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Por
Dell Freire
Chutando os Culhões da América
Vai um franguinho aí?
Nah... Estou com uma azia braba, Mr. Johnson; tá me queimando por dentro; vou ficar longe de frituras dessa vez...
Tu é que sabe, mermão... as mãos gordurosas do negro rechonchudo deixam sua pistola Beretta M9 repousar na perna para poder comer.
O parceiro do negro, um homem de feições duras e cabelo cortado no estilo militar parece olhar para o vazio distante, tentando não se concentrar no som das mandíbulas do outro. No interior daquele carro, em frente a um shopping, uma maleta contendo uma pequena fortuna em drogas.
Mas o que diabos...? o som de um pneu sendo esvaziado chama a atenção de Mr. Lucky Merda! Johnson, alguém tá furando nossos pneus!
Quando Mr. Lucky põe o pé para fora do carro, um violento murro faz com que dê dois passos para trás; ao seu lado, um desajeitado Mr. Johnson tenta fazer a difícil escolha entre largar a arma ou a coxa de frango. Enquanto um naco da carne de galinha atravessa sua garganta rapidamente, suas mãos soltam a comida para segurar a pistola e concentrar-se em mirar no alvo. Mas o homem que estava do outro lado do carro sumiu.
A cabeça de Mr. Johnson é enfiada através do vidro da porta lateral violentamente, o rosto negro transforma-se em um pequeno mapa vermelho de cicatrizes.
Cocaína. Onde está? o Justiceiro retira sua vítima entre cacos de vidros e a puxa para perto.
Na... p-pala... p-pala... o som das palavras sai deturpado devido a alguns dentes quebrados pelo impacto.
O quê?
P-pala...
O som de passos rápidos chama a atenção de Frank Castle. Mr. Lucky corre ao longe, uma mala algemada ao pulso, em direção ao shopping.
Como quem solta um saco de batatas, Frank abandona Mr. Johnson ao chão.
A respiração de Frank mal se altera enquanto corre, porém o seu adversário vira-se para trás, mirando com cuidado e dando três tiros seguidos.
Merda! Frank Castle se joga ao chão, rolando sucessivas vezes.
Filho da puta!!! um homem de mãos dadas com seu filho é empurrado enquanto tenta sair do shopping Isso não vai...
Ele se cala quando percebe a arma automática de Mr. Lucky, que parece ter asas nos pés ao passar pela porta voando como um foguete para o interior da imensa área de lazer e consumo. Seus olhos parecem ter um destino certo, dirigindo-se até a praça de alimentação e subindo pela escadaria principal de três em três degraus.
Mr. Porky!!! o homem, ofegante, põe a mão sobre o ombro largo do comprador de drogas.
Um pouco antes de morder o seu sushi, o homem frio, sobrancelhas cerradas e rosto levemente quadrado levanta-se e desfere um tapa no rosto de Mr. Lucky.
O que você faz aqui, idiota? Ainda não é a hora marcada. Lhe disse para esperar no carro.
Fomos descobertos.
Polícia?! Mr. Porky saca uma pequena submetralhadora Ingran Mac-10.
Não. Pior.
A praça de alimentação vai se esvaziando à medida que os fregueses começam a perceber a ameaça que aqueles dois homens armados podem representar.
Mr. Johnson foi pego. prossegue o fugitivo Mas a mercadoria está comigo.
Preserve-a ou sua sorte irá acabar.
Porra. É ele!
O Justiceiro é recebido com uma rajada de metralhadora mesmo quando apenas sua silhueta passa rapidamente do último degrau da escadaria para se proteger atrás de uma loja.
"Há civis na região; não posso reagir ou alguém..." pensa Frank.
 Ela está ferida. o colega de sala de Samantha deita-se ao seu lado quando uma bala perdida a atinge Temos que levá-la ao hospital.
Eu cuido disso. o professor, um homem de barbicha e sem um dos braços, que perdera na Segunda Guerra, sente o ambiente familiar Todo mundo se espalhe até o tiroteio acabar.
Isso é tarefa minha. a voz do Capitão América (*) soa firme.
Chamado por um velho amigo para uma palestra a respeito de cidadania e patriotismo para alunos universitários em uma sala de conferências do shopping, o repentino ambiente que transforma a praça de alimentação em uma verdadeira praça de guerra não deixa de surpreender Steve Rogers. Quando ele vê que todos os jovens estão seguros, corre até a figura frágil do seu amigo professor.
Com o escudo protegendo-os das balas que surgem aleatoriamente sem avisar, ele e seu amigo erguem a moça ferida nos ombros e a deixam em uma área segura.
Rogers e o veterano da Grande Guerra se entreolham rapidamente. O tempo parece ter retrocedido algumas décadas; em uma comunicação silenciosa, ambos sabem quais passos cada um deve seguir.

Vamos nos separar, Mr. Lucky. o homem imenso sentencia para o outro Corra para a esquerda e eu vou para direita.
Quando Mr. Porky começa a correr, sente uma respiração abafada ao seu lado. Olha para o lado e vê o franzino comparsa.
Porra! O que você está fazendo?!
Ãhn? Essa não é a direita?
Um novo tapa dado por Mr. Porky ressoa pelo ambiente; ele aponta a direção certa, fazendo seu parceiro de crimes correr desabaladamente.  Em meio a dezenas de pessoas transitando como formigas desesperadas, Mr. Lucky esbarra em um segurança que resolve interromper seu caminho. Um estilete desliza de sua manga, abrindo um rasgo no flanco esquerdo do corpo do funcionário do shopping, que desliza para o chão apoiando-se em seu adversário subestimado.
Em outro andar, Capitão América desenvolve uma perseguição em direção a Mr. Porky, que conduz seu corpanzil com indisfarçável dificuldade. Surpreso em ver o vingador em seu encalço, o traficante resolve parar.
Muito bem. Vamos resolver logo isso.
Renda-se! punhos cerrados, Steve Rogers deixa o escudo a proteger seu peito Não gostaria de machucar você.
Bah... seu escoteiro de merda.
Com um rápido movimento das pernas, um violento chute passa raspando pelo rosto de Steve Rogers, quase fazendo sua máscara sair. Em seguida, Mr. Porky tenta uma seqüência de murros para agredir o estômago do Capitão América, mas esse, em um gesto natural, detém o ataque com seu escudo e aplica um soco na base do queixo do adversário. Ligeiramente grogue, o gângster não demonstra querer se entregar facilmente e saca sua submetralhadora Ingran Mac-10, esvaziando-a no sentinela da liberdade, que se protege com seu escudo.
Canalha! grita Rogers São vermes como você que fazem minha causa valer a pena.
Com um gesto clássico, repetido por décadas, o Capitão América solta seu escudo das mãos tal qual um atleta olímpico arremessa um disco. Mr. Porky mal tem tempo de se surpreender quando o objeto atinge-lhe o rosto, quebrando uma dúzia de dentes e abrindo um corte feio que sangra abundantemente.
Eu me sinto responsável por você. ele levanta o criminoso com facilidade Me sinto responsável por cada cidadão deste grande e generoso país. Passei décadas lutando pelas mais justas causas e fazendo com que meu discurso chegasse às mais variadas gerações. Eu quero a Paz.
Com um novo murro, Rogers quebra outra meia dúzia de dentes de Mr. Porky.
Eu quero a Justiça!
De joelhos, o criminoso tenta se levantar e reagir. O Capitão América vira o pulso do inimigo, que faz uma careta de dor.
Filho, isso dói mais em mim do que em você. em seguida, ele estende a mão para seu adversário Quero lhe ajudar, mas isso depende só de você.
Com sua única mão boa, o adversário de Rogers ainda tenta aplicar um novo golpe. Sem sucesso.
CRAAAAAACCK
Desculpe, acho que quebrei sua outra mão... visivelmente penalizado por tê-lo agredido, o Capitão América tenta dialogar mais Veja o que você faz: recusa minha ajuda e tenta me agredir. Será que seus chefes serão tão benevolentes quanto eu quando souberem que fracassou em sua missão? Você sabe que não existe honra entre ladrões, senhor...
Porky. Mr. Porky... entre lágrimas, não resta ao gigante combalido algo senão se apoiar nas palavras da lenda vida Me desculpa, Capitão. Eu quero me regenerar!
Com um acesso de soluços e debulhando-se em lágrimas em meio à dor de seus dentes e ossos quebrados, o criminoso apóia-se no ombro do Capitão América, pedindo ajuda.
Tudo bem. Tudo bem. com um ou dois tapinhas amigáveis, o vingador puxa o meliante choroso para seu lado Vou fazer o possível para providenciar toda a assistência jurídica e psicológica para você, Mr Porky. Todo criminoso americano é recuperável para os Estados Unidos; cuidamos de nosso frutos podres com a esperança de recuperá-los para que não espalhem sua doença para toda cesta de frutas.
Se fosse outro homem, Steve Rogers abriria um sorriso de satisfação por ter regenerado mais um criminoso. Mas ele não é esse tipo de homem, pois sabe que sua luta diária contra o mal requer equilíbrio e serenidade.
 Frank Castle pressiona suas mãos sobre o pescoço fino de Mr. Lucky, empurrando sua cabeça para debaixo do chafariz do shopping. Um punhado de senhoras e adolescentes se afugentam enquanto o desenlace entre os dois homens quase chega ao fim. Quase. Uma voz cheia de autoridade se sobressai em meio a multidão.
Você!
A voz do Capitão América vem do alto, seu dono desce de um piso para outro do shopping utilizando-se da escada rolante; o escudo em punho protege seu peito em uma pose altiva. Seu rosto é duro, numa atitude que mistura obstinação e fúria; os olhos focam o Justiceiro como sendo seu atual alvo, seu cérebro define imediatamente seus objetivos.
A mente de Frank reage à altura do seu adversário.
Merda. Fudeu!
O Justiceiro solta Mr. Lucky desacordado e ainda com a maleta de drogas em seu braço, à beira do chafariz. A alguns metros de distância está um segurança escondido que pretende tomar para si a responsabilidade pela captura do criminoso e apreensão das drogas. Terá seus quinze minutos de fama e heroísmo.
O veterano do Vietnã não está disposto e nem tem tempo para um confronto com o veterano da Segunda Guerra Mundial.
Ouça, Capitão. Estou no meio de uma investigação envolvendo tráfico de drogas. Ainda tenho muito o que fazer. Por isso, peço que...
Sem acordos com você, assassino! Rogers caminha em direção a Frank Se não houvesse a troca de tiros entre você e esses marginais, nesse momento talvez Samantha não estivesse à beira da morte.
Não troquei tiros com ninguém!...
Abrindo os braços como se fossem asas, o Capitão América dá um salto em direção ao seu novo oponente. Frank Castle é tomado de surpresa quando é jogado ao chão e ambos começam a se engalfinhar.
Típico... Frank desvia-se de um murro Não há a mínima possibilidade de diálogo.
Deixei você muito tempo à solta em Nova York, assassino.
É um ajuste de contas, afinal resume o Justiceiro.
Ambos estão em uma posição desconfortável, cada um tentando imobilizar a ação do outro. O Capitão América, por cima, mantém o joelho na barriga do Justiceiro, que está por baixo e tenta golpear seu rosto. Com extrema dificuldade, Frank Castle vira o corpo para o lado e empurra Steve Rogers para longe.
Não pense que faço parte das pessoas perdidas e desamparadas que você tenta salvar todos os dias.
Do que você está falando? surpreende-se o Capitão.
Em seu flanco direito, o uniforme do vingador mostra um profundo corte; Frank apropriara-se da arma de Mr. Lucky, um pequeno estilete, e está disposto a usá-la da melhor forma possível para manchar a bandeira americana de sangue.
Você não passa de um atestado de falência do sonho americano. o Justiceiro dá dois passos e, em seguida, um belo golpe no rosto mascarado Nada mais do que isso...
Mentira! Rogers contra-ataca Não ouse impor sua visão deturpada sobre meus ideais!
"Acho que não é hora para debates" pensa consigo mesmo o Justiceiro, que começa a correr para longe do veterano da Grande Guerra. Para sua surpresa, ele ainda é seguido.
Espere!
O que foi, Capitão? Vai ler a página mais interessante da Constituição Americana para mim?
Virando à direita de uma livraria, o Justiceiro dá de cara com uma das lojas de fast-food. Quando tenta dar meia-volta, a figura azul e vermelha do vigilante mascarado se interpõe em seu caminho.
Sei exatamente o que passou no Vietnã, filho...
Eu não sou seu filho. Não sou filho de ninguém. Sou um aborto vivo da América. Ao contrário de você, fui rejeitado por ela.
Tolice! Rogers tenta golpeá-lo com seu escudo, mas o outro esquiva-se Você virou as costas para a verdadeira América!
Capitão, no dia em que eu souber o que é essa "verdadeira América", pode me internar em um sanatório. o escudo passa raspando, o corpo de Frank inclina-se para trás ao se esquivar Diferente de você e outros patriotas de carteirinha, eu construo o meu próprio mundo sobre minhas regras, mas não o imponho a ninguém.
Sim. Um mundo de violência, morte e sadismo.
Bem vindo à América, Capitão. Bem vindo ao mundo real.
Com uma tentativa de estrangulamento, Frank Castle domina o Capitão América.
As mortes que você causa... Steve Rogers fala com dificuldade pelas quais você é responsável... não fazem parte... do mundo real... lute para acabar... com a violência... não para disseminá-la...
Em poucos segundos, o sentinela da liberdade cairia desacordado caso não passasse uma de suas pernas por trás do adversário, derrubando-o ao chão.
Oklahoma. 1995. Timothy McVeigh. o Justiceiro mal levanta-se e parte novamente para a briga Sabe quem ele é? (**)
Um louco assassino!
Pra mim, apenas um bode expiatório. Apenas uma ponta num complô envolvendo o FBI, que deseja tornar essa nação armada a qualquer custo.
Ele foi condenado e executado segundo a lei.
Mentira. O próprio FBI plantou a bomba. Uma atitude criminosa que apenas tinha interesse em estimular a campanha beligerante de seu governo, estimular a venda de armas e cercear as liberdades políticas de cada cidadão.
O fato de ele ter sido capturado...
Mas não houve nenhum órgão assumindo os atentados, como de hábito. com cuidado, Frank desvia-se de um golpe de caratê Na verdade, o FBI apenas foi o braço de interesses superiores que querem legitimar o poder de polícia do Estado americano. Depois dessa farsa, o presidente assinou leis que permitem à polícia cometer quaisquer tipos de crime contra a Constituição no interesse do combate ao terrorismo. McVeigh poderia ter sido apenas e tão-somente alguém que queria servir de mártir para unir o seu nome e sua causa aos atentados perpetrados pelo governo americano.
Se lunáticos tencionam dominar o mundo, é dever da América impedir isso. Mas jamais iríamos matar nossa própria gente para fortalecer a democracia.
Bravo! uma cotovelada atinge o nariz do Capitão América; durante a luta e a tentativa de fuga de Castle, ambos vão em direção à seção de fliperamas Você e seu grupinho de merda dos Vingadores seguem bem essa pseudo-democracia. Verdadeiros lambe-botas do presidente. Fantoches nas mãos do Estado.
Você é um paranóico. Oklahoma foi cenário de um crime bárbaro.
Foi cenário de uma farsa. Um artifício torpe para fortalecer a América como Estado que partiu de dentro de seu próprio corpo político e empresarial! com desenvoltura, Frank Castle agarra o vingador pelas costas, numa difícil tentativa de imobilizar seus braços Assim como McVeigh foi um bode expiatório, eu também sou o bode expiatório da América. Uma América que tem medo de assumir que gosta de fazer justiça com as próprias mãos, e não se assume como poder arbitrário.
Com extrema violência, Frank Castle empurra a cabeça do Capitão América para dentro da tela da máquina de fliperama com a última versão de Mortal Kombat.
Você sabe pelo que está lutando? pergunta o Justiceiro Sabe o que realmente representa a América para os americanos? Você olhou para os olhos da moça que foi baleada? Olhe. Pergunte. Talvez você tenha a resposta verdadeira.
Rapidamente, o Capitão América se recupera e se vira, em busca do seu adversário. Mas ele não está mais lá.
 Momentos depois, a jovem atingida desperta. Rogers está ao seu lado, no hospital, segurando sua mão. Há uma breve conversa sobre a saúde dela e depois a moça diz que precisa ouvir algo dele.
O que é?
Você precisa fazer algo por mim... ela segura a mão dele firmemente Eu quero os dois traficantes responsáveis pela troca de tiros... pela bala perdida que me atingiu... quero ver eles mortos... Se você zela mesmo por mim, faça isso. Mate-os. Você pode fazer isso por mim, Capitão América?
O sentinela da liberdade emudece, constrangido, e seus olhos se fixam nos olhos da jovem Samantha. Olhos que demonstram um imenso ódio e sede de vingança.
No Próximo Número: Um velho sábio chinês, uma criança entristecida e um pequeno conto envolvendo Frank Castle, Leiko Wu e Shen Kuei o Gato em Chinatown.
:: Notas do Autor
(*) Essa aventura se passa antes da série Arjuna, o Guerreiro, que se iniciou em Vingadores #09.
(**) Em 1995, nos EUA, a cidade de Oklahoma sofreu um atentado que culminou com a morte de 168 pessoas, deixando 600 feridas. Na época, o FBI prendeu o suposto responsável: o militante solitário Timothy McVeigh teria dirigido uma caminhonete com duas toneladas e meia de nitrato de amônia em direção ao Edifício Federal Alfred Murrah. Jamais foram provadas conexões com órgãos de extrema-direita; porém, McVeigh disse ter cometido o crime em represália ao assassinato da seita em Waco, no Texas, que resultou na morte de 80 pessoas.
O ponto de vista do Justiceiro, de que McVeigh teria sido usado pelo FBI para legitimar medidas que tornassem o Estado mais forte, são parte de uma teoria de conspiração. Sustentada por algumas pessoas, essa teoria se apóia, entre outros elementos, no fato de que 17 pessoas do escritório de um órgão do governo americano que funcionava no prédio não teriam, por puro acaso, ido trabalhar naquele dia... os únicos cinco funcionários presentes no escritório não foram feridos.
Teorias de conspiração à parte, McVeigh foi condenado à pena de morte e executado dia 11 de junho de 2001. O terrorista tinha 33 anos e morreu às 7h14min (9h14min em Brasília), quatro minutos depois de receber uma injeção com produtos químicos letais na perna direita.

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