estão com o uniforme básico do adolescente de Seattle
camisa xadrez de flanela em cima de uma camiseta dos Ramones,
calça jeans surrada e coturnos ou tênis velhos."
"Um não-exército uniformizado, cada soldado
despreparado para a guerra da vida, tentando aprender com os próprios
erros."
"E eu me sinto calmo."
"Encosto no balcão e peço um suco de laranja.
O barman grunhe alguma coisa e sai para me servir. No meio do
caminho beija uma loira careca cheia de tatuagens, cumprimenta
dois amigos e dá uma tragada em um baseado do outro atendente."
"Começo a bebericar meu "drinque" quando
se aproxima uma morena."
Oi, cara! Tudo bem?
Tudo, eu acho. Afora o fato de ser virtualmente impossível
conversar com esta barulheira.
Bah, e isto que não é o Soundgarden. O Kurt
ainda apela pra alguma poesia e melodia.
É, eu posso imaginar.
Quer conversar? Não faço a menor questão
de ficar aqui dentro.
"Saímos."
"Sentados à beira da calçada, o mundo é
nosso. Quando falamos, uma espessa névoa sai de nossas
bocas. O frio é imenso e, pela primeira vez em cinco anos,
me arrisco a beber algo."
Jekyll, é? Espero não conhecer o Hyde.
Esperamos que você não conheça. E o
seu? Seu nome, como é?
Vanessa. Vanessa Bier.
Bier. "Cerveja" em alemão.
Deve ser coisa do meu avô, aquele nazista tarado.
Qual a sua idade? Tem corpo de 25 e rosto de oitocentos.
Tenho 35, engraçadinha. E a sua?
35, é? Legal! Maduro sem ainda ter virado um completo
babaca bunda-mole, com a velha desculpa de "a vida me moldou".
Eu tenho 27, já estou velha pra esta história de
"festança noite afora", mas não posso
evitar.
Sabe, você é muito bonita.
Obrigada, mas não pense que eu vou te dar porque
você soltou um galanteio perdido no meio de um climinha
romântico.
Eu nem pensava nisso.
E não pense que eu não vou te dar também.
Hã?
E os dois se beijam. Já há algum tempo Bruce não
sabe o que é isso, mas seu afã transforma-se em
uma saudável e excitante voracidade. É o que Vanessa
procurava um homem feito com entusiasmo juvenil.
Em poucos minutos estão dentro do quarto do Hotel. Roupas
espalhadas por todo o canto, gritos primais de uma fêmea
na cópula. Tudo conspira a favor dele. Tudo é bom.

Dia.
Sete da manhã, o casal dorme há uma hora e meia
quando Vanessa começa a mexer-se lentamente. Bruce abre
os olhos de pronto e recebe um beijo com um "Bommmm diammmmm"
de cobertura.
Sorri.
Excita-se profundamente quando a vê de pé, silhueta
ao sol, espreguiçando-se para começar um novo dia.
Pode ver suas tatuagens nas costas, braços e sacro. Pode
ver seus 12 brincos na orelha esquerda e 7 na direita. Pode ver
seu piercing no umbigo.
Pode ver tudo isso, mas só o que vê é uma
névoa de perfeição movendo-se graciosamente
pelo quarto.
A perfeição lhe sorri.
Eu vou indo, alguém tem de sustentar este moquifo,
né?
Onde você trabalha?
Sub-Pop Records. Te ligo à tarde?
Começo da noite, certo? Quero dar uma passeada por
aí e conhecer o lugar.
Tudo bem, anjo. Tchau.
Ao dizer isso, põe as calças, pega a bolsa e sai
apressadamente do quarto. Está acostumada a começar
o dia com pouco sono.

Já
Bruce só vai levantar por volta de meio-dia.
O dia, que começara lindíssimo, acinzenta e começa
a receber uma fina garoa no exato instante em que Bruce pôe
o nariz para fora do hotel.
Não se faz de rogado e sai a andar pela cidade com um sorriso
largo, o primeiro em anos.
Já faz tempo que não é gostado por alguém
e aquilo lhe faz bem.
Anda por tudo o que pode. Conhece as entranhas da cidade.
Ao fim da tarde é um trapo humano. Há meses não
dava bola para o cansaço, simplesmente não importava.
Mas não agora. Agora ele é alguém de novo,
alguém que importa.
Chega em casa e recebe um telefonema.
B... Bruce?
Oi, Vanessa! Tudo bem?
Tudo... Tudo. Olha, não vai dar pra gente se ver
hoje, certo? Estou lotada de... UNGH... serviço e não
vou sair tão cedo, certo?
Hã. Claro! De maneira alguma eu iria querer te prender.
Legal! Podemos nos ver amanhã?
Com certeza! Fim de tarde?
Não. Almoço. Pode ser?
Claro! Eu acordo cedo pra você.
Hã, tá. Eu pinto aí, certo?
Tudo bem.
Então tá, beijo, tchau.
Beijo.
O telefone desliga. Era a voz de alguém que não
está bem. Disso ele entende.
Mas também entende que não deveria se meter na vida
de ninguém. Nunca. Nunca fará o mesmo erro que fazem
quando se metem com a sua.

Meio-dia.
Para Bruce, sentado à beira da calçada, a visão
de uma Vanessa maravilhosa, radiante, chegando é algo recompensador.
Pagaria por uma vida de merda absoluta.
Um longo beijo.
Tome, é pra você.
O... o que é isso?
É um disco, o segundo daquela bandinha que você
ouviu quando a gente se conheceu. Quando tiver tempo ouça.
Mas eu não tenho toca-discos.
Ouça lá em casa, então. Hoje à
noite?
Olha para ela e recebe de volta um sorriso lânguido, destilado
das melhores intenções que uma mulher pode ter para
com um homem.
Tarde.
Noite.
De tesão destilado a situação desembocou
em um estranho caso de amor envelhecido. Como se tivessem se conhecido
por 40 anos em um barril de carvalho. Na tevê, Michael Knight
faz das suas com seu KITT falante. No sofá, o mais novo
casal-mais-apaixonado-da-história faz das suas com seu
tesão mudo.
De repente.
Espere!
O que houve, Vanessa?
Eu... tenho de ir ao banheiro, tá?
Certo, claro! Vai lá.
Destino é uma criança sem noção do
bom senso.
Depois de 20 minutos sem notícias de Vanessa, Bruce bate
na porta do banheiro várias vezes, grita pelo nome da amante,
sem resposta.
Segurando o desespero, arromba a porta do banheiro apenas para
vê-la caída no chão, seringa ainda espetando
o braço esquerdo, sangue no nariz. Corre, tenta reanimá-la.
De nada adianta.
Começa a sentir-se mal. Uma sensação conhecida.
Agora... UNGH... Não...
Corre ao telefone, chama a polícia.
Dirige-se ao jardim e entrega-se à sua natureza.
Hyde surge, em prantos. Não sabe o que houve, mas sabe
que não é momento de ódio, mas de tristeza.
Salta para a distância. Afastando-se cada vez mais da humanidade
que, por um instante, achou que poderia reconquistar.
No aparelho de som da sala, Kurt Cobain despeja sobre o microfone...
I'm so happy
'Cause today I found my friends
They're in my head
I'm so ugly
That's OK 'cause so are you
We broke our mirrors
Sunday mornin's
Everyday for all I care
And I'm not scared
Light my candles
In a daze 'cause I found God
I'm so lonely
That's OK I've shaved my head
And I'm not sad
And just maybe
I'm to blame for all I've heard
But I'm not sure
I'm so excited
I can't wait to meet you there
And I don't care
I'm so horny
But that's ok my will is good
:: Notas do autor
Oi, pessoas.
Vocês devem notar que esta história é uma
homenagem a Kurt Cobain, ao Nirvana, ao movimento grunge e, sobretudo,
ao rock'n'roll como um todo. Peço aqui, também,
desculpas a Mark Lindquist por usar em linhas gerais
alguns samples de Nevermind Nirvana (lançado
no Brasil como Nirvana Nunca Mais e completamente recomendado).
O título desse conto é uma corruptela do título
de uma música do REM e diz muito sobre a história
e as motivações para escrevê-la.
Ainda, quero deixar registrada minha homenagem explícita
ao seriado de TV do Incrível Hulk. A música do final
(Lithium, que está no álbum Nevermind,
do Nirvana que é talvez o maior marco da música
pop da década de 90) não é aquele pianinho
clássico do seriado, mas tem toda a característica
depressiva. Ainda citei a letra de About a Girl, que está
no Bleach, primeiro álbum dos caras.
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