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Por
Fernando Lopes
E os Deuses Responderam
Minhas Preces
Quando era garoto,
Abdullah Kemal queria ser bombeiro. Mas também quis ser
médico, policial, carteiro, agente secreto, domador de
leões, astronauta... super-herói! Como qualquer
criança, ele queria ser tudo. Acabou se tornando funcionário
público em sua terra natal, a cidade turca de Samsun. Mas
não reclamava. Tinha uma boa vida. Emprego estável,
uma boa esposa, dois filhos, um carro razoavelmente conservado,
poucas prestações a pagar. Um congresso o tinha
trazido a Izmit, e ele esperava tirar pelo menos um dia de folga
para conhecer Tróia. Não teve chance. Um tremor
de 6.8 na escala Richter encarregou-se de mudar seus planos, e
os de toda a população de Izmit.
Tudo o que Kemal queria, naquele momento, era fechar os olhos.
Não por causa das 36 horas ininterruptas de trabalho ajudando
no resgate dos feridos, nem tampouco pela poeira que subia a cada
camada de entulho retirada. Ele queria fechar seus olhos para
a morte, que o encarava a cada cadáver resgatado, a cada
novo nome a engrossar a enorme lista de vítimas. Mas de
nada adiantaria a Kemal fechar seus olhos, pois o choro dos que
sobreviveram ainda encheria seus ouvidos, acima do barulho das
máquinas; o cheiro nauseante da morte ainda penetraria
em suas narinas, ávido em sufocar qualquer esperança.
Por isso, ele mantinha seus olhos abertos. E cavava.
Mas o desespero começava a tomar conta do coração
de Kemal.
Por que, Senhor, nos traz tanta dor? Por quê?
pensava consigo. E olhou para o firmamento, a buscar respostas
para a angústia que ameaçava acabar com sua sanidade.
Foi quando ele os viu, descendo dos céus com suas roupas
coloridas e botas reluzentes. E eles eram os anjos do Senhor,
que vinham em resposta às preces de seus filhos desvalidos.
Ainda que vivesse mil anos, Kemal jamais esqueceria o dia em que
os deuses responderam ao seu apelo. E sua esperança se
renovou, pois sabia que eles estavam a seu lado. E todos os que,
como ele, trabalhavam para resgatar as vítimas da fúria
da natureza, também se alegraram, pois sabiam que a vida
tinha agora uma nova chance na luta contra a morte.
Kemal não conseguia tirar os olhos daqueles fantásticos
seres, que passaram a operar milagres dignos dos heróis
mitológicos daquela terra antiga. Maravilhado, ele viu
o estranho e silencioso homem verde parar por um momento no ar,
como que em transe, ouvindo vozes do além. E o viu descer
sobre os escombros do que outrora fora um edifício, e penetrar
pelos destroços como se eles não estivessem lá,
imaterial como um espírito. Apenas para ressurgir, segundos
depois, erguendo sobre os ombros toneladas de concreto e ferro
para dar passagem a um grupo de sobreviventes, que entre risos
e lágrimas voltava a ver a luz do sol.
Um pouco mais adiante, uma mulher de longos cabelos negros e a
beleza de uma deusa ajudava um trator a desobstruir a entrada
da rua para possibilitar a passagem das ambulâncias, carregando
com suas próprias mãos mais entulho do que a máquina.
Extasiado, Kemal admirava a visão daquela princesa de beleza
e poder quando um relâmpago escarlate passou a seu lado,
levantando poeira. Em seus braços, uma criança ferida
que, segundos mais tarde, fazia uma tomografia computadorizada
num hospital de Istambul, conforme ele ficou sabendo depois. Na
área portuária, um homem com o porte de um rei e
um gancho no lugar da mão esquerda ajudava a recolocar
as embarcações semi-destruídas no atracadouro.
Kemal decidiu que já era hora de voltar ao trabalho, pois
mesmo os deuses precisavam de ajuda. Voltando a escavar, foi surpreendido
quando o chão desapareceu sob seus pés, lançando-o
no vazio. Pensou nos filhos e na esposa, e achou que nunca mais
fosse vê-los. No instante, seguinte, porém, ouviu
o som de asas e viu seu corpo ser levado aos céus nos braços
de um anjo. Literalmente. Naquele momento, Kemal não teve
dúvidas de que o Senhor zelava por seus filhos.
Exausto e ferido, foi levado a um posto médico improvisado,
montado em plena rua. E foi lá que assistiu à cena
que mais o impressionou, mais até do que seu próprio
resgate espetacular. Ali, naquela barraca de lona, Kemal viu quando
o homem alto, de capa vermelha, entrou correndo com um homem gravemente
ferido em seus braços. Minutos depois, uma mulher desesperada
o seguiu tenda adentro, com uma menina de uns dois anos no colo.
Os médicos lutavam para salvar o paciente, que estava em
estado crítico. Sentado na maca, Kemal pôde ver a
desolação no rosto daquele semideus, refletida numa
lágrima. Foi quando a menina saiu da barraca, puxou a barra
da capa vermelha e o consolou, com a inocência que só
as crianças possuem:
Não chore, moço. Papai vai ficar bom.
Kemal não sabe se o Homem de Aço entendeu as palavras,
ditas em turco. Mas sabe que ele compreendeu seu significado,
pois pegou a menina no colo, abraçou-a e chorou. A criança
fez um carinho em seu rosto, como que enxugando as lágrimas.
Ele a beijou, colocou-a no chão e voou para continuar a
ajudar nos trabalhos de resgate. Comovido, Kemal recostou-se na
maca e adormeceu. Quando acordou, a Liga da Justiça já
tinha partido. Mas isso já não importava, pois sua
memória guardaria para sempre o dia em que ele viu os anjos
descerem à Terra.
:: Notas do Autor
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