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Por
Dell Freire
Gotham City
Está com fome? o homem de verde está sentado em uma pedra.
Não. o mais sisudo, em pé.
Ora, por favor, não se acanhe. Por que não sai e compra algo para nós? Eu até iria, mas estou meio amarrado... o Charada ergue as mãos, olhando o outro de baixo para cima e mostrando as algemas.
Hummpf...
Afrouxe essa cueca, morceguinho! com um sorriso, o criminoso pergunta
Havia dois homens chamados Geo e Trigo. Eu sou o Geo e você é o Trigo, OK? O Geo tinha muitos filhos, mas o Trigo não tinha nenhum. Por quê?
...
Porque o Geo "metria" e o Trigo "no metria"... bwahahahahahahahaah.
Cale a boca. por debaixo do capuz, os olhos de Batman demonstram frieza ao se virarem para o outro Não pense que estou aqui para fazer companhia a você.
Onde está a polícia quando precisamos, não é verdade? Edward Nigma
levanta-se, indignado Se eu passar mais cinco minutos com você, é bem capaz de eu morrer de tédio. Comissário Gordon!
Fique quieto! a mão enluvada o empurra de volta para o seu canto.
Uma bicicleta surge ao longe, devagarinho, e se aproxima até chegar aos dois
homens. Um menino negro, usando suspensórios, resolve interromper o seu trajeto e, com curiosidade, olha para eles.
Me dá um autógrafo? pede ele, parado diante das duas figuras fantasiadas.
Não, eu... o morcego recusa.
Você, não! Ele! o menino aponta para o Charada.
Ahah! Reconhecimento, afinal! pegando bruscamente a caneta, o mestre dos enigmas sorri diabolicamente para o garoto, espremendo sua bochecha Ah, a doce sabedoria das crianças. Quem mais poderia reconhecer meus feitos? Quem poderia...
Você é o maior de todos, Coringa!
Pausa dramática.
A bicicleta acelera em desabalada carreira. O garoto, assustadíssimo com a reação do homem, não olha para trás e, se o fizesse, veria um Charada completamente transtornado, vociferando palavrões e contido pelo homem-morcego.
Volte aqui, vermezinho! Volte! Vou te dar uma surra inesquecível! Eu sou o
Charada, entendeu!? O rei dos mistérios! O príncipe dos enigmas!! Não um palhaço pé-de-chinelo!
Ainda bufando, Edward Nigma tenta se controlar e volta a se sentar na pedra. Ajeitando o chapéu coco, ele olha novamente para cima e, para sua surpresa, captura um meio sorriso do cavaleiro das trevas.
Eu não vi isso... o Charada murmura baixinho, afundando a cabeça em meio aos ombros Até você faz chacota de mim. É o caos, o fim... Vou abandonar a cena.
Que seja.
Sei. Despeitado. Ainda tenho muito a lhe ensinar sobre você mesmo, morceguinho.
Antes de qualquer coisa, tenho uma história para contar.
Ah, conto de ninar até o bom e velho Gordon resolver dar as caras?
Não. Vou lhe contar sobre seu plano simples e lucrativo.
Ah, a caixa-forte de Gotham realmente sempre foi...
Não. Ela não representa nada. Apenas um grão de areia sobre nossos olhos que nos impedia de ver o mal maior.
Estamos melodramáticos hoje, não?
O nome Eleanor Starr lhe diz algo?

Gotham City cinco noites atrás
O imenso brinco de pirata balança quando seu corpo sofre um impacto contra a parede, para em seguida sentir as duas mãos que o seguram agressivamente, puxando-o para explicações.
Me dê nomes.
Eu não...
Com um rápido deslocamento, as mãos de Batman jogam o "pirata" contra outra parede.
Eu posso ficar nesse jogo o dia todo. Até que suas costelas quebrem.
Você não teria...
Coragem? Vamos tentar?
Cinqüenta mil dólares pra cada um... não tinha como a gente se negar... o Charada já tinha todo o plano e, com a ajuda de alguns guardas, o tiramos do Arkham.

Gotham City duas noites atrás
Mas não, querida... de forma alguma. girando o chapéu coco com as mãos, mantendo um semblante gentil e o olhar apaixonado, o Charada poderia até comover alguém desavisado, como é Eleanor Starr Sabe, minha vida de crimes pertence ao passado. Estou pensando em abrir uma loja de antigüidades, ou quem sabe propor um quiz show para a emissora local.
Ed, não sabe como sua recuperação me tranqüiliza! seus lindos olhos azuis traem um carinho que o próprio Charada jamais imaginava despertar Mas ainda acho que é cedo para um casamento.
Bem, sabe como é... às vezes um homem precisa crescer, constituir família, essas coisas... e suas cartas tão confortadoras, seu carinho de fã... ah, como o reconhecimento é agradável...
Mas reconhecimento, só isso...
Amor, reconhecimento... é por isso que quero me casar o mais rápido possível, já marquei no cartório.
Gostaria de acreditar em você... de que realmente está regenerado... realmente saiu por bom comportamento?
Eu juro, Eleanor... o Asilo Arkham é uma mãe para mim; sou um verdadeiro milagre em termos de recuperação! seus dedos discretamente cruzados o traem Nada mais de vida de crimes para mim.

Gotham City uma noite atrás
Cuidado!!! Há um morcego na porta principal!!! Cuidado!!! (*)
O grito do criminoso chega aos ouvidos do Charada, que obriga o dono do banco a acelerar a abertura do cofre. Às suas costas, o homem-morcego entra em confronto com seus comparsas, surpreendendo os reféns do assalto a banco com sua rapidez e destreza durante a luta.
Em dois minutos, após passar por meia dúzia de adversários, Batman está diante de um de seus mais antigos inimigos que, com o cabo da bengala em forma de ponto de interrogação, deixa inconsciente o banqueiro com um violento golpe em sua nuca.
Por que o homem-morcego fecha os olhos durante o sexo? ele se levanta, a extremidade superior de sua arma revela ser tão cortante e afiada como uma foice e passa rente ao peito do morcego, rasgando o tecido de seu uniforme Simplesmente porque ele não pode ver um homem se divertindo.
Um dos mais resistentes aliados de Edward Nigma levanta-se rapidamente, ainda sentindo o impacto da luta contra o vigilante, e o agarra por trás, tentando impedir seu movimento. Jogando a cabeça para trás sucessivas vezes, Batman o atinge até que seu nariz sangre abundantemente e ele desmaie. Desta forma, Batman se liberta.
Aproveitando o momento, o Charada corre para a saída do banco a passos rápidos, mas é impedido por um batrangue, que o atinge na cabeça de forma violenta. Nada que o faça desacordar, mas seus passos perdem a segurança e, em poucos segundos, seus braços estão seguros pelo vigilante.
Parece que hoje não é mesmo meu dia de sorte... me responda, Batman: em uma igreja tinha uma mesa com dez velas. Um ladrão apareceu e levou quatro. Quantas velas ficaram?
14. Porque o ladrão levou quatro velas e não roubou nenhuma.

Gotham City de volta para o presente
Muito bem, muito bem. Você ganhou de novo. Não enjoa disso e ainda vem me jogar na cara? Eu estava lá.
Sim, um assalto a banco que não resultou em nada. Um álibi pueril para um plano maior. Eleanor Starr.
Diferente de você, senhor esfíncter de ferro, eu tenho um coração sensível. Ter uma bela mulher ao meu lado... alguém que me admira e me dá o devido valor... qual o problema nisso?
Eleanor está morta. Você a matou.
Prove!!!
Era simplesmente o que eu aguardava. Batman aponta para o carro da polícia E ele acaba de chegar. Vê aquele homem?
Um estrangeiro... motorista pessoal de Eleanor... nem fala a nossa língua.
Mesmo?
Gordon apresenta o homem encapuzado para o motorista de Eleanor Starr. Esse último começa a tagarelar sem parar em uma língua incompreensível. Seus olhos estão vermelhos e marejados. Está inconsolável, perdido em seu próprio mundo.
Ele não fala nossa língua e não identificamos o que ele fala. argumenta Gordon Mal se comunica por sinais e é completamente analfabeto; não escreve uma palavra. Segundo informações, ele viveu muitos anos pelas ruas de Gotham e conhece a cidade como ninguém e, talvez, da cidade onde nasceu é que tenha aprendido a dirigir. Eleanor tinha o hábito de colocar pessoas à margem da sociedade como seus funcionários; talvez isso a tenha feito achar que poderia regenerar o Charada. Não sabemos como ela se comunicava com ele e, após a morte de Eleanor, ele chora e fala sem parar... mas ninguém o entende.
Que lamentável... debocha o Charada Eu, um pobre diabo, um viciado no crime e nos enigmas, posso ser tudo, menos um assassino vil e hediondo... e o choque desse senhor diante da perda de uma mulher a quem devemos muito não prova nada.
Parecendo só agora notar Edward Nigma, o homem aumenta o ritmo de seu choro convulsivo. Com um gesto lento, Batman faz o sinal do silêncio, pedindo calma.
< Não precisa se preocupar, homem. Eu entendo você e não deixarei que ninguém lhe faça mal. > (**)
Mais atônito do que o próprio comissário e o Charada juntos, o motorista da senhora Eleanor Starr segura o choro e, emocionado, trava o primeiro diálogo com outra pessoa mais de dez anos depois de ter pisado em solo gothamita.
< Que... que espécie de demônio é o senhor que domina minha língua?! >
< Demônio não sou, meu bom homem... a noite, como você sabe, nos obriga a adotar os mais estranhos disfarces para não sermos feridos por ela. >
< Sua voz... você fala como se estivesse tão só no mundo quanto eu... >
< Um crime foi cometido esta noite. Pode me ajudar a resolvê-lo? >
< Esse... esse monstro a matou... com vários golpes de faca... eu assisti a tudo... a faca ia e voltava repetidas vezes... era grotesco, o estômago foi aberto... o sangue manchava o chão... eu simpatizava com o senhor Nigma, meio pueril com suas brincadeiras e sua roupa infantil; como a senhora Starr, também o imaginava recuperado... ela escondia, mas acho que ambos se casaram recentemente... ao menos ela assinava papéis para ele, colocando algo em seu nome... quando ele a matou, eu estava de longe mas o reconheci... estava fantasiado... depois que acabou, a arma em punho diante do corpo, eu me lembro exatamente do que ele disse: "Qual a diferença entre um sábio e uma puta?" >
Eu tenho uma charada para você, Edward... Batman está de costas para o Charada Qual a diferença entre um sábio e uma puta?
O rosto do Charada transfigura-se completamente, o mal tomando conta de cada poro de seu corpo.
Pelo sábio passam muitas coisas pela cabeça e pela puta passam muitas cabeças pela coisa.
Virando-se rapidamente, Batman esmurra o príncipe dos enigmas e o joga ao chão. Um sorriso de escárnio misturando a sangue e areia surge no rosto do Charada.
Gordon, prenda-o. Vou lhe passar o nome de um conceituado lingüista alemão que será o interprete e auxiliará nossa testemunha. Até a chegada dele, cuide de nosso novo amigo para que nenhum "acidente" ocorra durante o processo contra Nigma. Caso encerrado.
:: Notas do Autor
(*) "CUIDADO! Há um morcego na porta principal, CUIDADO!" é o refrão da música "Gotham City", composta por Jards Macalé e Capinam, que ouvi ao desenvolver essa história. Em 1969, Macalé cantou sua composição em meio a vaias no IV Festival Internacional da Canção. O festival bem comportado não entendeu a proposta dos artistas, que retratavam uma Gotham City carnavalizada e, numa mensagem cifrada, comparavam a figura vigilante do morcego com a ditadura militar e a censura. Na net, em um bom programa de busca de músicas, é possível encontrar a versão de estúdio e a versão ao vivo, com direito ao riff do seriado kitsch da década de 60, realizadas pela banda de rock Camisa de Vênus na década de 80. Valem a curiosidade.
(**) Traduzido direto do pomerano, língua do motorista de Eleanor Starr. O pomerano é a língua morta dos nascidos na Pomerânia, região localizada hoje na Polônia. Sofrendo uma perseguição histórica no início do século XVIII, muitos se refugiaram em outros países, como a Alemanha e o Brasil, e perderam o domínio de sua língua-mãe. Porém, os pomeranos que se refugiaram no Rio Grande do Sul e no Espírito Santo são os únicos a falar o dialeto (mal aprendem outra língua), porém em hipótese alguma conseguem escrevê-lo corretamente, o que torna desconhecida a sua grafia. Apenas conseguem reproduzir os sons e quando isso acontece somente outro pomerano pode entender alguma coisa. Atualmente, entre as crianças, nem todas conseguem falar a língua dos pais. Após abandonar o Brasil, o motorista da senhora Starr tentou a vida em Gotham, onde, após viver nas ruas, foi empregado por ela.
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