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Por
Cesar Rocha Leal
Evoluções
Parte I
Hub City
4h22
Nas ruas escuras, próximas ao centro da cidade, uma figura
solitária está à espreita. Um homem sem rosto
e de sobretudo azul vigia um jovem parado numa esquina próxima.
Ele já teve vários nomes em sua vida, mas nos últimos
anos tem atendido por Vic Sage e se encontra imerso em pensamentos.
No mundo do crime ele é conhecido como Questão.
Nos últimos dias, ele tem acompanhado com interesse a vida
do jovem a quem vigia. Seu nome é Zack, um adolescente
de 14 anos que anda em companhias erradas desde pequeno e acabou
por se meter com drogas. Sage tomou conhecimento do rapaz há
algumas noites, assim que ele chegou à cidade. A curiosidade
o impele cada vez mais a acompanhá-lo para ver se há
esperanças de recuperação, mesmo que para
isso sua intervenção seja necessária.
A vigília não tem ajudado a aumentar sua fé
na recuperação do garoto, que agora além
de usuário de drogas passou a agir como traficante, provavelmente
vendendo seus serviços para as pessoas a quem deve dinheiro
pela manutenção do vício.
De repente, algo chama a atenção do vigilante. Uma
jovem bem vestida levada a um beco, visivelmente contra sua vontade,
por três rapazes com bandanas, indicando fazerem parte de
uma gangue local. Por maior que seja o interesse de Sage no garoto,
ele sabe reconhecer uma prioridade quando a vê e se dirige
em direção ao beco.
O que... vocês vão fazer... por fa... favor,
me deixem ir exclama a jovem para o rapaz negro e forte
que lhe segura os braços, impedindo-a de fugir.
Olha, Patricinha, fica quietinha e nóis vâmo
nos diverti... Caso contrário... o rapaz sorri,
mostrando a arcada dentária falha enquanto desembainha
a faca.
O beco não tem saída, é escuro e sujo, com
um cheiro de urina que faz as narinas arderem. A garota é
jogada no chão no meio do caminho e começa a chorar
ao ver os três se aproximarem.
O Questão analisa a situação, com a experiência
de quem já enfrentou desafios semelhantes. Quem tem voz
de comando é o garoto negro, provavelmente o mais perigoso
deles, que está armado com uma lâmina. É ele
quem Sage deve atacar primeiro. Com sorte, talvez sua derrota
faça os demais desistirem da brincadeira. Os outros dois
são brancos. Um tem o nariz quebrado e parece ser mentalmente
desequilibrado; o outro aparenta estar meio deslocado, talvez
um filhinho de papai fora de seu ambiente natural, mas cuja excitação
não deixa dúvidas de seu interesse na curra.
Acho que vocês não deviam tentar isso...
A voz de Sage é alterada pela máscara, que imita
perfeitamente a textura e cor da pele, encobrindo totalmente os
traços faciais do vigilante. Mas esse é o menor
dos efeitos que ela propicia. A presença de um estranho
sem rosto, sem nenhuma evidência de estar usando qualquer
tipo de disfarce, é capaz de desconcertar até mesmo
o mais frio dos homens, o que certamente não é o
caso dos jovens estupradores.
Olha, mano, o maluco não tem cara! diz Nariz
Quebrado, com uma voz estridente.
Acho que tomei muito sol... responde Sage, com um
tom cínico, calmo e compenetrado.
O terceiro marginal permanece paralisado, mas, como Sage previu,
o líder não fica muito tempo sob efeito da surpresa.
Cê acha que me mete medo, figura? Vô rasgá
você e fazer uma boca na sua cara.
Com o desafio lançado, o líder se atira sobre Sage
com a lâmina brilhando na efêmera luz do beco. Tranqüilo,
Sage assume uma posição de luta com seu braço
esquerdo recuado, enquanto o direito fica estirado para frente,
tornando-se um alvo fácil para a arma branca do adversário.
O criminoso previsivelmente ataca o braço estirado, mas
Sage tira-o com habilidade do caminho. Com a mão esquerda ele
espalma o atacante no queixo, fazendo-o cair inconsciente com
um barulho seco. Após uma rápida verificada visual,
Sage nota que seu adversário não é mais um
perigo imediato e volta a atenção para os outros
dois. Nariz Quebrado está paralisado e em choque.
"Perfeito", pensa Sage, "se este pateta está
com medo não preciso me preocupar com o riquinho..."
Mas a surpresa estaria estampada no rosto de Sage, se a máscara
não cobrisse suas feições, ao notar que o
filhinho de papai não só não desiste de lutar
como aponta uma .38 para seu peito.
Você pode não ter cara, amigo. Mas aposto
que tem coração...
Sage começa a pensar freneticamente em suas possibilidades,
pois o jovem está muito longe para permitir ser desarmado
com um golpe. Súbito, o garoto desaba e uma figura aparece
das sombras por detrás do corpo.
Às vezes, não sei por que me dou ao trabalho.
Você já deveria estar morto, há alguns anos...
fala uma voz feminina. A mulher deixa as sombras e se aproxima
de Sage, fazendo-o reconhecê-la.
Olá, Shiva. Mais uma vez nossos caminhos se cruzam...
Nariz Quebrado
aproveita a oportunidade para escapar do beco sem que Sage ou
Shiva se preocupem com sua fuga. A mulher sempre foi um enigma
para Sage. Ela fazia parte do grupo que quase o matou, anos atrás.
Mesmo assim, salvou-o da morte e o levou até o sensei que
o ajudou a tornar-se aquilo que é hoje. Depois disso, seus
caminhos se cruzaram algumas vezes sem que ele pudesse determinar
com exatidão os motivos daquela que é considerada
a mulher mais mortal do mundo. Apenas uma coisa é certa:
em todas as vezes que eles lutaram a sério, Sage perdeu...
E perdeu feio.
O garoto,
ele está...
Morto?... Não, apenas desacordado. Continuar vivendo
sua vida miserável é uma punição pior
do que simplesmente matá-lo e poupá-lo dos desgostos
que virão. responde Shiva. A delicadeza de seus
traços orientais não esconde a firmeza suave de
seus movimentos, deixando claro que ela é tão bela
quanto perigosa.
Shiva observa
a vítima dos criminosos, até então praticamente
esquecida, e oferece o braço para ajudá-la a se
levantar.
Espero
que se lembre deste dia, menina. diz a oriental, pausadamente
Você não terá a sorte de ter cavaleiros
andantes, como o sujeito sem cara ali, toda vez que entrar em
encrencas. Portanto, seria sábio dedicar um pouco mais
de sua vida fútil, que acaba de ser salva, para se tornar
menos vítima e mais auto-suficiente.
A garota foge,
quase tão assustada com seus salvadores quanto estava com
seus perseguidores...
Eu nunca
entendo seus motivos, Shiva. Como você mesma disse, eu já
estaria morto há muito tempo se não fosse por sua
causa. Isso me faz pensar se você não estaria "engordando
o gado para o abate..."
Acha que gostaria de lutar contra você? Acredita
que está preparado, sem-cara?
Não... Você provavelmente limparia o chão
com meu rosto, não importa o quanto eu tenha melhorado
desde a última vez em que nos vimos.
E quem disse que você melhorou? Mas em uma coisa
você tem razão: suas habilidades limitadas não
o tornam um desafio digno.
Com essas palavras,
Shiva dá as costas e parte, deixando um aroma de jasmim
e canela no ar, outrora fétido. Antes de ir, porém,
ela avisa:
Por
sinal... Não tente desvendar meus motivos, pois eles dizem
respeito só a mim. E compreendê-los pode não
ser muito saudável para você.

Casa de Aristotle
Rodor 14h40
Quer
dizer que a maluca te salvou o traseiro... De novo?
Tot, acho que eu daria um jeito de me salvar... de alguma
forma. Mas ela me poupou tempo.
Sei... Está com mania de grandeza, agora.
Tot pode ser
um velho amigo e o inventor da máscara do Questão,
mas Sage se pergunta se é uma boa idéia morar em
sua casa desde que voltou a Hub City. Sempre que tenta entrar
em um transe meditativo, Aristotle começa com discussões
paralelas...
E como
faria para desarmar o bandido? Usaria um bumerangue como seu colega
de Gotham?
Não acho que ele gostaria que você insinuasse
que somos colegas... Mesmo porque não somos tão
parecidos. Ele aparenta estar nessa em tempo integral e enfrenta
coisas que eu nem gostaria de saber que existem. A única
vantagem é que na Gótica cidade o mal parece ser
mais facilmente reconhecido. O morcego luta principalmente contra
pessoas vestidas de palhaços, ou pingüins, ou gatas...
Se bem que gostaria de trocar uns golpes com essa.
Enquanto que você cuida de coisas mais... normais?
Prefiro pensar que uma sociedade onde um adolescente vicia
outros para sustentar seu próprio consumo não seja
normal...
Ainda perseguindo aquele garoto, hein?
Sinto que há algo nele... Que posso ajudá-lo...
Não consigo explicar o que me faz sentir "responsável"
por um moleque desconhecido. Eu teria até me intrometido
nos negócios dele hoje se não fosse o episódio
do beco. E Shiva... Às vezes acho que ela quer algo de
mim e está me conduzindo para algum caminho...
"O peão é a principal peça de
um jogo de xadrez. Do ponto de vista do peão, é
claro".
Me parece que suas observações filosóficas
sofreram uma drástica modificação, meu amigo...
É, acho que estou numa fase de ficção
científica. É bom ver alguns desses textos mais
antigos.
Pois é... Mas voltando ao assunto, acho que este
episódio com Shiva ainda vai me dar dor de cabeça.
E logo...

Seattle
20h47
Chamei você aqui porque preciso que me pague aquela
dívida.
A voz de Shiva é incisiva. Apesar de conhecer seu interlocutor
há vários anos, ambos mudaram muito desde épocas
mais simples. O homem é um negro de cabelo baixo e roupas
em tons amarelos escondidas por listas negras que se misturam
com as sombras do bar.
Nunca achei que você fosse cobrar isso. Já
faz tantos anos... Eu, você e Richard...
Não vim até Seattle para lembrar do passado,
mas para lhe pedir que execute esta tarefa... Ou você hoje
só faz coisas mediante pagamento?
Posso ser um agente freelancer desde que deixei
o grupo que me livrou da Sociedade dos Assassinos, mas ainda tenho
tempo de pagar um favor a uma velha... amiga. Se você quer
que eu enfrente este cara, tudo bem. Tenho tempo até meu
próximo serviço. Espero que esse sem-rosto seja
páreo para o Tigre de Bronze.
Continua
:: Notas
do Autor
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