|
Por
Cesar Rocha Leal
Evoluções
Parte IV - Encontro Com Um Demônio
Estando há
seis horas na Índia, Vic Sage conseguiu chegar a algumas
conclusões. A primeira é que, por mais quente que
sejam Hub City ou o Rio de Janeiro, Bombaim ganha de longe. O
problema é o ar seco que dificulta a respiração
e as ruas estreitas que aumentam a sensação claustrofóbica.
A outra é que mesmo sendo difundida a idéia do inglês
ser uma língua universal, isso é balela. A população
em geral mal tem condições para se sustentar, não
havendo possibilidade de arcar com despesas de aprendizado de
qualquer língua estrangeira. As únicas pessoas que
puderam compreender algo foram aproveitadores de turistas, que
não ajudaram em nada a busca do Questão.
Começando a ficar preocupado, Sage espera, sem alternativas,
pela ligação de Oráculo. E se pergunta se
o "patrão" dela já descobriu que é
ele o encarregado da missão de recuperar o ídolo
místico, e que já falhou no Rio de Janeiro.
Com o suor escorrendo pelo corpo e sem nenhuma pista do paradeiro
do ladrão do ídolo, Sage resolve voltar ao hotel.
"Melhor recarregar o celular do que ficar sem bateria no
meio de um contato da Oráculo."
As ruas de Bombaim chamam muito sua atenção. A pobreza
e a fome do povo são quase palpáveis. No Rio havia
muita miséria também, mas a situação
era mais mascarada, talvez porque ele tenha ficado dentro de uma
área turística ou porque as pessoas com dinheiro
que circulavam pela cidade maravilhosa amenizavam o quadro total.
Na Índia é mais difícil ver membros da elite
andando pelas ruas. Isso e a falta de uma praia para amenizar
os ânimos tornaram o humor de Sage cada vez mais soturno,
como acontece sempre que descobre uma situação penosa
e se questiona o quanto não se fez para melhorá-la.

Gotham City
Para o Batman o garoto era somente um estranho nas ruas de sua
cidade. Um menino que se somava às várias vítimas
dos becos e ruas de Gotham. Ou talvez um possível predador
em potencial.
Enquanto estava em um dos esconderijos do Homem-Morcego, Zack
foi analisado por um atento Batman. A dívida que ele parecia
nutrir pelo Questão fazia com que tivesse forças
para enfrentar o vício. Batman sabia muito bem o que era
essa situação. Já vira muitos jovens com
mais saúde e resistência desistirem de enfrentar
a abstinência e voltarem às drogas. Mas a influência
do homem sem rosto neste garoto parecia ser muito forte. Apesar
das várias obrigações que prendem tanto Batman
quanto Bruce Wayne em sua terra, ele decide providenciar um encontro
de Zack com seu salvador.

Ao entrar no quarto
Sage fica de prontidão. Alguém estava em seus aposentos.
Um chute direto no rosto do intruso é interceptado por
uma mão de pedra.
Jogado de volta na direção da porta, Sage analisa
seu adversário. A grande figura vestindo um sobretudo impressionava,
nem tanto pelo seu tamanho ou por possuir uma mão de granito,
mas por outras características. O ser tinha um tom de pele
vermelho escuro, dois cotos em sua testa, e, para completar o
bizarro conjunto, uma cauda.
Ora, ora, se não é Hellboy... Como foi mesmo
que a revista Time o chamou? "O maior Detetive do Paranormal
de todos os tempos".(*)
Algo assim. Mas acredite, tive alguns tutores que deixariam
muito de meus feitos na obscuridão. Se você já
desistiu de brigar comigo, posso começar a me desculpar
por ter entrado no seu quarto. Lamento, mas precisava falar contigo.
Você é Vic Sage, certo?
A estranha situação tinha um quê de irreal,
mas Sage já estava se acostumando com as surpresas e encontros
fortuitos neste caso.
Você diz que precisava falar comigo, mas não
sabia quem eu era? Isso é, no mínimo, esquisito,
se posso dizer.
O Demônio relaxa. Esticando seus músculos, ele senta
na beirada da cama do quarto, a cauda automaticamente indo para
o lado, permitindo que seu dono se ajeitasse. Tudo de uma forma
tão natural que o ato só seria notado por quem estivesse
na presença de Hellboy pela primeira vez.
É... Bem, é tudo meio complicado e provavelmente
não vai fazer muito sentido para você, mas deixe-me
explicar. Existe uma força no universo, a maioria das coisas
que consideramos coincidência não passam de eventos
ligados por uma sincronicidade. Muitas vezes percebemos essas
situações que estavam "preparadas" para
acontecer, mas nossa mente não consegue conceber o ato,
deixando uma sensação que chamamos de déjà-vu.
E você vai me dizer que isso já aconteceu
antes ou algo assim? Por mais mal educado que pudesse parecer,
os olhos de Sage não deixavam de imaginar o que seriam
aqueles tocos na fronte do investigador.
Não exatamente que já tivesse acontecido
antes, mas que estava sincronizado para ocorrer e nossas mentes
reconhecem a situação. E quanto ao que você
está se questionando a resposta é sim, esses tocos
são dois chifres característicos de minha... raça.
Mas, como pode ver, prefiro os meus aparados.
Sage fica extremamente desconfortável de ter sido tão
perceptível e procura olhar para outro lado enquanto ouve
o resto da explicação.
Nós podemos treinar nossas mentes para perceber
mais claramente essas sincronicidades e quando alguém lida
com artes místicas acaba tendo uma maior compreensão
disso tudo. Hellboy fala lentamente escolhendo as palavras
e tentando ser o mais claro possível. O tom de voz é
o mesmo de um pai narrando um conto de fadas para filho antes
de dormir.
Entendo, e isso quer dizer que você sabe de coisas
que eu não sei.
Algumas. Como, por exemplo, que você é o aventureiro
conhecido como Questão.
Putz. Você descobriu isso por ser iniciado em artes
místicas?
Hehe. Não exatamente. Quando histórias de
um homem sem rosto foram investigadas pelo Bureau de Pesquisa
e Defesa Paranormal, descobrimos que se tratava apenas de um vigilante
fantasiado. Analisando o tempo de atuação do Questão
e dos desaparecimentos do repórter Sage, não fica
difícil imaginar seu segredo. Mas não se preocupe,
a área de interesse do Bureau é menos... mundana.
Apenas alguns doidos ficam fuçando velhos arquivos. Duvido
que mais de uma ou duas pessoas lembrem que já investigamos
você. Eu mesmo só sabia disso porque preferia ler
arquivos antigos escondidos do que dar andamento em algumas aulas
de Línguas Swahilis.
Isso não me deixa muito calmo...
De qualquer forma, é como eu dizia. A sincronicidade
liga muitos eventos e eu sei que você está em uma
cadeia desses acontecimentos agora mesmo. Estranhas decisões,
compulsões e teimosias, certo?
Talvez você esteja certo. Isso explicaria algumas
coisas...
Sage reflete sobre algumas dessas "coisas": a estranha
compulsão em ajudar Zack, o encontro com Shiva, a luta
com o Tigre de Bronze, a confiança de Oráculo ao
lhe dar a missão...
Tenho certeza que sim. continua Hellboy Mas
sei que no momento você está atrás de um ídolo
tibetano. E acredite, sei disso porque as notícias voam
em cidades como Bombaim. Suas tentativas de comunicação
não encontraram apenas ouvidos "positivos". Existem
outras pessoas interessadas neste ídolo, pessoas perigosas.
Eu acabei vindo a Índia devido a um ... assunto, particular.
(**) Infelizmente não poderei lhe ajudar em sua busca,
mas acho que auxilio um pouco informando que tipo de objeto é
aquele que você procura.
Sage permanece em silêncio enquanto Hellboy prossegue.
O ídolo é muito antigo. Alguns acreditam
ser uma antiga relíquia de magos atlantes, pertencente
ao lendário Arion. Não se sabe muito sobre como
o objeto foi levado para o Tibete, mas acabou sendo protegido
por monges no não menos lendário templo de Lukhang.
(***) Durante a ocupação do Tibete pelos chineses,
os monges, com freqüência cada vez maior, meditavam
pela paz. As energias da meditação eram canalizadas
para este ídolo. Com o tempo, o objeto se tornou um receptáculo
de força. Se empregadas de forma correta, essas energias
podem tanto causar uma explosão fracionando um átomo
quanto manter funcionando um gerador de eletricidade. Causando
cobiça em várias pessoas que conheciam sua existência,
o objeto acabou sendo roubado de seu templo por um ladrão
de tumba.
Essa parte da história eu conheço. Ele acabou
sendo levado para o Rio de Janeiro, onde foi novamente roubado
por alguém desconhecido. Eu estava lá. E essa pessoa
veio para Bombaim.
Sim, mas não se engane. Ele não roubou em
proveito próprio. Existem pessoas muito perigosas por trás
disso.
Acredito. Meu próprio empregador não é
exatamente flor que se cheire.
Bem, é só o que posso fazer por você.
Como eu disse, tenho responsabilidades. A vida de alguém
que gosto muito depende do que vim fazer na Índia. Só
vim ter essa conversa com você porque era minha responsabilidade
nesta "sincronicidade".
O ocultista se levanta e começa a sair, mas é interrompido
por Sage antes de chegar ao corredor.
Obrigado. Pelo menos tenho uma idéia do que estou
enfrentando. Mas eu mesmo sou adepto de técnicas de meditação
tibetanas e, pessoalmente, não acredito que isso possa
gerar energia de forma a ser captada por um objeto físico.
Um sorriso se forma no rosto de Hellboy.
Já dizia Shakespeare: "Existem mais coisas
entre o Céu e a Terra do que sonha nossa vã filosofia".
Eu mesmo já vi muito e só fico triste de não
poder te ajudar mais. Mas pense um pouco: você já
tinha imaginado em ter uma conversa com um demônio ocultista
em uma tarde quente na Índia?

Sage sai novamente.
Oráculo ainda não entrou em contato e ele pensa
em poder conseguir uma refeição que não cause
problemas para seu estômago, acostumado com porcarias exclusivamente
ocidentais. Seus sentidos mal tem tempo de avisar que algo está
errado quando ele leva um golpe na nuca. Virando-se para encarar
seu adversário, Vic reconhece seu atacante. Grande, forte,
totalmente careca. O homem que roubara o ídolo no Rio de
Janeiro. Parece que ele reconheceu o Questão, mesmo estando
sem seu disfarce habitual.
Na luta anterior, Sage levara a pior. Mas agora ele está
preparado. O homem é extremamente forte, e da vez anterior,
lutando na defensiva, Sage procurara derrubar as defesas para
acertar o bandido.
O homem ataca, enquanto Sage permanece calmo e imóvel.
Desviando no último momento, as investidas acabam acertando
apenas o vazio. Após quatro tentativas, seu oponente começa
ficar nervoso e a antecipar os desvios de Sage. Desta vez, porém,
ele não sai do caminho. Apenas se abaixa estirando a perna
e acertando o joelho do gigante, tirando seu equilíbrio.
Aliado ao peso e inércia do golpe, o resultado foi uma
estrondosa queda de cabeça, que levou o inimigo à
inconsciência.
Antes que Sage possa se sentir aliviado, ele sente uma picada
no pescoço.
Mas o que....
A droga na ponta do pequeno dardo faz o Questão desfalecer.
Sage não percebe que é carregado e levado para uma
van, deixando para trás as chaves do quarto de hotel e
o celular de contato com Oráculo.
Continua...
:: Notas
do Autor
(*) Saiba mais sobre Hellboy em suas aventuras aqui no Hyperfan,
em breve.
(**) Futuramente essa missão do Hellboy estará no
Hyperfan, na mini-série "Conceitos Legais".
(***) Lukhang ou Templo dos Espíritos das Serpentes foi
construído no século XVII segundo a visão
do 5o Dalai Lama com o espírito feminino das águas
guardiã dos tesouros materiais e espirituais. O templo
tem as secretas pinturas das práticas do Dzogchen, segredo
desconhecido até para os próprios monges, salvo
aqueles da mais alta ordem.

|
 |