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Demolidor # 07

Por Conrad Pichler

Cassino Spanish Eyes

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Spanish Eyes Casino, em Las Vegas, dez anos atrás.

Mergulhado a todo corpo, embriagado, sem ar, no fundo da piscina. A água parecia densa, como se fosse óleo, mas era, mesmo sendo sangue. Afogando os pulmões, o ar que não se respira expelido pelos cantos da boca... é como se tudo passasse em câmera lenta, um vulto vermelho e amarelo, além da água, quando tudo parecia preto-e-branco, parecia uma miragem, uma miragem úmida no meio do deserto. Mas era tudo que se podia ver... ou quase tudo...

De dentro, os pés que nada tinham a se apoiar, sem mesmo encontrar no que se pudesse fixar o olhar amargo, no chacoalho constante e aleatório... é o que chamam de paixão. Sim, paixão, quando um olhar te captura, como nada poderia fazer, e nada se pode fazer. Um homem de meia-idade, com seus olhos frios que a tudo contemplavam, idéias e mentes e gente perdida. Gastando o dinheiro, num fluxo frenético de moedas que deixavam o bolso. Ele, professor, ideorrágico, inestancáveis conceitos, tudo passava à mente... o quase tudo... quase amargo.

Vestido curto, boca vermelha. Vulgar expressão de paixão e sexo, uma prostituta, alvoroçada com os dados do seu dia, o roçar na mão, os dois cubinhos pintados com números, um, dois, três, quatro, cinco, seis... e de novo, em bis. Seus olhos baços lhe clamavam um só, aquele pequeno homem, no canto do bar, fumando seu cigarro, com cara de quem não estava lá, mas estava lá, olhando amargo... quase tudo... quase ela.

Matt Murdock, um estudante de direito, velho no espírito, novo no semblante, caído numa poltrona do saguão, deslizando por quase todos os ruídos e perfumes e cheiros, e odores e um gosto que se espalhou. Amargo. De cabeça baixa, deitada sobre o encosto. Ele percorreu por entre as mesas, um velho de calção e chapéu praiano que rebuscava um balde com moedas, escolhendo. Essa não, sim, sim, vinte cinco cents... uma senhora que perdeu seu último dólar, cochichou baixinho para sua bolsa... se você me desse só mais uma, só mais uma... mas não tinha mais nenhuma, nada, zero. O cigarro, o perfume barato, o sabor amargo. O professor, no bar, a prostituta, fedendo suor por debaixo do perfume barato... tudo muito amargo... "se você me der o prazer..." hein?... "sopre as minhas luvas..." hã?... "sorte, bobinho... sorte é quase tudo, o resto é a companhia..."

A piscina estava tão fria que ele só repetia na mente... "eu acredito, eu acredito..." tantas milhões de vezes que ficou perdido, entre o que já tinha vivido e o que tinha a viver, quase tudo, quase tudo... a água estava vermelha e não preta e branca, estava vermelha, com seu sangue.. amargo... "eu acredito... meu senhor..." se agora ele podia ouvir uns sons que se misturavam nas ondas das águas, que ele mesmo projetava, ele sabia que era a clareza que predicava a morte...

No saguão, quando seu pescoço reclamou uma posição melhor, ele se ergueu... e Foggy apareceu, tão delicado quanto um hipopótamo, logo lhe pediu a chave do quarto... Matt lhe entregou, e o outro subiu... mas, atrás do cego aluno, o professor e a prostituta sumiram... cheiro de fumaça, amargo, cinza e enxofre... amargo... cinza... sim, enxofre...

Não era possível ouvir nada, nada, embaixo d'agua, submerso, imerso naquele véu de amor paixão, de sangue que lhe envolvia tudo, todo, num calor, tão... quase tudo... quase. "Professor Gibson, posso conversar..." "Matt, não vê que eu tô com uma..." "Sei, dr. Gibson, mas é que..." não, não é... tem gestos que falam mais que mil palavras, então dois gestos falam mais que duas mil palavras, isso dá quantas frases?... nada, um olhar à prostituta, de olho brilhante... ou de cheiro intenso de enxofre, para o cego aluno... e o professor franziu a testa e cerrou a porta, estava feito o covil.

Foggy roncava a balançar as cortinas... Matt vestiu seu traje de gala, o traje noturno de vermelho e amarelo de couro, vestiu o Demolidor e saltou pela janela, e em elipses no ar chegou a outra janela, a do professor, com aquele fedor de enxofre. Na capa, quente, Demolidor sentia, não havia forma de mulher, lá... apenas a nuvem baça de um enxofre vivo... sim, vivo... envolvendo o professor, sufocado, sem ar, quente, de calor, de enxofre. "Vamos, professor, saia daí... acredite, homem... acredite, você é mais forte que essa..." a nuvem de enxofre revoou, até o pescoço dele, do professor...

Demolidor pegou seu bastão, saltou em cima da nuvem, o professor, embebido naquela nuvem, sem som que se pudesse ouvir, ou sem nada que pudesse ver, atirou nas costas do aluno seu peso todo, num amargo golpe de quem não tem dó... o rapaz caiu, e toda nuvem de enxofre, amarga em si... quase arrancou do garoto seu bastão... aquela nuvem fria cinza, preta, branca, arremessou o quase todo corpo do professor pela janela, estuporou várias veias nos cacos, antes de atingir a piscina... e sem nada no que se apoiar, a nuvem soprou e sumiu...

Ninguém acreditava, alguns alunos, olhando para dentro da água, hóspedes... o corpo que se rendia ao seu próprio sangue amargo, tudo ficou vermelho, espesso, quase que uma única massa na água. Mas Matt descia pelas arestas, não via, ele não, ele apenas ouviu, uma voz baixinha, misturada em outras tantas ondas d'água... "eu acredito, eu acredito..." e naquele breu vermelho ele se lançou, e tirou o corpo inerte de lá... recuperou o corpo como podia, quase todo... quase todo inteiro... amargo ainda... "eu acredito, Matt, eu acredito, filho..." ele estava vivo.

Universidade Empire State, Nova York, dois meses depois, no outono.

"Professor Gibson, professor..." "Matt?..." "Você não vai voltar?..." "Não, não posso nem me olhar no espelho, Matt..." "Mas, professor, agora o senhor sabe que eu..." "De alguma forma, eu sempre soube que aquela voz que me surgiu na cabeça era sua..." "Como?..." "Só você me diria para acreditar... eu acredito... é, Matt, acredite, eu nunca falarei de você..."



 
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